14-5-2016

 

Os "judeus" da vila de Melo

 

 

José Pedro Paiva, „As entradas da Inquisição na vila de Melo, no século XVII: pânico, integração/segregação, crenças e desagregação social”, Separata da Revista de História das Ideias, pgs. 167 a 208, Faculdade de Letras, Coimbra, 2004.

 

 

O artigo em epígrafe é frequentemente citado como um estudo aturado da actuação da Inquisição numa localidade e cita de facto 91 processos respeitantes a pessoas da vila de Melo ou da região. São quase todos da Inquisição de Coimbra e há apenas 7 da de Lisboa, a saber:

 

 

N.º do processo    

 

Data do auto da fé

 

 
 

5248 – Guiomar do Campo       

5248-1 – Guiomar do Campo, relaxada    

5797 – Grácia Dias        

5693 – Beatriz Gomes     

1458 – Manuel Fernandes de Cárceres   

1502 – Manuel Dias        

734 –  Jacinta Inácia Rosa  

 

15-5-1558

10-5-1562

20-9-1587

Perdão geral de 1605

Idem

31-3-1669

24-9-1752

 

 

 

O trabalho efectuado pelo Autor na consulta de tantos processos seria impossível fazê-lo hoje, dadas as restrições da Torre do Tombo no acesso aos processos da Inquisição de Coimbra, quase todos considerados em mau estado. É uma política perfeitamente absurda esta de negar o estudo dos processos, embora se diga que estão a ser restaurados.

Mesmo assim, na nota n.º 41, a pags. 181, queixa-se o Autor de não o terem deixado ver diversos processos em mau estado. Diz ele:  “Não obtive, todavia, essa permissão (de ver os processos dados como estando em mau estado), com base no argumento de que os documentos, devido ao seu estado de conservação, estavam já ilegíveis, aspecto que obviamente não posso comprovar. Espero que o zelo de competentes arquivistas não se torne um elemento bloqueador da única utilidade dos documentos. É que estes documentos só têm valor e préstimo se forem utilizados pelos historiadores e estudiosos do passado. Jacentes num arquivo transformado em esconderijo, são de total inutilidade”.

Tinha e tem ainda hoje toda a razão. Mas desde então as coisas pioraram. A actual política da Torre do Tombo é insustentável.

No seu julgamento da inquisição, o Autor não é abertamente conclusivo. A certa altura, estabelece os dois pontos de vista opostos:

- os daqueles que dizem que a maior parte das acusações e confissões eram falsas, e que os inquisidores tinham um controlo total sobre as respostas dos réus;

- os que vêem as vítimas da Inquisição como mártires do judaísmo  e a maioria das confissões como relatos fiéis, confirmando a existência de um cripto-judaísmo.

Mas não toma uma posição decidida sobre o assunto. Sobretudo não descobre que o processo inquisitorial está inquinado pela falta de defesa. Se o réu negava a acusação, com provas ou sem elas, passava a ser negativo, iria ser condenado se não fizesse confissões correspondentes à acusação e também acusando outros.

Vou aproveitar os processos de Lisboa antes mencionados para explanar duas questões que são acenadas pelo Autor do artigo, mas que acho devem ser mais aprofundadas: o tratamento dos relapsos e o tormento como meio de purgar as faltas, permitindo a libertação dos acusados.

 

 

Relapsia

 

Os processos de Guiomar do Campo não estão correctamente explicados no artigo de José Pedro Paiva.

Foi ela presa em 8-7-1557, por ter sido denunciada por uma Clara Fernandes (e não pelos filhos); foi reconciliada e abjurou no auto da fé de 15 de Maio de 1558. Foi preso a seguir em 26-4-1561 seu filho Diogo Gonçalves (Pr. n.º 3286), que acusou sua mãe e o seu cunhado Manuel Gomes (Pr. n.º 7314). Este foi preso em 23-10-1561 e acusou sua mulher Isabel Gonçalves (Pr. n.º 3094) filha da Guiomar e que foi presa em 24-1-1562. Entretanto, já Guiomar do Campo tinha sido presa pela segunda vez em 26-6-1561, acusada pelo filho  e depois também por seu genro e pela filha. Foram todos ao auto da fé realizado em Lisboa em 10 de Maio de 1562, reconciliados todos menos a Guiomar que foi relaxada pela terrível doutrina da relapsia.

Portanto, os filhos de Guiomar do Campo acusaram-na depois de presos, já ela tinha passado pelos cárceres da Inquisição. Foi considerada relapsa e por isso relaxada. Como se suspeita que todas estas acusações eram falsas, constate-se a barbaridade de relaxar a pobre desgraçada.

Este modo de proceder vem já do início da Inquisição, mas tenho dificuldade em o encontrar no Regimento de 1552. No entanto, é preciso notar que a actuação da Inquisição se baseava já numa tradição que vinha sobretudo do Manual dos Inquisidores de Nicolau Eymerico (1316 – 1399) que dizia:

 

Cap. XIII (…). De los relapsos arrepentidos (…) Cuando la recaída del relapso está plenamente probada debe este ser relajado al brazo seglar, por más que prometa enmendarse, y dé muestras de arrepentimiento, sine audientia quacumque. (…) Y efectivamente sobra con que el reo haya engañado ya una vez á la iglesia con su falsa conversión, para no exponerse á segundo engaño.”

 

O Regimento de 1640 adoptou esta terrível doutrina. Somente em relação aos apresentados relapsos é que diz em III, I, IX que, se os  apresentados relapsos não estão delatados, pode aceitar-se a confissão se se prova que é verdadeira a confissão e o arrependimento. Mas se nessa altura já estão delatados, devem ser relaxados.

 

Vou elencar as principais normas do Regimento de 1640 sobre o assunto, que correspondem certamente a uma prática anterior:

 

II, VI, I     – Pergunta-se ao réu se quer confessar para descargo de consciência e seu bom despacho. Mas se for relapso, ou tem culpas de sodomia pergunta-se se quer confessar para descargo de consciência e salvação de sua alma. É que da morte já não escapa.

 

II, XIII, V  - Só é considerado relapso se no primeiro processo abjurou de vehementi; se abjurou de levi, não conta

 

II, XV, V   - Os relapsos a ser relaxados podem ser reconciliados se se mostrarem arrependidos; nesse caso, são relaxados na mesma, mas dá-se-lhe a Comunhão.

 

II, XVI, IV - O réu pode apelar do facto de ser tratado como relapso, alegando, por exemplo que a primeira abjuração fora de levi ou outro motivo

 

III, I, IX   – Os relapsos que se apresentarem antes de ser denunciados, podem ser reconciliados e escapar à morte. Se se apresentarem depois de estarem delatos, são condenados ao relaxe.

 

III, VI, I   – Quem é considerado relapso: “e também por uma ficção de direito, é havido por relapso aquelle que, havendo abjurado de veemente suspeito na Fé, segunda vez está convencido na culpa de heresia

 

III, VI, II  - O relapso deve ser relaxado

 

No séc. XVIII, quando se começaram a repetir as prisões, sempre que aparecia uma denúncia não considerada em anterior julgamento, dando origem a centenas de segundos processos numerados com  -1 pelos Arquivos, deixou de se aplicar esta norma. Afinal sabia-se muito bem na Inquisição que tanto eram falsas as primeiras denúncias como as segundas. Seria um horror se tivessem sido condenados à morte todos os "relapsos" dessa época.

 

A saga da família de Guiomar de Campo não acabou com ela. Em Janeiro de 1573, foi preso pela Inquisição um neto dela, Fernão Lopes (Pr. n.º 12088), de 19 anos, filho de Henrique Lopes e de Maria Lopes (esta filha da Guiomar) que para se livrar, acusou sua mãe viúva, de 50 anos (Pr. n.º 6262). Esta foi presa nos Açores onde morava e enviada para o Continente. Acabou relaxada no Auto da Fé de 13 de Maio de 1576.  O filho, Fernão Lopes, acabou por se livrar, apesar de ter sido acusado de novo em 28-1-1585, no mesmo processo. 

 

 

Purgar as acusações com o tormento

 

Pr. n.º 5797, de Grácia Dias

 

27-9-1585 – Denúncia de Leonor Rodrigues

Faz agora 4 anos entrou na casa de Grácia Dias, na cidade da Guarda e estava limpando os candeeiros…

26-4-1586 - Prisão

2-10-1586 – Denúncia adicional de Leonor Rodrigues

27-6-1586 – Interrogatório. A ré tem 37 anos. Não tem culpas.

7-7-1586 – Interrogatório. Não tem culpas que confessar

16-7-1586 -  Interrogatório . Não tem culpas que confessar. Este interrogatório, como os anteriores tem no início a nota “Nihil” – Nada, isto é, a sessão não serviu para nada daquilo que o Inquisidor queria, que era a confissão das culpas.

Genealogia (img. 23 fls. 12): Sua mãe chamou-se Isabel Dias, não sabe o nome dos avós, não tem tios nem tias. É casada com Jorge Gonçalves, tosador na Guarda. Tem dois irmãos, Jorge Gonçalves, casado na Guarda com Leonor Fernandes e Filipe Gonçalves casado em Melo com Simoa Fernandes; não tem filhos, porque se finaram os que teve.

1-9-1586 – Admoestação para confessar sob pena de ser condenada

Libelo com as provas da justiça

A ré quis defender-se e foi-lhe dado para isso o procurador Licenciado Manuel Cabral

Defesa – contestação por negação: sempre foi boa cristã e só fez os jejuns da religião católica e nenhuns outros. O processo chama à contestação “contrariedade da ré”.

Indica testemunhas da cidade da Guarda, que os inquisidores mandam ouvir.

11-3-1587 – A comissão é recebida na Guarda.  São ouvidas as testemunhas da “contrariedade”.

15-4-1587 – A ré ouviu a publicação das provas da justiça, de que foi dada uma cópia ao procurador. Este apresentou as contraditas, uma longa lista de inimigos da Ré. Indicou testemunhas. Seguiu comissão para a Guarda a fim de as ouvir em 11 de Maio de 1587.

22-7-1587 – Assento da Mesa determinando a ida a tormento da Ré no potro e que se lhe desse uma volta suplementar. Se confessasse, seriam apreciadas as suas confissões. Se não confessasse, iria ao auto com vela na mão e faria abjuração de levi sendo-lhe impostas penas espirituais. Um Deputado representou o Ordinário (o Bispo).

22-7-1687 – Sentença do tormento

12-8-1587 – Execução do tormento – Nihil

O texto sugere um tratamento não muito duro, porquanto diz: “(…) e por parecer ter satisfeito ao despacho em que lhe mandava dar uma volta de cordel, e não se lha deu por não haver ministro, foi desatada e mandada a seu cárcere (…)”

Sentença – “(…) o que, tudo visto e a qualidade da prova da justiça não ser bastante para maior condenação, havendo também respeito a o que provou de sua defesa e juntamente a diligência que com ela se fez, mandam que a Ré Grácia Dias em pena e penitência de suas culpas vá ao auto da fé em corpo com uma vela acesa na mão e nele faça abjuração de levi suspeita e por tal a declaram (…)”

Ao contrário do que sucederia depois em que a decisão do processo está no Assento da Mesa ou do Conselho Geral, este processo tem uma “Sentença final”.

20-9-1587 – Auto da Fé celebrado na Igreja do Hospital Real de Todos os Santos no Rossio de Lisboa.

24-11-1587 – Deixaram-na ir em paz

 

Já se escreveu que os réus da Inquisição que não confessavam no tormento eram absolvidos e libertados, o que não é exacto. Mas era isso que referia o Manual dos Inquisidores:

Quando ha sufrido el reo la tortura sin confesar nada debe ponerle en libertad el inquisidor por sentencia que exprese que después de un atento examen de la causa no ha resulta do prueba legitima del delito que se le había imputado.

 

A Inquisição portuguesa, porém, obrigava o réu a abjurar como se se considerasse culpado, ainda que de levi. É o que determina o artigo II XIII XIII do Regimento de 1640  “(…) nem se votará em tal tormento que por ele se purgue toda a suspeita, que houver contra o réu, antes se terá sempre respeito a que fique lugar para a abjuração que deve fazer.” Ou seja, nada se provava contra o réu, mas ele tinha de se reconhecer como culpado. Na prática, o réu não assinava nada porque pelo tormento ficava incapaz de escrever durante meses e os Inquisidores podiam pôr no processo o que bem quisessem.

Também Grácia Dias foi ao tormento e nada confessou, pelo que purgou pelo tormento as faltas que poderia ter cometido, sendo obrigada a abjurar de levi.

 

Processo n.º 5693, de Beatriz Gomes ou Beatriz de Abreu, de 40 anos, solteira, natural de Melo e residente em Lisboa

Presa em 19-8-1604

Nada confessou

Por despacho de 18-1-1605, foi–lhe dada a liberdade em virtude do perdão geral de 1604.

Pagou as custas

 

Processo n.º 1458, de Manuel Fernandes de Cáceres, de 24 anos, casado com Briolanja da Fonseca, natural de Melo e residente em Lisboa

Preso em 11-8-1604

Fez confissões em 10, 11 e 17 de Setembro de 1604 e 13 de Novembro do mesmo ano.

Por despacho de 18-1-1605, foi–lhe dada a liberdade em virtude do perdão geral de 1604.

Pagou as custas

 

Processo n.º 1502, de Manuel Dias, de 40 anos, solteiro, natural de Viseu e residente na vila de Melo

Preso em 23-7-1667, pela Inquisição de Coimbra

Transitou para a Inquisição de Lisboa em 2-1-1669

Foi acusado por Francisca Pinheiro (Pr. n.º 4297, de Coimbra), Ana Pinheira (Pr. n.º 5566, de Coimbra), Clara Pinheira (Pr. n.º 5735, de Coimbra), Leonor Nunes (Pr. n.º 7045, de Coimbra)

Fez confissões em 3-10-1667 e 4-6-1668.

3-11-1668 – Assento da Mesa que o absolveu da excomunhão em que tinha incorrido, e o condenou na confiscação de todos os seus bens.

31-3-1669 – Lida a sentença no Auto da Fé celebrado no Terreiro do Paço.

Abjuração em forma, Termo de Segredo e Termo de ida e penitências

23-4-1669 – Libertado depois da instrução religiosa.

 

 

Processo n.º 734, de Jacinta Inácia Rosa, de 22 anos, solteira, natural de melo e residente na vila do Fundão

16-12-1749 – Apresentação à Inquisição, juntamente com seu pai.

O processo não transcreve as 11 acusações feitas contra ela em outros tantos processos.

15-6-1752 – Notificada para se apresentar na Inquisição de Lisboa no prazo de 15 dias.

Fez confissões a 3, 5, 8 e 20 de Julho de 1752.

7-9-1752 – Assento da Mesa que a absolveu da excomunhão em que tinha incorrido, e a condenou na confiscação de todos os seus bens. Teve cárcere a arbítrio e hábito penitencial que se lhe tirou no Auto.

24-9-1752 Lida a sentença no Auto da Fé que se celebrou na Igreja do Convento de S. Domingos

Abjuração em forma, Termo de Segredo e Termo de ida e penitências

4-11-1752 – Mais confissão

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Manual de Inquisidores para uso de las Inquisiciones de España y Portugal, ó Compendio de la obra intitulada Directorio de Inquisidores de Nicolao Eymerico, Inquisidor General de Aragon, traducida del francês en idioma castellano, por D. J. Marchena, com adiciones del traductor acerca de la Inquisición de España. Mompeller, Imprenta de Feliz Aviñon, 1821.

Online: http://books.google.com

 


Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640

Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/7/20/p267

 

Regimento da Santa Inquisiçam de 16 de Agosto de 1552, in Archivo Historico Portuguez, vol. V, 1907, pgs. 272 a 298

Online: http://www.archive.org