14-5-2009

 

Sobre o Autor, ver aqui           

 

 

José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho

(1742 - 1821)

 

  

Salus Reipublicæ Suprema Lex est

 

ANÁLISE SOBRE A JUSTIÇA

DO

COMÉRCIO DO RESGATE DOS ESCRAVOS

DA

COSTA DA AFRICA

novamente revista e acrescentada

por seu autor

D. JOSÉ JOAQUIM DA CUNHA DE AZEREDO COUTINH0

Bispo de Elvas em outro tempo bispo de Pernambuco, eleito de Miranda, e Bragança,

do Conselho de Sua Majestade.

LISBOA

ANO M. DCCC. VIII

Na nova oficina de João Rodrigues Neves

Por Ordem Superior

 

 

DEDICATÓRIA

 

A Vós, Felizes Brasileiros, meus Amigos, meus bons Concidadãos e Patrícios; a vós, Honra da Pátria, Inimigos da baixa lisonja e da vil intriga; a Vós, Talentos de fogo, cujas cabeças o Sol coroa dos seus raios; a Vós, que um dia fareis brilhar as vossas luzes, sem que os vossos Campos sejam abrasados; a Vós todos dedico esta obra filha do meu trabalho, que só teve em vista o vosso bem; obra por cuja causa eu tenho sido insultado (*), e perseguido pelos ocultos Inimigos da nossa Pátria, e pelos desumanos e cruéis Agentes ou Sectários dos bárbaros Brissot e Robespierre, destes Monstros com figura humana, que estabeleceram em regra: “pereçam antes as colónias, do que um só princípio” (**), princípio destruidor da Ordem Social, e cujo ensaio foi o transtorno geral da sua Pátria, e a rica e florescente Ilha de S. Domingos abrasada em chamas, nadando em sangue.

O objecto principal desta Análise é desmascarar os insidiosos princípios da Seita Filosófica; é apartar do vosso paraíso o pomo da infernal Serpente, soberba e orgulhosa; e persuadir-vos à obediência às Leis e ao Vosso Soberano, pela necessidade da vossa mesma existência; é persuadir os Senhores a tratar bem os seus escravos pelo seu mesmo interesse; é lembrar aos Pais de Famílias e aos Chefes de qualquer Corporação ou Sociedade, a obrigação de premiar os Bons e castigar os Maus, e à necessidade absoluta de guardar e fazer justiça a cada um do Todo, do que Eles são Partes; justiça sempre conforme o maior bem, ou o menor mal do estado das coisas, justiça sem a qual Eles mesmos não poderão existir. Se eu isto conseguir, eu morrerei contente no meio dos meus trabalhos; e de Vós só espero um saudoso requiescat in pace.

O vosso maior amigo e patrício,           

D. José, Bispo de Elvas.            

 

(*) V. a Nota do prefácio da Refutação do Doutor Dionísio Miguel Leitão.

(**) V. Mémoire, et accusation contre M. Brissot de Warville, Consors, Fauteurs et Adhérens, par M. Dubu de Longchamp, e les Trois Ages de Colon, par M. de Pradt, tom. II, chap. 10.

 

 

 

PREFÁCIO

 

Aturdido e atormentado de ouvir gritar ao redor de mim, e por toda a parte, uns por malícia, outros por cegueira, “que não se deve obedecer à Lei, que é contra o Direito Natural”, apenas ouvi este enunciado, eu, assustado, perguntei: “e quem há de ser o Juiz da Justiça da Lei? Ou, quem da Nação está autorizado para nos dizer se a Lei está ou não conforme o Direito Natural ?“ Quando eu esperava que todos me dissessem que só o Soberano, Legislador da Nação, pelo contrário, ninguém me respondeu: uns voltavam as costas, outros, por um sorriso sardónico pareciam compadecer-se da puerilidade da minha pergunta; eu olhei para uma e outra parte, não vi algum que tomasse o meu partido: os meus amigos mesmos pareciam fugir de mim para não seguirem comigo a mesma sorte; eu, vendo-me sem amigos, e que até a mesma Lei que defendia a minha vida, Lei à sombra da qual eu dormia sossegado, ficava à disposição dos meus inimigos e até qualquer assassino, eu exclamei: é possível que Deus me deixasse em tanto desamparo no meio dos homens? ! Eu, preso, e ligado pela Lei, sem poder usar das minhas forças, e os meus inimigos, os homens perversos e corrompidos, livres e soltos para me tirarem a vida, quando e como quiserem. Que desgraça! No meio desta aflição, se me afigurou de repente que um dos mesmos, que me cercava, corria já sobre mim; eu quis fugir, não achei para onde: por toda a parte eu me vi rodeado de um abismo que engolia de um só bocado a espécie humana; eu caí desmaiado, e sem sentidos [1].

O homem, uma vez constituído Juiz da justiça da mesma Lei a que ele deve obedecer, já para ele não há Lei: a sua vontade, os seus interesses e as suas paixões serão a só regra da justiça da sua Lei; os que se dizem Filósofos da moda e que se crêem feitos para civilizar a África, reformar a Europa, corrigir a Ásia e regenerar a América, não podiam, sem dúvida, excogitar uma máquina infernal mais simples e mais destruidora: não há um engodo mais atractivo, nem mais lisonjeiro ao paladar dos homens corrompidos para os reduzir aos tempos em que não havia Leis, não havia governo, não havia civilização; aos tempos, enfim, em que os homens andavam em bandos como feras, devorando-se uns aos outros, como ainda se vê em muita parte da África e entre muitos Índios da América.

As Seitas dos Anabaptistas do XVI século e dos “novos filósofos”, do XVIII, ainda que pareçam diametralmente opostas entre si, pois que aqueles afectavam um total desprezo das Ciências, e estes um soberbo orgulho, de que só entre eles há Ciência e sabedoria; contudo, a base fundamental de uma e outra Seita, a liberdade, a igualdade, a comunhão dos bens, são comuns entre ambos [2]. Os Anabaptistas se diziam rígidos observadores da Lei de Jesus Cristo; mas eles não se embaraçavam com examinar o  dogma ou o que deviam crer; eles só diziam que o verdadeiro Cristão devia ser justo e santo, mas não definiam em que consiste o justo e o santo; a Religião deles era arbitrária [3]. Os da nova Seita Filosófica, que se dizem rígidos observadores da Lei Natural, e que a Lei que é contra o Direito Natural e a Humanidade é injusta, e que, em consequência, não deve ser obedecida, não nos dão, contudo, uma definição clara e distinta dessa sua Humanidade, nem desse seu Direito Natural, nem nos dizem o como ele deve ser aplicado no estado da Sociedade, nem qual seja o sujeito, ou sujeitos, que no estado de Sociedade estão ou não autorizados para nos dizer se a Lei está ou não conforme o Direito Natural, e a Humanidade: o seu Direito Natural é arbitrário, a sua Humanidade é só de nome. Os Anabaptistas afectavam ter horror à efusão de sangue, eles diziam que os verdadeiros Cristãos não deviam tomar armas, nem ainda mesmo para se defenderem, e que por isso não deviam ser obrigados a assentar praça para servir nos exércitos da Nação [4]; e, contudo, que rios de sangue não fizeram eles correr por toda a Alemanha, e principalmente na Vestfália ? Os “novos filósofos”, que se dizem os defensores da humanidade oprimida, que de males não têm eles feito sofrer à humanidade ? A revolução da França e a carnagem da ilha de S. Domingos não bastam ainda para desmascarar estes hipócritas da humanidade?

Os da Seita Filosófica, supondo que a reforma do Mundo, ou, ao menos, da França, era obra de alguns dias, passaram a pôr em prática os seus desvarios: mas temendo acordar a vigilância dos Soberanos e dos que tinham nas mãos as rédeas dos governos, fingiram dirigir as suas setas contra a justiça do Comércio do resgate dos escravos da Costa da África, debaixo do pretexto de defender a Humanidade oprimida, para assim, ao longe, e por caminhos tortuosos, irem espalhando a semente dos seus infernais princípios, até arrastarem os homens aos seus primeiros tempos de barbárie, para eles então lhes darem a Lei a seu modo.

E, querendo eu concorrer com tudo quanto estivesse da minha parte para a felicidade geral dos homens, passei a analisar os princípios da Seita que com tanta arte se espalhava, para ou os destruir, se pudesse, ou ao menos excitar os ânimos dos verdadeiramente amigos da Humanidade a me ajudarem a persegui-los e a combatê-los; e como era necessário atacá-los pela mesma estrada que eles seguiam, eu tomei a defesa da justiça do mesmo Comércio, contra o qual eles tanto declamavam [5]. Feri-los por esta parte era feri-los no coração, pois que, debaixo do pretexto de atacar a injustiça das Leis que mandam ou aprovam semelhante Comércio, eles tratavam de injustas todas as Leis que não eram medidas pelo seu compasso; eles negavam a obediência aos Soberanos, eles chamavam de Tiranos aos que nas suas Leis punham a pena da perda da vida ou da liberdade; eles os desacreditavam e punham tudo em revolução, que era o seu fim; e, por isso, todo aquele que tomava a defesa da justiça de um tal Comércio era por eles amaldiçoado e detestado como um monstro inimigo da Humanidade.

Eu, porém, que nunca temi ser sacrificado pela defesa da Justiça e da Causa Pública, posto que sem forças; contudo, como estou persuadido de que o homem verdadeiramente Filósofo é o mais fácil a convencer-se, logo que se lhe faz ver a verdade, e que por isso que ele tem a vista mais aguda e penetrante, percebe logo a luz ainda mesmo quando se lhe mostra de longe; assim como também que o verdadeiramente amigo da Humanidade é o que mais se horroriza à vista da cilada que se lhe arma, e que é o primeiro a abraçar de coração àquele que lhe mostra o precipício; me vali do método próprio para convencer os homens de juízo e de probidade, posto que um pouco enfadonho e desagradável para os que amam os discursos livres e soltos para impor à multidão.

Se eu não conseguir o meu fim, eu terei ao menos a consolação de ter apontado a ferida mortal destes monstros inimigos da espécie humana, e de ter feito ver que a necessidade da existência e a suprema Lei das Nações, que a justiça das Leis humanas não é, nem pode ser absoluta, mas sim relativa às circunstâncias, e que só aos Soberanos Legisladores, que estão autorizados para dar Leis às Nações, pertence pesar as circunstâncias e aplicar-lhes o Direito Natural, que lhes manda fazer o maior bem das suas Nações relativamente ao estado em que cada uma delas se acha, assim como o prudente Médico que não aplica a todos os doentes o mesmo remédio, nem em toda a ocasião e tempo. A verdadeira demonstração destes princípios será, parece-me, o maior presente que se possa fazer à Humanidade: ela tornará a pôr o mundo nos seus eixos, ela sossegará as consciências, ela firmará os Impérios, ela, enfim, fará tanto bem quanto têm feito de mal as opiniões contrárias. E para que se possam facilmente ver os resultados da minha Análise, eu vou pô-los todos em um só ponto de vista.

I. O Sistema dos Pactos Sociais é contrário à natureza do Homem, e destruidor da ordem social. §§ II e III.

II. O Homem é, por sua natureza, sociável e feito  para a Sociedade, sem dependência de algum pacto. §§ IV até X.

III. Assim como a fome e a sede são a linguagem pela qual a Natureza manda ao Homem que trabalhe para sustentar a sua vida e a sua existência, assim também pelo medo e horror da sua destruição que ela lhe infundiu quando o criou, lhe manda que defenda a sua vida e a sua existência com todas as armas e meios que ela pôs nas suas mãos. § XI

IV. O Homem deduz os seus direitos naturais da necessidade da sua existência. § XI no fim.

V. As Sociedades humanas são, da mesma sorte, obras da Natureza, que criou o homem para a Sociedade, e com as mesmas obrigações de sustentarem e defenderem a sua existência por todos os meios que a mesma Natureza pós nas suas mãos. § XII.

VI. As Sociedades humanas deduzem os seus Direitos naturais, assim como cada um dos homens, da necessidade da sua existência. § XI no fim, e §§ XVII, XVIII e LXXXVII.

VII. Cada um dos Indivíduos da Sociedade deduz os seus direitos da Lei da Sociedade. §§ XIII até XVIII.

VIII. A justiça das Leis humanas, não é necessário que seja absoluta, basta que seja com relação às circunstâncias. §§ XIX até XXIV.

IX. A justiça da Lei de qualquer Sociedade ou nação consiste no maior bem ou no menor mal dela no meio das circunstâncias. §§ XX até XXIV.

X. Só ao Legislador da grande Sociedade ou Nação pertence julgar ou decidir qual é o maior bem ou o menor mal da nação, em tais ou tais circunstâncias. §§ XXV até XXVIII.

XI. A necessidade da existência do Homem, que no estado da Sociedade estabeleceu a justiça do Direito da Propriedade, foi também a mesma que no estado da Sociedade estabeleceu a Justiça do Direito da Escravidão. §§ XXIX até XXXV.

XII. O Comércio da venda dos escravos é uma Lei ditada pelas circunstâncias às Nações Bárbaras para o seu maior bem, ou para o seu menor mal. §§ XXXVIII até XLVIII.

XIII. Os argumentos dos Declamadores contra a justiça do Comércio do resgate dos escravos da Costa da África são mais contra eles do que a favor deles. §§ XLIX até XC.

XIV. Os escravos devem ser protegidos pelas Leis, assim como são os menores, sem jamais entrarem em juízo com seus Senhores. §§ XC até XCII.

XV. A Razão natural não se deve confundir com o raciocínio. §§ XCIII até XCIX.

XVI. A Liberdade dos homens no estado da Sociedade não é, nem pode ser, absoluta, mas, sim, restrita aos limites marcados pelas Leis da mesma Sociedade. §§ C até CVIII.

XVII. A Soberania do Povo ou é uma quimera, ou é só de nome. §§ CIX até CXXIII.

XVIII. Projecto de uma Lei para obrigar o senhor a que não abuse da condição do seu escravo. §§ CXXIV até CXXVIII.

 

NOTAS:

[1] Parece-me estar já ouvindo um quidam que, raivoso, me diz: “Um Bispo não deve usar de ficções”; mas eu já também lhe respondo que o Evangelho se está explicando por parábolas e exemplos, para ser facilmente entendido por todos, sem muitos rodeios e argumentos.

[2] Gmeiner, Histoir. Ecclesiast., tom. 2, epoch. 4, membr. 4. cap. 1, “De Anabaptistis”, pág. 510, Histoir., Philosoph. et Politiq., tom. 7, liv. 18, cap. 1.

[3] Gmeiner, op. cit., pág. 518: “plerumque enim non tam de natura dogmatum, quam de eo, quod justum, vel injustum, licitum, vel illicitum habere debeat, vehementer decertarunt. Sanctitatem nimirum, et morum probitatem unicam veræ Ecclesiæ notam caracteristicam esse volebant. Sanctum vero quid esset, quid non esset, non ratione, et judicio, non Sacræ Scripturæ recta nterpretaione, sed sensu potius, et opinione definiebant”.

[4] Gmeiner, op. cit., § 507: “Vim vi depellere, et bella gerere illicitum esse”. Histoir. Phil., pág. 3: “Il n’est pas permis à des chrétiens de prendre les armes pour se défendre; à plus forte raison ne peuvent-ils s’enrôler au hasard pour la guerre”.

(5) V. Analyse sur la justice du Commerce du Rachat des Esclav. de la Cóte d’Afrique, à Londres, 1798. Courrier de Lond., n.° 468. Juin, 1798, article “Avis au Public”.

 

 

ANÁLISE SOBRE A JUSTIÇA DO COMÉRCIO

DO RESGATE DOS ESCRAVOS

DA COSTA DE ÁFRICA

 

§ I. Tem-se ralhado muito sobre o Comércio do Resgate dos Escravos da Costa de África, com o fundamento de que a pena da escravidão, assim como a de morte, são contrárias à Razão Natural [1], à liberdade [2] e aos Direitos do Homem [3]. Este fundamento traz a sua origem do decantado sistema dos Pactos Sociais, e das convenções tácitas ou expressas. Sistema em que se diz que os Homens se ajuntaram em Sociedade pelos seus pactos e convenções para mutuamente fazerem a felicidade uns dos outros; que, sendo os Direitos da Sociedade um composto dos Direitos de cada um dos indivíduos dela, e que não podendo cada um deles ceder dos Direitos da sua vida, nem da sua liberdade, não pode a Sociedade ter Direitos alguns sobre a vida e liberdade dos seus indivíduos, nem pretender mais Direitos, que eles lhe não cederam nem podiam ceder. Isto suposto, passemos a analisar este sistema, visto que da verdade ou falsidade dele depende a resolução da nossa proposição.

§ II. Conforme o sistema dos Pactos Sociais, que se dizem anteriores e produtores das Sociedades, é necessário supor muitos absurdos, e impossíveis, alguns dos quais são: 1.°) Que o Homem, logo que nasce e que se pode arrastar, ainda sem se conhecer, nem a seus pais, foge deles para os matos e para as brenhas, e se faz silvestre e solitário. 2.°) Que ainda antes de ter ideias algumas, e menos dos bens e males das Sociedades, já sabe discorrer e fazer pactos e convenções sobre eles para conseguir um bem e acautelar um mal, que ele ainda ignora [4].

§ III. Destes princípios opostos, e contrários à Natureza do Homem, necessariamente se hão-de seguir consequências absurdas e contrárias à Natureza, ao bem e à existência do Homem. Tais são os seguintes:

Que os Soberanos, ou os primeiros Agentes das Sociedades, por isso que elas se dizem uma obra dos indivíduos de que elas se compõem, não têm, nem podem ter sobre eles alguns Direitos que esses indivíduos lhes não cedessem.

Que os Soberanos ou Agentes das Sociedades não podem castigar os indivíduos de que elas se compõem com a perda da liberdade, nem da vida; porque nenhum destes indivíduos lhes cedeu, nem podia ceder tais Direitos.

Que cada um desses indivíduos pode fazer o que quiser com a certeza de que só pode ser castigado, se ele quiser, ou como quiser, e de que não pode ser preso, nem privado da sua vida, nem da sua liberdade, ainda mesmo que ele queira [5].

Que as Leis dos Soberanos ou Agentes das Sociedades só obrigam quando elas são conformes com o Direito Natural.

Que o Direito Natural é aquele que dita a Razão Natural; ora, o menino, o velho, o sábio, o ignorante, têm cada um sua razão particular, a que ele chama natural; logo, são tantos os Direitos naturais quantas as razões do menino, do velho, do sábio, do ignorante, etc.

Eis aqui até onde se precipitam todos aqueles que, desprezando a autoridade das Leis, só têm por guia a sua Razão Natural. Da mesma sorte o matador, o ladrão e todo o Homem corrompido não deixa jamais de ter alguma razão para os seus interesses, e até mesmo para as suas paixões e para os seus vícios, razão que ele chama recta, boa e natural; logo, cada indivíduo, de qualquer Sociedade, só está obrigado a obedecer à Lei dessa Sociedade, enquanto ela for conforme ou não se opuser aos seus interesses, às suas paixões e à sua vontade.  

Ora, cada um está obrigado pela Lei Natural a defender seus Direitos naturais, ainda que seja pela morte e destruição daquele que lhos pretende destruir; logo, cada indivíduo de qualquer Sociedade está obrigado pelo seu Direito Natural [6] (ditado pela sua chamada Razão Natural) a matar e destruir aquele Soberano ou Soberanos e Agentes dessa Sociedade que o pretenderem obrigar a que não mate, a que não furte, a que não seja corrompido, a que não corrompa os outros, a que não faça a sua vontade, etc.

Eis aqui as belas consequências do grande sistema dos Pactos Sociais, em que os indivíduos de qualquer Sociedade se considerem os Criadores, os Legisladores, e os Soberanos de si mesmos, os juízes sem apelação em causa própria e os Julgadores Supremos dos seus interesses e das suas paixões.

Eis aqui desmascarado o revoltoso sistema, que se diz a mais feliz produção do século XVIII, do Século iluminado que, espalhando a luz por toda a parte, tem feito ver os sagrados Direitos do Homem e da sua liberdade [7]. Passemos a analisar a Natureza do Homem e seus Direitos.

§ IV. O Homem é um animal criado pela Natureza (falo conforme a linguagem dos novos Filósofos para melhor ser entendido por eles) para viver em Sociedade, assim como muitos animais que, por mais que se trabalhe por separá-los, correm uns para os outros todas as vezes que se acham em liberdade e se ajuntam por uma tendência natural, como qualquer corpo puxa para o seu centro sem que para isso seja necessário haver entre eles pactos e convenções tácitas ou expressas, nem algumas cessões de Direitos: tais são as ovelhas e todos os animais que vivem em rebanhos, e qualquer corpo largado da mão.

§ V. Qualquer animal, quando nasce, tem logo a força necessária para mover os seus membros e para seguir a mãe na sua marcha; os seus sentidos, os seus órgãos são logo dispostos cada um para os seus fins: a sua potência agente, contudo, é limitada e circunscrita dentro de certos limites, quantos bastam para a sua existência.

§ VI. O Homem, porém, nasce em embrião, para ser desenvolvido pela Sociedade; se a mãe não se abaixar a tomá-lo em seu regaço e lhe não meter na boca as fontes do leite e da nutrição, ele será logo morto, antes mesmo de ser menino. Os seus sentidos, os seus órgãos nascem  imperfeitos; a Sociedade é a que lhe ensina a fazer um melhor uso deles.

§ VII. Os seus braços, ainda que robustos, as suas mãos, ainda que perfeitas, não saberiam trabalhar, ao menos com a delicadeza e perfeição que todos os dias admiramos nas obras dos Homens das Sociedades; os seus olhos, ainda que dotados de uma vista perspicaz, só veriam muito grosseiramente as belas obras da Natureza e da Arte; da mesma sorte os seus ouvidos, o olfacto, o tacto, etc.

§ VIII. A potência agente do Homem, ainda que amplíssima, contudo ela se faz imensa e variável ao infinito pelas mudanças e variações da Sociedade. Sem a Sociedade, ela fica como amortecida e sem acção. O Homem principia por imitar a seus pais e àqueles que o rodeiam; ele se vai aperfeiçoando pelos bons modelos que se lhe apresentam; antes de ter ideias, ele não pode discorrer: a Sociedade é a que lhe subministra os modelos para a sua imitação e as ideias próprias para os seus discursos; e, por isso, o Homem, fora da Sociedade, ou não saberá discorrer, ou só discorrerá como um bruto.

§ IX. O Homem é uma parte integrante do grande Corpo da Sociedade; é um membro que, separado do seu Corpo, ou morre, ou fica sem acção. A experiência tem já feito ver que o Homem apartado da Sociedade desde os seus primeiros anos, até parece inferior aos brutos: ele não os iguala mesmo na perfeição dos sentidos; o dom da palavra, este veículo da comunicação dos nossos pensamentos, que forma a massa imensa dos conhecimentos humanos e que os vai transmitindo de uns aos outros, é totalmente inútil para o Homem sem a Sociedade. O Homem, enfim, sem a Sociedade, até parece que perde a Natureza de racional; logo, é necessário confessar que o Homem fora da Sociedade desde a sua infância, ou não existe, ou não passa do embrião.  

§ X. Em uma palavra, o Homem, para viver em Sociedade, não precisa fazer pactos; antes, pelo contrário, é necessário uma força para o apartar dela. Ele não tem mesmo a escolha para entrar nesta ou naquela Sociedade: ele só nasce no meio daquela para a qual a Natureza o destinou, ou ele queira, ou não queira. Eis aqui a verdade; eis aqui descoberto o grande princípio de onde devem partir todos os nossos discursos. 

§ XI. Assim como a fome e a sede são a linguagem pela qual a Natureza fala ao Homem, e o manda, em consequência, trabalhar para sustentar a sua vida e a sua existência, assim também o medo e o horror que ela infundiu no Homem para resistir à sua destruição é a linguagem pela qual ela o manda que defenda a sua vida e a sua existência [8] por todos os meios que ela pôs nas suas mãos; logo, tudo quanto for necessário para o Homem sustentar e defender a sua vida e existência, ainda que seja cortando um membro seu, por exemplo, um braço ou uma perna gangrenada, ou matando a qualquer que o ataca ou atenta contra a sua vida e destruição do seu corpo, foi-lhe concedido por essa mesma Natureza que lhe deu a vida com a obrigação de a sustentar e  defender; logo, é evidente que  todos os Direitos naturais de cada um dos homens nascem da necessidade da sua existência.

§ XII. A Natureza, por isso que criou os homens não só para si, mas também para coisas grandes e muito acima das forças necessárias para a existência de cada um [9], fê-los também ligados entre si para a Sociedade por uma certa força interna que arrasta os homens para a Sociedade; ora, essa força é uma obra totalmente da Natureza para os seus fins, assim como a fome e a sede para a existência dos homens; logo, as Sociedades dos homens são umas obras da Natureza criadas para os seus fins. Ora, quem quer os fins, quer os meios; logo, todos os meios necessários para a existência das Sociedades, ainda que seja pela destruição de alguns dos membros delas, que as quiserem arruinar ou destruir, são concedidos pela mesma Natureza que criou as Sociedades; logo, só desta necessidade da existência das Sociedades é que se devem deduzir todos os Direitos das Sociedades, e, por consequência, daqueles que têm o Direito de as governar, e não dos supostos pactos e convenções.

§ XIII. A Natureza que criou os homens para a Sociedade, foi também a mesma que os criou, quer eles queiram, quer não, com diferentes e desiguais dotes, uns com mais força, juízo, vivacidade e penetração do que outros, ou eles se considerem nascidos no mesmo dia, ou com relação aos diversos tempos da vida de cada um; mas como deste estado de colisão de tantos interesses, de tantas paixões e de tão diversos modos de pensar, nasceria infalivelmente a confusão, a desordem e a destruição de cada um dos membros - e, por consequência, de toda a Sociedade, veio a ser de absoluta necessidade para a existência de cada um dos membros, e, por consequência, de toda a Sociedade, uma Lei geral, que regule o melhor bem de cada um, ou quando os interesses de um devem ceder aos interesses do outro em tais ou tais circunstâncias; logo, uma Lei geral, que regule os Direitos de cada um dos homens da Sociedade, é a Lei Natural dimanada da mesma Natureza que criou o Homem para a Sociedade.  

§ XIV. Ora, esta Lei não pode ser ditada por um milagre contínuo, ou por um meio extraordinário, mas sim por um meio humano; logo uma Lei humana, ou, ao menos, um costume que, pouco a pouco, à proporção das circunstâncias, se vá adoptando como regra para o bem de uma família ou de uma Sociedade, é de absoluta necessidade para a existência do Homem na Sociedade; logo, só desta Lei é que se devem deduzir os Direitos de cada um dos homens da Sociedade; logo, os Direitos do Homem da Sociedade são posteriores à Lei da Sociedade e, não, anteriores a ela; logo, são falsos e supostos os chamados Direitos do Homem da Sociedade antes da existência da Sociedade.

§ XV. A Lei sem pena não é Lei, é um conselho; logo, ou se há-de dizer que um povo, uma Sociedade, uma Nação pode existir sem Lei, ou que a pena da Lei é de tanta necessidade como a Lei para a existência do Homem na Sociedade; logo, as penas das Leis humanas não deduzem, nem podem deduzir os seus Direitos das supostas convenções anteriores às Sociedades, mas sim da mesma necessidade da existência do Homem na Sociedade.

§ XVI. A pena da Lei, por mais forte que ela seja, nunca se pode dizer injusta, pois que sendo ela, como deve ser, imposta e declarada antes de cometido o delito, está na mão ou no arbítrio de cada um não cometer esse delito, e por consequência, fazer nula e sem efeito essa pena [10]; logo, toda a injustiça e toda a maldade está não da parte da Lei, mas sim, da parte do delinquente e daquele que quebranta a Lei; e tanto mais quanto ele sabe que ofende e quebranta uma Lei e uma pena mais forte [11].

§ XVII. O delinquente, por isso que deliberadamente e muito por sua vontade ataca e ofende os Direitos de cada um, prescritos e declarados pelas Leis da Sociedade ou da Nação, afiançados pela força geral dela, não só perde todos os Direitos da protecção e auxílios da Nação, mas também se faz inimigo dela pelo dano que ele faz ao todo ou a alguma das suas partes. Ora, já vimos que qualquer Sociedade, assim como qualquer Homem, pela Lei Natural que lhe impôs a necessidade da sua existência, tem o Direito de castigar, matar e destruir o seu inimigo, quando assim é necessário para conservar e manter a sua existência, ou esse inimigo queira ou não queira ceder os seus chamados Direitos da liberdade ou da vida [12]; logo, os Direitos que uma Sociedade ou Nação tem de impor as penas ou de castigar, ainda que seja com a da escravidão ou de morte, a qualquer dos seus membros ou dos seus inimigos, não são deduzidos dos Direitos que se dizem ou se supõem cedidos por algum ou por todos eles, mas sim da necessidade da existência das mesmas Sociedades ou Nações [13]; logo, a necessidade da existência é a suprema Lei das Nações.

§ XVIII. Mas como uma grande Sociedade ou Nação não pode ser governada e dirigida por toda ela ao mesmo tempo, porque tudo seria tumultuário, anárquico e sem ordem, como um corpo sem cabeça ou como um monstro que fosse todo cabeças sem membros executores [14], foi absolutamente necessário para o maior bem dos mesmos homens em Sociedade ou em Corpo de Nação, autorizar certo Poder ou Poderes para fazerem as Leis, e por elas regularem o maior bem da Sociedade ou Nação em tais ou tais circunstâncias; logo, os Direitos dos que estão autorizados para fazer o bem das Sociedades ou Nações são provenientes da necessidade da existência das mesmas Sociedades ou Nações de que eles estão encarregados.

§ XIX. O Homem que sem causa alguma se lança de uma janela abaixo, obra contra a Lei Natural, que lhe manda conservar a sua vida; mas quando esse Homem, vendo-se cercado de um incêndio ou atacado de um inimigo mais forte, se lança da janela abaixo, obra conforme a Lei Natural, que lhe manda salvar a sua vida por todos os meios possíveis, ou que ao menos como tais se lhe representam. Logo, a Lei Natural, adaptável ao Homem na Sociedade, é aquela que lhe regula o maior bem, ou que lhe manda fazer um mal ainda a si mesmo para salvar a sua existência em tais ou tais circunstâncias [15].

§ XX. Logo, a Lei Natural, que regula o maior bem do Homem no meio das circunstâncias ou perigos, não é absoluta, mas sim relativa às circunstâncias em que cada membro ou Sociedade se acha; ora, a Justiça das Leis humanas consiste na conformidade com a Lei Natural, que regula o maior bem do Homem em tais ou tais circunstâncias. Logo, a Justiça das Leis humanas não é absoluta, mas sim relativa às circunstâncias. Eis aqui desenvolvido o grande princípio de onde as Leis humanas deduzem a sua Justiça e os seus Direitos.

§ XXI. Todos os dias estão cada uma das Sociedades ou Nações mudando, alterando e revogando as suas Leis, só porque se mudaram as circunstâncias que faziam justa esta ou aquela Lei, ou que faziam necessária a sua revogação; ora, a Justiça absoluta é imutável, porque é também absoluta e imutável a Natureza que a produz; logo, ou se há-de dizer que todas as Leis humanas são injustas porque se mudam, ou que, para elas se dizerem justas, não é necessário que sejam fundadas em uma Justiça absoluta, mas sim, basta que sejam em uma Justiça relativa.

§ XXII. Se fosse permitido a qualquer indivíduo da Sociedade julgar da Justiça ou injustiça das Leis da sua Sociedade ou Nação, seguir-se-ia que, todas as vezes que elas fossem contrárias aos interesses desse tal suposto Juiz, seriam logo julgadas injustas; e como não há Lei alguma que não seja contrária aos interesses dos usurpadores dos Direitos alheios e dos perturbadores do sossego público, viriam todas as Leis a ser julgadas injustas por todos aqueles para os quais elas fossem feitas para servir de freio.

§ XXIII. Logo, ou se há-de dizer que não haja Leis porque todas se diriam injustas, e, por consequência, que todos os homens, principalmente os maus, vivam sem Lei em qualquer Sociedade, ou sem mais outra Lei do que a sua vontade, que se matem, que se destruam e que se extinga a Sociedade, ou que é de absoluta necessidade para a existência de qualquer Sociedade que aquilo que se estabelecer por Lei em uma Sociedade ou Nação, ninguém o possa jamais acusar de injusto, nem contrário ao Direito Natural.

§ XXIV. Isto, que indubitavelmente procede a respeito de qualquer indivíduo de uma Sociedade debaixo da pena da destruição dele e da mesma Sociedade, procede também a respeito das Nações entre si, ou sejam bárbaras, ou civilizadas; principalmente, logo que elas admitem entre si o Comércio de umas para as outras; posto que seja livre a cada uma delas mandar que a Lei sobre este ou aquele Comércio estabelecido em outra Nação não tenha lugar nos seus Estados, não por ser injusta ou contra a Lei Natural, como fica demonstrado, mas sim por não ser adaptável às circunstâncias em que se acha a sua Sociedade ou Nação [16]; de outra sorte, é necessário que ou não haja Comércio e contratos entre tais Nações, ou é absolutamente necessário para a existência da boa fé do Comércio de todas elas que todas sustentem como justas e boas as Leis umas das outras, pois que esta é a base do Direito das Gentes [17].

§ XXV. Não se pode julgar bem de qualquer negócio nem resolver uma questão com acerto, sem ter presentes todas as partes que lhe são relativas; e como poderá resolver bem um negócio de Estado aquele que não tem, nem pode ter presentes as partes e circunstâncias relativas a um tal negócio? Mas, ainda supondo como possível que ele as tivesse todas presentes, quem o autorizou para dar a Lei à Nação? E como só o Soberano Legislador da Nação, por isso que está encarregado de fazer o maior bem dela, é o que tem e pode ter presentes todas as partes relativas a um tal negócio, é claro que só ele tem justa razão de saber qual é o maior bem ou o menor mal da Nação em tais ou tais circunstâncias; da mesma sorte, por isso que só o Legislador da Nação está autorizado para dar a Lei à Nação, só a ele pertence dar-lhe a lei; ora, já vimos que a Justiça das Leis humanas não é absoluta, mas sim relativa ao maior bem ou ao menor mal possível no meio das circunstâncias, e não ao Direito Natural absoluto ( § XX); logo, se deve ter e observar como justo aquilo que o Supremo Legislador da Nação manda como Lei para regra das acções de cada um dos indivíduos da Nação em tais ou tais circunstâncias.

§ XXVI. Dirá, talvez, algum: é certo que, por via de regra, se deve obedecer à Lei do Soberano, e reconhecê-la mesmo como justa e necessária para o bem da Sociedade, pois que de outra forma não haveria governo e tudo seria anarquia, confusão e desordem, que de necessidade traria consigo a destruição dos mesmos homens juntos em Sociedade; mas, como não há regra sem excepção, parece que se não pode dizer justa a Lei quando ela é notoriamente contrária ao mesmo bem da Nação, e, por consequência, que se não deve obedecer ao Soberano em uma tal circunstância; por exemplo, quando o Soberano, pelo bem da Nação, faz a paz com a Nação com a qual estava em guerra e pouco depois quebra o Tratado e manda, pela sua Lei, que se faça guerra àquela mesma Nação com a qual acabava de fazer a paz.

§ XXVII. Para apartarmos todo o erro e confusão, é necessário dizer que os Vassalos de um tal Soberano lhe devem sempre obedecer, pois que sendo, como é, possível que logo depois de feita a paz sobreviessem circunstâncias que fizessem mudar o estado das coisas de tal sorte que uma tal paz seria mais prejudicial ao maior bem da mesma Nação do que uma guerra passageira, é quanto basta para que a Lei de um tal Soberano se dissesse justa [18]. Pelo que pertence, porém, à Nação ou Nações prejudicadas na quebra do Tratado, como são Corpos livres e independentes entre si, compete a cada uma fazer Justiça a si mesma, como qualquer Homem a respeito de outro no estado natural [19]; e em tal caso os respectivos Soberanos de cada uma delas ou estarão pelo que pretende o Soberano que quebrou o Tratado, se assim lhes parecer do maior bem das suas respectivas Nações, ou lhe farão uma guerra cruel e o ensinarão a conhecer que o maior bem da sua Nação não é o momentâneo, é, sim, o permanente e constante [20], e que por isso não se deve aproveitar de todas e quaisquer circunstâncias que lhe pareçam favoráveis; e, se um particular, nos seus contratos, deve proceder com verdade e boa fé pelo seu mesmo interesse, muito mais um Soberano, cujos interesses são maiores e mais duplicados pelo que pertence a si e à sua Nação [21].

§ XXVIII. Qualquer membro da Sociedade, pelo seu mesmo interesse está obrigado a concorrer para o bem geral da mesma Sociedade; e por isso tem Direito de propor ao Soberano Legislador (mas sempre com respeito) tudo o que lhe parecer ao bem do todo da Sociedade [22], pois que o Legislador, como Homem, é sujeito ao erro e ao engano; porém, no caso de o Legislador não emendar a sua Lei, ou desprezar as razões de um tal membro, deve este sujeitar-se à decisão como fundada em justa razão de alguma circunstância que ele ignora; mas nunca deve resistir, nem dar ocasião às armas, porque seria arrogar-se um Direito que lhe não compete, e fazer um mal certo por um bem incerto, o que a ninguém é permitido; os que na França quiseram arrogar a si um Direito que lhes não competia, ou foram esmagados pela sua mesma máquina, ou sofreram o tormento de lhes passar por cima com uma direcção totalmente contrária ao movimento que eles lhes deram.

§ XXIX. A Natureza fez tudo para todos; mas, como todos são dotados do mesmo grau de actividade, força e robustez era de necessidade que, entre muitos homens, uns fossem laboriosos, outros mais vadios, que quisessem viver à custa dos outros: daí nasceram brigas, mortes, guerras contínuas; seria necessário examinar-se qual foi o primeiro agressor, ou o que teve necessidade de se defender, e, por consequência, de fazer uma guerra justa; e qual seria o Juiz destas contestações? E como se faria ele ouvir no meio do estrondo das armas? Era, pois, de necessidade para fazer cessar tantas guerras: 1) reconhecer-se como justa, ou ao menos como obrigatória de necessidade, a Lei do Vencedor; 2) estabelecer-se como justa, ou ao menos de necessidade para a existência do Homem na Sociedade, a divisão do Meu e Teu e, por consequência, o Direito da propriedade: eis aqui reconhecidas como justas, ou ao menos como necessárias para a existência da Sociedade e de cada um dos seus membros, duas Leis contra o Direito Natural, quando assim o pediu o maior bem dos homens em Sociedade.

§XXX. E por que se não há-de reconhecer como justa ou ao menos como obrigatória a Lei da escravidão, quando assim o pedir o bem desta ou daquela Sociedade ou Nação? E quem, ou que Nação, terá o Direito de dizer que a Lei de uma tal Nação é injusta porque é contra o Direito Natural? Quem não vê a necessidade de se estar pela Lei do Legislador dessa Sociedade ou Nação, assim como pela Sentença do Juiz dela, para se não recorrer às armas, a cada passo? Aquele que hoje quisesse reduzir as coisas ao primitivo estado da Natureza e ao da comunhão dos bens seria o mesmo que querer fazer recuar todo o género humano ao estado do seu nascimento e principiar de novo as suas primeiras guerras. Eis aqui a quimera, por não dizer a loucura dos revolucionários que se dizem feitos para reformar o mundo.

§ XXXI. Feita, pois, a divisão das terras e reconhecida como justa a Lei do Vencedor e o Direito da propriedade, era de necessidade que cada um fosse pastor dos seus mesmos gados e lavrador das suas mesmas terras; mas como o trabalho de conduzir os gados pelos campos e pelas brenhas, assim como o de rasgar e cavar as terras, exposto ao Sol e à chuva, aos frios, aos gelos e às neves é um dos mais duros trabalhos a que os homens foram condenados pela Natureza, para sustentação das suas vidas, principiaram os mais fortes a abusar das suas forças para ou tomarem as terras frutíferas ou mais férteis dos outros que lhes produzissem com menos trabalho, ou, mesmo, obrigar por força os outros a que lhes cultivassem as suas terras; daqui nasceram novas guerras e novas brigas.

§ XXXII. É certo que nem todas estas guerras eram injustas: aqueles que brigavam pela defesa dos seus bens, da sua liberdade e da sua vida tinham toda a Justiça não só de reduzir os seus agressores à escravidão à qual eles os queriam reduzir, mas até de os matar, tomar-lhes os seus bens e dispor deles como de coisa sua para ressarcirem as perdas que eles lhes causaram e castigá-los para não serem injustos, agressores e nunca mais os inquietarem; mas como se pode saber, e muito principalmente os que longe da luta e do campo da batalha, e depois de anos e séculos, quais foram os que fizeram a guerra justa, e quais os bens e escravos havidos em justa guerra? Era, pois, de necessidade: 1) que o vencido se sujeitasse à Lei do Vencedor para salvar a sua vida e conformar-se com a Lei da Natureza, que lhe manda no meio das circunstâncias fazer o seu maior bem ou o seu menor mal ( § XIX); 2) que as outras gentes, ainda mesmo as que não fossem da luta, reconhecessem como justa a Lei do Vencedor, e, por consequência, os bens e escravos vendidos por ele – como havidos por justo título [23], por isso que ninguém pode ser Juiz de uma tal contestação (§ XXIV), nem mesmo ter as provas dela (§ XXV).

§ XXXIII. O trabalho exposto às inclemências do tempo é sempre obrigado pela força, ou seja de um estranho, ou seja da fome; daqui vem que entre as Nações em que há muitas terras devolutas e poucos habitantes relativamente, onde cada um pode ser proprietário de terras, se acha estabelecida, como justa, a escravidão. Tais são as Nações da África, da Ásia e da América: e entre as Nações em que há poucas ou nenhumas terras devolutas e sem proprietários particulares, se acha estabelecida a liberdade assim como na maior parte das Nações da Europa; mas esta chamada liberdade não é devida às luzes ou a maior grau de civi1ização das Nações: é, sim, devida ao maior ou menor número de habitantes relativamente ao terreno que ocupa esta Nação; por isso vemos que a Dinamarca, a Hungria, a Polónia, a Rússia (Nações sem dúvida mais iluminadas que os Reformadores da França e que querem ser de todo o mundo), vão dando a liberdade aos seus escravos à proporção que a sua população se aumenta relativamente às suas terras, assim como praticou a França nos princípios do século XIV [24].

§ XXXIV. O Homem que só tem o seu braço se vê obrigado pela fome a pedir ao proprietário que o deixe cultivar a terra de que ele é proprietário, para do trabalho do seu braço viverem ambos; logo, um tal trabalhador é só livre de nome, mas, na realidade, escravo da força da fome, pois que, ainda que lhe seja livre o mudar de amo, por não dizer de senhor, a sua condição, contudo, é sempre a mesma, e muito inferior à de seu amo: um vive no meio da abundância, do luxo e da moleza, o outro rebentando com trabalho, exposto a todas as inclemências do tempo para ter o absolutamente necessário para sustentar a vida; o chamado escravo, quando está doente, tem seu senhor que trata dele, de sua mulher e de seus pequenos filhos, e que o sustenta, quando não por caridade, ao menos pelo seu mesmo interesse; o chamado livre, quando está doente ou impossibilitado de trabalhar, se não for a caridade dos homens, ele, sua mulher e seus filhos morrerão de fome e de miséria [25]: qual, pois, desses dois é de melhor condição? “Eu sou livre pelo benefício das luzes ou pela civilização dos Filósofos” ? [26]

§ XXXV. Esta tão grande diferença, por não dizer desigualdade de Direitos e esta tão grande ferida ou excepção feita na Lei Geral da Natureza, que fez tudo para todos, é, contudo, reconhecida por todas as Nações e em todos os tempos como justa e necessária para o maior bem dos mesmos homens no estado da Sociedade ou em Corpo de Nação. Logo, aquele que, no estado de Sociedade, pretende reduzir os Direitos de todos os homens à igualdade, ou trata de uma igualdade abstracta e quimérica, ou é um ignorante que se arroga o nome de Filósofo, um impostor e um hipócrita do amor da Humanidade, que quer reduzir o estado das Sociedades e dos homens juntos em Corpo de Nação a um montão de ruínas e a uma série de revoluções sem fim.

§ XXXVI. Os romanos sabiamente fizeram diferença do Direito Natural absoluto e do Direito Natural secundário das Sociedades ou das Gentes: o Natural absoluto disseram ser aquele que a Natureza ensinou a todos os animais para sustentar e defender a sua vida [27], e o Secundário das Sociedades ou das Gentes disseram ser o maior bem das Sociedades ou das Gentes no meio das circunstâncias — Salus Reipublicæ suprema Lex est.

§ XXXVII. Todas as Leis humanas que regulam as acções dos homens no estado da Sociedade, não são mais do que modificações e consequências da primeira e suprema Lei da Natureza, que manda salvar a existência do Homem no meio das circunstâncias, mas desde que os chamados Filósofos e seus cegos sectários quiseram que a Justiça das Leis da Sociedade se medisse pela Justiça da Lei Natural absoluta, sem atenção às diversas circunstâncias em que os homens se acham no estado da Sociedade, ensinando por uma parte que a Lei deve ser obedecida e pela outra que ninguém deve obedecer à Lei contra o Direito Natural, que se deve obedecer às autoridades constituídas e, pela outra, que se não obedeça aos Soberanos, ainda que de longíssimo tempo constituídos, aos quais chamam Tiranos porque fazem Leis com penas de morte ou da perda da liberdade [28], fizeram um tal misto, chamado “Direitos do Homem”, cheio de inconsequências e de contradições, que por fim deixaram a todos sem Direitos, sem Leis, sem Governo, entregues aos seus caprichos e às suas paixões.

§ XXXVIII. A mesma Natureza que criou os homens para a Sociedade [29] os fez também mais dependentes uns dos outros do que os outros animais, para mutuamente se ajudarem e mutuamente se prenderem para a Sociedade pelo vínculo da dependência; ora, da necessidade absoluta desse mútuo socorro nasce a necessidade do Comércio dos homens entre si, sem diferença de bárbaros ou civilizados, ou seja trocando a indústria de um pelo trabalho do outro, ou trabalho por trabalho; logo, o Comércio dos homens, ou sejam bárbaros ou civilizados, é uma Lei da mesma Natureza que criou os homens para a Sociedade.

§ XXXIX. Todos os dias estão os membros de uma mesma Sociedade, ou de diversas Nações, comprando e vendendo esta ou aquela coisa, e comerciando entre si, sem se examinar nem poder examinar se essa coisa traz ou não a sua origem de um justo título ou de uma Justiça absoluta; só, sim, que o Comércio dessa coisa seja permitido, ou ao menos que não seja proibido pelas Leis do seu País. Da mesma sorte, as Nações ainda Cristãs estão comprando às Repúblicas e Nações da Barbárie aquilo mesmo que elas têm tomado à outras Nações Cristãs, só porque assim está aprovado este Comércio pelas Leis do seu País, Leis que, já vimos, só são fundadas em uma Justiça relativa (§§ XIX ate XXIV).

§ XL. O mesmo praticam as Nações Cristãs quando estão em guerra umas com outras, vendendo como havido por justo título aquilo que uma toma à outra [30]; e isto quando se sabe que a Justiça por ser uma e indivídua, não pode estar em duas partes contrárias; mas só porque se não pode saber qual delas tem uma Justiça absoluta de fazer guerra à outra, ou mesmo porque ninguém tem Direito de dar Leis ou de decidir da Justiça das Leis desta ou daquela Nação livre e independente (§§ XXII, XXIII, XXIV).

§ XLI. A África está, assim, como as outras partes do Mundo, povoada de muitas Nações livres e independentes, e, conforme as suas Leis, muitos daqueles crimes que, aliás, deveriam ser castigados com a pena de morte ou de prisão perpétua, assim como também muitos daqueles prisioneiros que pela Lei do Vencedor seriam passados à espada, ou eles quisessem, ou não quisessem, para destruir o corpo da Nação inimiga, são comutados na pena da escravidão perpétua e degredados para sempre para fora do seu País [31]. Os mesmos que se dizem defensores da Humanidade e da Liberdade dos homens, são os que dizem ser conforme à Lei Natural que os Réus dos crimes atrozes sejam antes castigados com a pena de prisão perpétua, açoites e serviço público [32], para darem assim todos os dias exemplo, do que por uma morte passageira e pela perda de mais um membro da Sociedade.

§ XLII. Logo, se as Leis de qualquer Sociedade ou Nação podem castigar com a pena de prisão perpétua, degradar e arrancar dos braços da sua família e da sua Pátria a um réu de crimes gravíssimos, açoitá-lo e fazê-lo escravo do Público para sempre, e, por consequência, privar da liberdade para sempre a qualquer membro da Sociedade e reduzi-lo à escravidão perpétua sem ofender a Lei Natural, não se pode dizer que ofende a Lei Natural aquela Lei que manda que esse escravo público e perpétuo sirva a um particular ou a outra Nação, pagando-se um certo preço para ressarcir o dano da Nação ofendida, que, além das despesas que fica poupando na sustentação desse escravo público e das guardas dispensáveis para a segurança e vigilância dele, se livra do susto que ele fuja um dia da prisão e vá matar aqueles que o prenderam e concorreram para o seu castigo [33].

§ XLIII. Finalmente, se a Lei do Vencedor, que manda passar à espada os vencidos, é justa e conforme à Lei Natural, muito mais o é aquela que lhes manda perdoar a vida, ainda que seja à custa de servir por toda a vida a quem quer que for, seja ou não fora da sua Pátria; dez ou quinze mil homens passados à espada em um só dia, por exemplo, na Praça de Ismailow, apenas servem de debilitar um pouco ou de tomar uma Praça a um inimigo que tem muitas; mas dez ou quinze mil homens vivos, ainda degredados e escravos em qualquer parte do mundo, são de uma grandíssima utilidade não só para a humanidade e para o bem geral das Nações, mas ainda para a Nação Vencedora, e talvez para a vencida.

§ XLIV. A Nação Vencedora terá mais um ganho à custa da vencida para, ou ressarcir a sua perda, ou uma maior força de dinheiro para atacar e destruir o seu inimigo; a Nação vencida, os filhos, as mães, as viúvas, os parentes dessas desgraçadas vítimas terão ao menos a esperança de resgatar aqueles braços que, aliás, seriam para eles perdidos para sempre. Diremos que as Leis daquelas Nações são bárbaras, injustas e contrárias à Lei da Natureza, só porque reduzem à escravidão aqueles que aliás seriam passados à espada pelas outras Nações que se dizem civilizadas? Não, certamente.

§ XLV. Leia-se a História antiga e moderna das Nações Bárbaras e, ainda, de muitas civilizadas [34] e ver-se-á o Comércio da venda dos escravos estabelecido entre todos como um negócio lícito e servindo como um canal de comunicação de umas Nações para as outras; a História mais antiga e a mais verdadeira que conhecem os homens é a mesma que nos atesta da venda de um irmão por seus irmãos [35]; ela nos faz ver: 1 ) que o Comércio da venda dos escravos já naqueles tempos antiquíssimos era um negócio muito geralmente recebido entre os Povos, e de cuja legitimidade ninguém duvidava; 2) que era reconhecido por todos por um menor mal, ainda mesmo pelo Homem vendido, o ser antes escravo, do que ser morto; 3) que o ser escravo não se reputava uma coisa tão horrorosa, tão vil e tão desonrosa ainda mesmo entre os irmãos, como hoje se quer fingir entre as Nações civilizadas: se o Homem bárbaro e selvagem pensasse como o Homem civilizado, ele deixaria logo de ser bárbaro, e não seria jamais um selvagem [36].

§ XLVI. As Leis da Natureza se conhecem por um obrar dela sempre constante e sempre uniforme; ora, este Comércio da venda dos escravos e dos delinquentes, tão geralmente praticado, principalmente por todas as Nações bárbaras, desde tempos tão antiquíssimos que até parece nascido com elas, não se dirá antes uma Lei da Natureza ditada ao menos [37] aos homens bárbaros para fazerem o seu maior bem ou evitarem o seu maior mal, conforme as circunstâncias em que se acham as suas Nações ? ( §§ XIX e XX).

§ XLVII. Este novo Direito Natural tão decantado, que diz que a escravidão é contrária aos Direitos da Natureza; este Direito Natural, que se diz patente pela simples luz da Razão Natural; esta Razão Natural, é possível que tenha estado há mais de dois mil anos ofuscada e calada até agora, sem ditar aos homens este grande Direito da Natureza? Esta Razão Natural será porventura um novo dom que a Natureza deu agora aos novos Filósofos e aos modernos? Este Direito Natural que se conhece pela simples luz da Razão Natural, é possível que não fosse adoptado geralmente nas Assembleias e nos Parlamentos, logo que se propôs; ainda seria necessário disputar-se tantas e tantas vezes e decidir-se pela intriga e preponderância de um partido que já preparava uma revolução?

§ XLVIII. Uma de duas, ou não há tal Direito Natural a respeito da escravidão, e, por consequência, não há, nem pode haver, quebrantamento de um Direito que não existe, ou ele ao menos não é tão claro e tão evidente como se pretende; e, como na dúvida de qualquer Lei, a observância dela é o seu melhor intérprete, é claro que um costume geralmente praticado e recebido há tantos mil anos pelas Nações, deve decidir de que o Comércio da venda dos escravos e dos delinquentes é uma Lei da Natureza que sempre serviu de regra, ao menos às Nações bárbaras para o seu maior bem ou para seu menor mal [38]; numa palavra, as opiniões novas e principalmente aquelas que tendem a mudar e alterar o estado das coisas que se acham mandadas ou autorizadas pelas Leis, sempre foram perturbadoras do sossego público, e, por isso ou é necessário fazer calar tais Revolucionários, ou destruir-se a ordem social e apartar os homens para bem longe uns dos outros para não se matarem.

  

Resposta aos argumentos contra a Justiça do Comércio do resgate dos escravos da Costa de África

 

§ XLIX. Os declamadores contra o Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África não cessam de pintar aquele Comércio como um objecto que faz horror à Natureza: eles fazem aparecer em cena um Viajante curioso que presenciou aquele Comércio. O tal Viajante [39] viu, dizem eles, chegar dos Sertões da África à borda do mar muitos Negros que conduziam outros muitos presos com as mãos para trás, com mordaças nas bocas, outros que traziam muitas crianças em sacos como coelhos, que os Negociantes Europeus e Americanos, logo que os compravam, os iam metendo a bordo dos Navios, amontoando uns sobre os outros, como fardos; e aqueles que, por serem aleijados ou doentes, se não compravam, eram logo mortos.

§ L. As crianças que vinham ensacadas, eram tratadas ainda com maior crueldade, porque as lançavam vivas à praia, onde se estavam revolvendo como vermes ou répteis, gritando e uivando como cães, até que os leões e os tigres, já acostumados àquele manjar, saíam famintos das matas e, lançando-se sobre elas com unhas e dentes, as devoravam em um instante; à vista deste objecto, dizem eles, o curioso Viajante entrou numa convulsão: os cabelos se lhe arrepiaram, um suor frio correu por todos os seus membros, até que ele, acordando espavorido, como de um grande letargo, invocou os Céus e a Terra e gritou pelos Defensores da Liberdade e da Humanidade oprimida a ir socorrer aqueles miseráveis e a levantarem contra os seus algozes e contra os tiranos [40]. Eis aqui, em suma, a decantada história do Viajante curioso, que tem servido de base aos argumentos dos que se dizem Defensores da Liberdade; passemos a reflectir um pouco sobre ela.

§ LI. Todos sabem que o maior ganho e interesse daqueles vendedores consiste em fazer chegar os seus escravos ao lugar da Feira pública no melhor estado possível: logo, como é crível que eles sejam tratados com tanta crueldade como pinta o curioso Viajante? Não duvido de que aqueles vendedores carreguem de cadeias mais pesadas a algum ou a alguns de que eles desconfiem e que lhes ponham mordaças para não poderem convidar os outros à sublevação; mas é crível que seja a todos? A condução das crianças em sacos ainda é mais extravagante, pois que ninguém jamais de boa fé se poderá persuadir de que haja homens tão bárbaros e tão vadios que se dêem ao trabalho de carregar às costas sacos de crianças do interior daquelas terras, sabendo que não lhas compram, para virem com elas sustentar e engordar os leões e os tigres nas vizinhanças das suas grandes praças do Comércio; estas e outras semelhantes historietas, apesar de todas as suas inverosimilhanças, são, contudo, acreditadas por aqueles mesmos que até para prova da existência de Deus querem uma demonstração geométrica. Vejamos o que se examinou sobre esta matéria no Parlamento da Inglaterra.

§ LII. Mr. Richard Miles, que governou por tempo de vinte anos nas feitorias da Companhia da África, sendo chamado como testemunha, jurou que o resultado das suas longas observações sobre o estado dos Negros da Costa do Ouro que lhe fazia crer que a escravidão era estabelecida naquele País de tempo imemorial, que ela era ali de alguma sorte naturalizacla e que as guerras não a tinham aumentado nem diminuído [41]. Ele distinguiu a Escravidão em duas espécies: aquela que era de nascimento e aquela que era uma punição aos diversos crimes, como o adultério, o furto, a feitiçaria, etc., ele acrescentou que as terras na África não podiam ser cultivadas senão por escravos (§ XXXIII).

§ LIII. Perguntado pelo Duque de Clarence sobre o estado dos escravos que vinham do interior das terras, respondeu que todos eles eram muito magros e que se não fossem vendidos seriam mortos; e que, pelo contrário, eles eram bem Tratados e nutridos na sua passagem [42] e que, debaixo da dominação Inglesa, eles viviam ao abrigo das Leis protectoras, desconhecidas no seu País, e que o cuidado que se tomava de conservar a existência deles era afiançado pelo interesse dos Capitães dos Navios, que os conduziam por um certo frete por cada um que chegava vivo [43].

§ LIV. Deixemos, contudo, a cada um a liberdade de examinar qual destas duas relações é ao menos a mais verosímil, se a do Viajante curioso, se a de Mr. Richard; mas supondo que seja verdadeira a do viajante curioso, dela o que se segue é que, se os Negociantes Europeus e Americanos comprassem também os escravos aleijados, os doentes e as crianças que vinham ensacadas, eles não seriam mortos, nem lançados as feras; logo, toda a crueldade está da parte daqueles que dizem que eles se não devem comprar; e, por consequência, que aqueles que gritam contra o Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África não o fazem pelo amor da humanidade ou pela compaixão, como eles dizem, daqueles miseráveis, mas sim para, debaixo deste pretexto,  sublevarem os Povos para os seus fins.

LV. Todos os dias estamos vendo nos Tratados de paz que fazem entre si as Nações beligerantes, o vencido reconhecendo como pertencente ao Vencedor aquilo que ele lhe tomou pela força das armas, ainda que o vencido esteja certo, ou ao menos persuadido que o seu Vencedor foi um injusto agressor; as Nações neutras, reconhecendo como uma justa aquisição aquilo que o Vencedor tomou pelas armas, e como tal lhe compram, vendem e contratam entre si sobre tais aquisições, sem que alguém entre nem deva entrar na dúvida se o Vencedor teve ou não justo título para fazer a guerra; porque, além de que ninguém pode ( §§ XXII e XXIII), nem tem Direito para ser Juiz da Justiça das Nações livres e independentes ( § XXIV), tudo fica justificado pelo Direito da guerra, visto que de outra sorte seria necessário principiar uma nova guerra, uma nova revolução de males sem fim, o que é contra a mesma Lei Natural, que manda fazer o maior bem ou o menor mal possível no meio das circunstâncias (§ XIX).

§ LVI. A França, na última guerra, tomou muitas Províncias e  Estados a alguns dos seus vizinhos; suponha-se que a França  punha em venda pública todas as ditas Províncias ou algumas delas: teria alguém dúvida de as comprar, se pudesse, assim como lhe compraram os anglo-americanos a Luisiana, que tinha sido tomada à Espanha? Os mesmos Soberanos, aos quais elas foram tomadas, deixariam de as resgatar, se pudessem ? Eles não estariam, em tais circunstâncias, obrigados, mesmo de Justiça, a comprá-las para — conforme a mesma Lei Natural - fazerem o seu maior bem ou o seu menor mal ? Quem, com ânimo sossegado e sem paixão, poderia dizer que tais Províncias se não deviam comprar nem resgatar por terem sido adquiridas injustamente e contra o Direito Natural ?

§ LVII. Da mesma sorte, o Preto da Costa de África, onde de tempo imemorial está estabelecido o Direito da escravidão, ou seja pela força das armas, ou em pena dos delitos de cada um dos indivíduos de tais Nações, que dúvida terá para salvar a sua vida, sujeitar-se à Lei do seu Vencedor ou à Sentença do seu Juiz, ainda que lhe pareça injusta? E o Comerciante estrangeiro ou Neutral, que já acha um tal Preto reduzido à escravidão ( § XXII), que dúvida poderá ter em comprar um tal escravo e ainda quando ele o não faz de pior condição? [44]

§ LVIII. Se dirá que o Direito da guerra justifica a aquisição das coisas, mas não dos homens ? Não, certamente, porque a Justiça do Direito da guerra provém do princípio, tantas vezes demonstrado, do maior bem ou do menor mal possível no meio das circunstâncias (§ XIX), o que é igualmente aplicável à vida e aos bens de qualquer particular e de toda a Sociedade ou Nação, além de que a aquisição de um tal escravo não é para destruir a sua existência e, sim, para se utilizar dos serviços que um tal escravo estava obrigado a prestar ao seu Vencedor, ao seu Senhor ou ao Público, conforme a Lei do seu País, de cuja Justiça ninguém tem direito de julgar (§§ XXII até XXVIII).

 

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N O T A S :

 

[1] V. §§ XCIII até XCIX

[2] V. §§ C até CVIII

[3] V. §§ XI até XIII.

[4]  Os mesmos Filósofos são os que dizem que não há ideias inatas.

[5] É impossível, atenta a corrupção humana, que se possa conservar o sossego, o bem e a tranquilidade de qualquer Estado ou Sociedade sem um castigo capaz de conter os maus; logo, o sistema dos Pactos Sociais, por isso que faz depender esse castigo até daqueles mesmos que devem ser castigados, ou é absurdo, ou é destruidor da Ordem Social.

[6] Direito se diz a faculdade que a Lei dá a qualquer para exigir do outro o que lhe é devido. Heinec., Elem. Jur. Nat., et Gent., I e Cap. I, § 7. Ora a faculdade que a Lei Natural ou da Natureza dá a qualquer para exigir de outro aquilo que lhe é devido, é a força e todos os meios necessários para obrigar. Logo, o Direito Natural, ou o direito que compete a qualquer no estado natural é a força e todos os meios necessários para obrigar; mas como os homens já hoje se não podem considerar no estado natural mas, sim, no estado de Sociedade, e por consequência sujeitos aos direitos prescritos pelas Leis da Sociedade, é claro que não tem lugar a alegação do Direito Natural contra Direito particular de cada uma das Sociedades, o qual não é mais do que o Direito Natural aplicado às circunstâncias e um extracto ou a melhor interpretação do maior bem da Sociedade em tais ou tais circunstâncias, interpretação que só compete à parte do corpo da Sociedade ou aos Poderes legitimamente constituídos para isso; de outra sorte, qualquer particular se poderia dizer intérprete da grande Lei da Sociedade, e cada intérprete quereria que a sua interpretação prevalecesse à dos outros, o que tudo seria uma confusão e desordem, e uma anarquia continuada; logo, toda a apelação e recurso para o Direito Natural absoluto despido das circunstâncias, ou não pode ter lugar no estado das Sociedades, ou é insidioso e perturbador da ordem pública, e destruidor das mesmas Sociedades.

[7] Não é de admirar que este sistema se tenha espalhado tanto depois de ser ele, como é, tão lisonjeiro das paixões dos Homens; os seus sucessos, contudo, não provam mais em seu favor do que as conquistas do Maometismo em favor do Alcorão.

[8] Deste princípio se segue que aquele que atenta contra a sua própria vida ou já está louco, e não obra como racional, ou é um monstro que ataca e resiste à mesma Natureza; da mesma sorte, aquele que defende a doutrina do suicídio, ou é um louco, ou é um monstro e uma fera devoradora dos outros Homens; o temor da morte e dos tormentos não deve servir de pretexto para se dizer lícito a qualquer o matar-se, porque seria fazer a si um mal certo para fugir a um mal incerto, e matar-se por suas mãos para não ser morto pelas mãos de outro; o que é loucura. Os Revolucionários, que se dizem Filósofos, cujos princípios foram sempre com o fim de transtornar a Ordem das coisas para pescarem nas águas involtas, promoveram o sistema do suicídio para fazer os homens temerários até a loucura e os reduzir a meras máquinas e instrumentos dos seus fins, pois que aquele que é senhor de dispor da sua vida a seu arbítrio, é senhor de dispor das vidas de todos, sejam eles, os mesmos Soberanos e os mais poderosos; e quem poderá viver seguro da sua vida com um destes monstros a seu lado, ou em uma Sociedade de tais monstros, que, para sufocarem até mesmo os remorsos da consciência, em lugar da consoladora perspectiva que oferecem as promessas da Religião, cavarão o espantoso abismo da desesperação e do nada, pondo sobre a porta dos seus cemitérios a enganadora inscrição “la mort est un éternel sommeil”?

[9] A uma nau, por exemplo, um Homem só não poderá fazer sair do ancoradouro, nem soltar-lhe as velas e conduzi-la a um porto.

[10] Ep. Ad Roman., cap. 13, v. 3: “Vis autem non timere potestatem? Bonum fac, et habebis laudem ex illa”.

[11] Se uma pena mais forte não basta para conter o mau, como bastará a menos forte?

[12] V. § XI e XII.

[13] V. § XII.

[14] Daqui vem que a Soberania do Povo, ou uma Democracia rigorosa, é absoluta, ou é impraticável, ou é só de nome. V. § CIX e seguintes.

[15] Por esta demonstração se faz evidente que a primeira e Suprema Lei da Natureza, imposta a cada um dos homens, é a sustentação e conservação da sua vida e da sua existência, e que desta Lei se deduz, por consequência, o direito ou a faculdade que ela dá a cada um dos homens para defender a sua vida e a sua existência em todo e qualquer estado em que se achar; o Homem pode ser considerado como em um de dois estados: ou de independência ou de dependência. No estado de independência, em que o Homem é considerado como insulado, independente e desligado dos outros homens, goza de todos os direitos absolutos e independentes, e, em consequência, só a ele compete dirigir e determinar as suas acções, como bem lhe parecer para a sua conservação, e cumprir com a Lei da Natureza, que lhe manda sustentar a sua vida e defender a sua existência; no estado de dependência, porém, em que o Homem é considerado como dependente, ligado, e com relação ao bem e aos interesses dos outros homens, é de necessidade absoluta que ele só goze dos direitos com relação e dependência dos outros homens, e, por consequência, limitados, pois que, neste segundo estado, não cabendo nas suas forças evitar que a grande massa dos outros homens não o esmague ou não destrua a sua existência, é de absoluta necessidade, para o seu maior bem ou para o seu menor mal, que ele se sujeite às Leis do que esta autorizado para mover e dirigir toda a massa dos homens juntos em Sociedade e, em consequência, a aceitar os direitos que lhe forem prescritos pela Lei geral, que regula os direitos de cada um com relação ao todo da Sociedade. Estes mesmos direitos limitados pela Lei geral da Sociedade competem e compreendem igualmente ao que está encarregado de mover e dirigir a grande máquina da Sociedade ou da Nação, pois logo que ele separe os seus interesses particulares, ou quebre as ligas que o prendem à grande massa da Sociedade, ou ele se achará sem forças e sem a poder mover, ou ela, pelo seu mesmo peso, rolará solta, desligada e sem ordem, e todos sem excepção serão esmagados, e destruída a vida e existência de cada um. Todos estes direitos, por isto que são provenientes da Suprema Lei da Natureza, que manda. a cada um sustentar e defender a sua vida, se dizem naturais, ao menos quanto à sua origem, ou eles se considerem em um estado absoluto e independente, ou em um estado dependente e relativo aos outros homens. Isto assim bem entendido, é fácil de ver que os Revolucionários da moda, que se querem dizer Filósofos e amigos dos homens, por malícia ou por ignorância confundindo o Direito Natural absoluto com o Direito Natural relativo à Sociedade, reduziram tudo a um caos e a uma anarquia continuada, ou, para me explicar conforme a frase dos Jurisconsultos, confundiram o direito da regra geral com o Direito da Excepção e transtornaram toda a Ordem Social estabelecida no Direito da Excepção, acomodado às circunstâncias, ao tempo, ao lugar e às Pessoas.  

[16] Assim como entre os particulares é um princípio de Direito Natural que aquilo que um não quer para si não deve querer para o outro, assim também entre as Gentes e as Nações aquilo que uma Nação não quer para si, não deve querer para as outras; ora, nenhuma Nação livre e independente quer que a outra lhe dê a Lei, nem que se intrometa a Juíza das suas Leis; logo, etc.

[17] Se as Nações não fizerem sustentar os direitos umas das outras, ou se umas se arrogarem o direito de decidir da justiça das Leis das outras, seguir-se-á que, ou elas não farão mais do que gritar loucamente umas contra as outras, ou será logo destruído o direito público das Nações, e tudo será decidido pela vontade do mais forte; ora, esta força não é sempre constante numa Nação; logo, ou todo o Direito Natural das Gentes será sempre arbitrário, inconstante e variável, ou será necessário confessar à face do mundo que não há Direito Natural entre as Gentes e as Nações, e, por consequência, que não há, nem pode haver quebrantamento de um Direito que não existe.

[18] § XIX até XXIV.

[19] § XII.

[20] Eu sei que uma tal lição custaria muito cara aos Vassalos de um tal Soberano, mas muito mais cara e sem comparação custaria à mesma Nação que desobedecesse ao seu Soberano ou lhe pedisse contas da justiça das suas Leis: a regra é que entre dois males sempre se deve escolher o menor; esta verdade não precisa ser demonstrada: a revolução da França a tem feito evidente.

[21] Esta reflexão não pareça ociosa e impertinente, porque é uma das favoritas com que os Revolucionários impõem aos ignorantes para os fazerem cair nos seus laços e não obedecerem aos seus Soberanos quando mandam castigar os maus ou os inimigos da Nação. Todos sabem que a revolução da França principiou pela desobediência das Tropas às Ordens do Rei, com o fundamento de que estas eram injustas: o que faz bem ver que os que ainda hoje defendem semelhante doutrina, ou são uns ignorantes que não sabem o que dizem, ou são uns Revolucionários disfarçados.

[22] Nobiles si non dixerint veritatem regibus non sint nobiles, neque illi, neque filii eorum per semper. Cortes de Lamego.

[23] Os Apóstolos, tratando da escravidão, nunca disseram que ela era injusta, nem contra o Direito Natural; eles só recomendavam aos senhores dos escravos que fossem mais humanos para com eles; S. Paulo, na sua Epístola aos Efésios (VI, 9): Et vos domini eadem facite illis remittentes minas, e falando aos escravos na Epístola a Tito (II, 9),: Servo dominis suis subditos esse in omnibus placentes, non contradicentes. O mesmo recomenda na Epístola aos Efésios (VI, 5 a 8), Epístola aos Colossenses (XXIII, 22), e S. Pedro, 1a Epístola (II, 18), manda que os escravos obedeçam aos seus senhores, ainda que sejam maus ou rigorosos: Servi subditi estote in omni timore dominis, non tantum bonis, et modestis, sed etiam discolis. Eu sei que a autoridade dos Livros Santos não é de peso algum para os Filósofos Ateístas; quanto a estes me parece que tenho demonstrado pelos argumentos ad hominem a falsidade dos seus princípios; estas autoridades são para os teólogos e moralistas que, para se dizerem Filósofos da moda, queriam acomodar a Teologia Cristã à mitologia do Paganismo e aos princípios de Aristóteles, que eles não entendiam, e de Platão, que eles chamavam “divino”. Esses Moralistas Revolucionários que dizem que o Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África é contra o Direito Natural, que se não deve obedecer à Lei contra o Direito Natural, e que, em consequência, se resista aos Soberanos que mandam ou aprovam tal Comércio, que se faça uma carnagem, qual a que se fez na Ilha de S. Domingos contra os que não queriam ser republicanos, etc. Eu desejaria que me dissessem se a sua Moral é mais santa, mais pura e mais sublime do que a dos Apóstolos nossos mestres, e se eles estão autorizados, e por quem, para suscitarem semelhantes carnagens sem alguma esperança de melhorar a sorte dos Negros da Costa de África, nem de os tirar da barbaridade em que eles se acham? Jesus Cristo, Nosso Mestre, sendo rogado para ser Juiz entre dois Irmãos sobre uma herança, perguntou: “Quem me constituiu Juiz?” — e que responderiam tais moralistas a Jesus Cristo, que lhes perguntasse: “Quem vos constituiu Juízes da Justiças das Leis dos Soberanos?” Eu desejaria mais, que eles me dissessem se o grémio da Igreja, para a qual entram estes escravos resgatados, não entra por alguma coisa no cálculo da sua moral, ou se é melhor e mais conforme ao Cristianismo deixá-los antes morrer no Paganismo e na idolatria do que na nossa Santa Religião? Os mesmos pontífices permitiram aos senhores Reis destes Reinos de Portugal o Comércio do resgate dos Escravos da Costa de África por ser este o meio que se tinha descoberto não só para introduzir a nossa Santa Re1igião entre aqueles Bárbaros, mas também para se ganharem para a Religião muitos daqueles Bárbaros que, aliás morrendo entre eles seriam perdidos. V. a bula do Papa Nicolau V confirmada por Calisto III, dos anos de 1454 e de 1455, e de Leão X, de 1514, transcritas por Sousa, Histor. Genealog. da Casa Real, tom. 1, das Prov., pág. 448, e tom. II, pág. 225; Exinde quoque multi Guinei, et alii Nigri vi capti, quidam etiam non prohibitarum rerum permutatione, seu alio legitimo contractu emptionis ad dicta sunt regna transmissi. Quorum inibi in copioso numero ad catholicam fidem conversi extiterunt speraturque divina favente clementia, quod si hujusmodi cum eis continuetur progressus, vel populi ipsi ad fidem convertentur, vel saltem multorum ex eis animæ Christo lucri fient.

Finalmente, a Moral e a Religião de tais moralistas se faz bastantemente suspeita de que ou eles não conhecem o fundo da sua Religião, ou são Revolucionários que, com a capa da Religião querem fazer o mesmo que outros fizeram com a capa do Direito Natural e da Humanidade.

[24] Nouvel. Abreg. Chron. de l’Histoir de Franc., Part. 1, Evènements Remarq. sous Louis Hutin.

[25] Montesq., Esprit des Lois, liv. 15, art. 6, é um dos que diz que os moscovitas muitas vezes se vendem a quem os sustente. O Conde de Creptowiez, Conselheiro do Grão-ducado da Lituânia, que tratava bem os seus escravos, levado das ideias da decantada “humanidade filosófica” ofereceu aos seus escravos a liberdade com a condição de ficar ele desobrigado de os vestir, de sustentar e de os tratar e curar nas suas enfermidades: os seus escravos, considerando o bom estado que perdiam e o miserável a que iam ser reduzidos, rejeitaram a liberdade que se lhes dava. Eu vi uma carta de M. Arcebispo de Nisibi, que tinha estado na Polónia, e depois Núncio Apostólico em Portugal, escrita a um dos seus amigos, em que dizia: “Nell’anno 1774, o 1775 il Sig. Conte di Creptwiez Cancelliere del Gran Ducato di Lituania offrì ai suoi Rustici la libertà, ma fú da essi ricusato questo dono”. Os chineses, Nação sem dúvida das mais antigas e das mais civilizadas do mundo, muitos deles, contudo, se vendem a quem os sustente para não morrerem de fome e de miséria, o que faz ver que o escravo da fome ainda é de pior condição do que o escravo da força. La Harpe, Histoir. génér. des Voyag., tom. 7, chap. 6, pág. 286: “Malgré la sobriété et l’industrie qui règnent à la Chine, le nombre des habitants est si prodigieux qu’ils sont toujours exposés à beaucoup de misères. II s’en trouve de si pauvres que si la mère tombe malade, ou manque de lait, l’impuissance de nourrir leurs enfants les force de les exposer dans les rues. Ce spectacle est rare dans les Villes de Province; mais rien est plus commun dans les grandes Capitales, telles que Pekin et Canton. D’autres engagent les sages-femmes à noyer leurs filles dans un bassin d’eau, au moment de leur naissance. La misère produit une multitude incroyable d’esclaves dans les deux sexes. C’est-à-dire, de personnes qui se vendent, en se réservant le droit de se racheter. Les familles aisées ont un grand nombre de ces domestiques volontairement vendus, quoiqu’il y en ait aussi qui si louent comme en Europe. Un père vend quelque fois son fils, vend sa femme, et se vend lui même à vil prix”. Ora, se a necessidade da existência e as circunstâncias forçam muitas vezes as Nações civilizadas a aprovarem e a permitirem como justa a escravidão, por que se não há de dizer o mesmo, e com mais razão, a respeito das Nações bárbaras, entre as quais a escravidão é um menor dos seus males?

[26] Na verdade, confesso que não posso entender a humanidade destes que se dizem ter horror ao Comércio do resgate dos escravos da África e dos quais se dizem amigos sem com eles ter algum trato nem comunicação, e que ao mesmo tempo estão vendo com olhos enxutos os seus pobres Concidadãos, homens brancos civilizados trabalhando ao Sol e à chuva para ganharem o miserável sustento para aquele dia, sem contudo repartirem com eles das suas excessivas riquezas e das suas muitas terras para os libertarem de trabalhar ao Sol e à chuva. Se me dirá, talvez que não há riquezas que possam libertar a tantos pobres de trabalhos tão pesados, e que mesmo é necessário que, no estado da Sociedade, haja tais trabalhadores para sustentar os outros que, posto que à sombra, também trabalham para eles, eu então lhes diria: não é, pois, melhor que nos aproveitemos daqueles trabalhadores ao Sol e a chuva que, pela barbaridade de seus pais e de seus senhores, ou pelas Leis do seu País, estão já condenados a trabalharem para sempre ao Sol e à chuva em favor de quem quer que for e ainda mesmo a serem vendidos às Nações Estrangeiras, e além dos mares; e que libertemos aos nossos Concidadãos, ou ao menos a uma grande parte deles destes trabalhos feitos ao Sol e à chuva ? Tanta humanidade para com os Negros Bárbaros, cuja condição nós não a fazemos pior, principalmente quando são levados para as terras da Zona Tórrida em um clima quase análogo ao dos seus nascimentos e tanta falta de humanidade para com os brancos civilizados, cuja condição ou não a melhoramos, podendo, ou a fazemos igual à de um escravo pelo nosso direito de propriedade! Filósofos, que vos dizeis sentimentais, sede uma vez consequentes: ou não griteis contra o Comércio do resgate dos escravos da Costa de África ou riscai do Código das Nações o Direito da propriedade e o de darem as Leis a si mesmos.

[27] Jus Naturale est illud quod Natura omnia animalia docuit. Instit., lib. 1, tt. 2, in princip.

[28]  É digno de notar-se que os mesmos que gritavam contra a pena de morte e de escravidão, ou da perda da liberdade, como contrárias ao Direito Natural, logo que eles, à força de punhais, se arrogaram o título de Autoridades constituídas, que era o fim de toda a sua Filosofia, a sua humanidade não se satisfazia de matar um e um, mas sim, em bandos, tumultuariamente, sem forma de juízo, a tiros de espingarda, às estocadas e cutiladas, sem diferença de idade, nem de sexo, nem de condição; eles inventaram novas máquinas destruidoras da espécie humana; a guilhotina, os barcos furados, etc., são obras que farão os seus Autores  sempre execrandos à posteridade: o Povo Soberano e a canalha, tudo foi castigado da mesma sorte: as autoridades constituídas que escaparam à guilhotina, foram mandadas em gaiolas de ferro a viver na Sociedade dos Selvagens e das feras da Guiana; talvez que ainda os Sectários de tais Filantropos não fossem mais humanos do que eles, se se achassem em iguais circunstâncias.

[29]  V. § IV até X.

[30] Na presente guerra se está comprando aos Ingleses aquilo que eles tomam aos Franceses, e aos Franceses aquilo que eles tomam aos Ingleses; e, contudo, ainda ninguém disse que tais compras são contrárias ao Direito Natural: os novos Filósofos querem um direito para si, outro para os outros; quando se acham mais fortes, dizem que o Direito Natural é o da força; quando se acham mais fracos, dizem que o Direito Natural é o da igualdade: eis aqui a boa Filosofia da moda.

[31] La Harpe, Histoir. Général. des Voyag., tom. II, pág. 212, e tom. III, pág. 364.

[32] Se isto é verdade, como ou com que direito se há de impor a pena de prisão, e, por consequência, da perda de liberdade e de serviço publico para sempre, e, por consequência, de escravidão perpétua a um membro da Sociedade que não cedeu, nem podia ceder um tal direito que ele mesmo não tinha, como dizem os tais chamados Filósofos da humanidade, e muito menos para ser atormentado perpetuamente, pena que eles dizem ainda mais rigorosa do que a de uma morte passageira, e, por consequência, mais contrária ao Direito Natural do que a pena de morte passageira segundo os seus mesmos princípios?  É necessário confessar que tais Filósofos ou são inconsequentes, e que por isso não merecem o nome de Filósofos, ou que eles têm feito um jogo de palavras para imporem à multidão debaixo do nome do Direito Natural, ou que eles não entendem ou de propósito o deixaram indefinido, como a Lei escura, para tormento dos que a devem executar.

[33] Desta providência usou a Inglaterra para cultivar as terras da América setentrional. Histoir. Philosoph. et Politiq. Tom. VII, liv. 18, cap. 23, pág. 99. La seconde classe de leur Colons fut autrefois composée de malfaiteurs, qui, etc.

[34] Muitas Nações de negros da Costa de África, e especialmente da Costa do Ouro ou da Mina, estão persuadidas por um ponto de crença da sua Religião que eles são condenados por Deus a serem para sempre escravos dos Brancos, sem alguma esperança de ver mudada a sua condição (a). É fazer injúria a um daqueles negros o dizer-lhe que é um Homem livre (b), porque eles só dão esta denominação aos que eles querem chamar bárbaros, que matam os seus prisioneiros e não os vendem como fazem as outras Nações. (a) La Harpe, Histoir Génér. des Voyag., tom. III, liv. 5, chap. 2, pág. 154: “Ceux (les Nègres), qui regardent Dieu comme l’unique Créateur, soutiennent que, dans l’origine, il créa des Blancs et des Nègres; qu’après avoir considéré son ouvrage il fit deux présents à ces deux espèces de créatures, l’or et la connoissance des arts; que les Nègres, ayant eu la liberté de choisir les premiers, se déterminèrent pour l’or, et laissèrent aux Blancs les arts, la lecture et l’écriture (note-se que os negros bárbaros não sabem ler nem escrever); que Dieu consentit à leur choix; mais qu’irrité de leur avarice il déclara qu’ils seraient les esclaves des Blancs, sans aucune espérance de voir changer leur condition”. (b) La Harpe, Histoir., tom. II, liv. 3, chap. 2, pág. 53: “Ils (les Nègres Sererés) sont entièrement nuds. Ilis n’ont aucune correspondance de commerce avec les autres Nègres. S’ils reçoivent une injure, ils ne l’oublient jamais. Leur haine se transmet à leur postérité, et tôt ou tard elle produit la vengeance. Leurs voisins les traitent de sauvages, et de barbares; c’est outrager un Nègre que de lui donner le nom de Sereré. Ainsi ces hordes d’esclaves regardent comme une injure le titre d’homme libre”.

[35] Génese, XXXI, 27 e 28.

[36] Todas as coisas têm um preço de estimação: o Homem civilizado é de um preço inestimável entre as Nações civilizadas; o Homem bruto e selvagem tem o preço que lhe dá a sua Nação; querer comparar a estimação do Homem civilizado com a do Homem selvagem é ou não saber estimar os homens, ou é ultrajar o Homem civilizado e querer de propósito confundir o branco com o preto.

[37] Disse “ao menos”, porque a Rússia, a Polónia, a Hungria ainda conservam muitos escravos, e, contudo, são Nações polidas e civilizadas e sem dúvida mais sábias e mais prudentes do que os furiosos Revolucionários da França que se dizem Filósofos.

[38] Eu não digo que a escravidão é conforme ao Direito Natural primário e absoluto enquanto proveniente da Natureza, que criou todos os homens livres e no estado de independência: eu só falo do Direito Natural secundário ou relativo, enquanto proveniente da Natureza que, no estado da Sociedade e no meio das circunstâncias, manda ao Homem que, entre dois males, escolha sempre o menor e o menos prejudicial à sua vida e à sua existência. V. § XIX e a sua Nota.

[39] Note-se que esses Declamadores furiosos não declaram o nome do seu curioso Viajante, como era de necessidade, para se saber se era algum Homem de boa fé é inteligente, que merecesse todo o crédito, pois que sobre o testemunho de um tal incógnito é que se funda todo o seu sistema contra o Comércio do resgate dos escravos da Costa de África, e por isso que eles ocultam o nome daquele que eles sabem, que era de necessidade saber-se, deram mais uma prova das imposturas com que têm enganado aos Homens sem reflexão ou tão perversos como eles.

[40] Faustin., Oder. das Philosophische Jahrhundert. tom. 1, cap. 34 pág 120, e seg. edição, 3, 1780.

[41] E que se dirá das guerras da Europa por terra e por mar, aumentando a fúria dos elementos contra as desgraçadas vítimas da obediência? Guerras ainda desconhecidas aos mesmos bárbaros dos Sertões da África. Será porventura para fazer escravos para vender?

[42] Cour. de Lond. de 19 de Abril de 1793.

[43] “À medida que se compram os Negros, se prendem dois a dois; mas as mulheres e os pequenos tem a liberdade de correr por todo o Navio; e, quando se tem perdido a terra de vista, soltam-se também os homens. Eles recebem a sua comida ou ração duas vezes por dia. Nos dias de bom tempo se lhes permite estar sobre o tombadilho ou coberta do navio desde as sete horas da manhã até a noite. Todas as segundas-feiras se lhes dão cachimbos e tabacos para fumar e sua alegria mostra bem o quanto eles agradecem este favor, que e uma das suas maiores consolações na sua miséria. Os Homens e as Mulheres habitam separadamente, e as suas habitações são limpas todos os dias. Desta sorte, diz Snelgrave que um Capitão bem disposto conduz facilmente a mais grande carregação de negros”. La Harpe, Histoir. Génér. des Voyages, tom. III, liv, 5, pág. 84. “Antes de embarcar os negros que chegam do interior das terras da África, o uso dos portugueses de Luanda, é de os bem tratar em uma grande casa destinada para este emprego. Eles lhes dão azeite de palmeira ou de dendém para esfregarem o corpo e se refrescarem. Se não há navio pronto para os receber, ou se eles não são muitos para completar uma carregação, os senhores os empregam na cultura das suas terras. Quando eles estão a bordo, os Capitães tomam cuidado da saúde de tais escravos: eles são dos de remédios, sobretudo de limão e de todos os remédios próprios para livrar do escorbuto; se algum deles adoece, é logo separado dos outros e se lhe faz observar um regime saudável. Nos seus Navios de transporte os Capitães lhes dão esteiras, que são mudadas regularmente de doze em doze dias: o interesse mesmo conduz muitas vezes à humanidade.” La Harpe, op. cit., liv. 6, chap. 1, pág. 362. Note-se que La Harpe, que refere este tratamento dos escravos, não era português, era um dos primeiros promotores da Seita Filosófica, cujos erros ele reconheceu depois, e contra os quais protestou, antes de sua morte. Note-se mais, que este costume dos Portugueses tratarem bem os escravos que se transportam para o Brasil, é em execução do Alvará de 18 de Março de 1684, inserido na Col. 1 à Ord. liv. 4, tt. 42, n.° 3. 

[44] Entre as Nações Bárbaras dos Pretos da África não há homens livres   ( a); um é o supremo Déspota, todos os outros indivíduos são gradualmente escravos; entre eles não há açoites, não há cadeia, não há galés nem serviços públicos para castigo e correcção dos maus; a escravidão perpétua, a venda para fora do seu País natal e além dos mares, a morte, enfim, são os castigos ordinários, ainda mesmo por culpas muito leves. Ora, se entre as Nações civilizadas e Cristãs, onde aquele que mata o seu escravo é castigado com as penas de homicida, ainda contudo se dizem haver alguns senhores tão bárbaros, de tão mau génio e tão faltos de educação e de Religião, que açoitam e tratam mal e cruelmente os seus escravos, como se poderá dizer que os Pretos da África são homens livres ou que são tratados pelos seus senhores e que vivem em um estado feliz? Não é isto confessarem tais Declamadores que ou eles não têm ideia alguma da História das Nações Bárbaras e dos Pretos de África, ou que eles querem de propósito impor à multidão com pinturas de um paraíso que não existe? (a) La Harpe, Histoir. général des Voyag., tom. II, liv. 3, chap. 2, pág. 53: “Ces hordes d’esclaves regardent comme une injure le titre d’homme libre”.