12-12-2007

 

 

O Portugal de 1822, visto por um Italiano

 

 

1. O Conde Giuseppe Pecchio nasceu em Milão a 15 de Novembro de 1785 e faleceu em Brighton, em Inglaterra em 4 de Junho de 1835. Foi educado pelos Padres Somascos, Congregação fundada por um nobre veneziano chamado Jerónimo Emiliano (1486-1537), que depois foi canonizado.  Entre os seus mestres contou-se o célebre filósofo e literato, Francesco Soave (1743-1806). Tendo-se doutorado em Direito em Pavia, entrou no Conselho de Estado italiano (1810), mas a sua participação na revolta de 1814, obrigou-o a regressar à vida privada. Escreveu então a obra Saggio storico sulla amministrazione finanziera dell' ex-Regno d' Italia dal 1802 al 1814. Lugano, 1820. Nomeado em 1819 deputado da Assembleia Provincial de Milão, a sua participação na Revolta do Piemonte de Março de 1821, obrigou-o a exilar-se na Suiça.

As suas convicções liberais incitaram-no a querer conhecer os países onde havia já governos constitucionais  e, assim, decidiu visitar a Espanha e Portugal: demorou-se seis meses na primeira e três meses entre nós. Documentam a sua passagem por Espanha dezanove cartas escritas a uma inglesa residente em Itália, Lady Jenny O., que ele na versão italiana chama carinhosamente “Amabile Giannina”. A Portugal referem-se doze cartas escritas à mesma senhora, mas a primeira foi escrita a 30-1-1822, em Cádis e, por isso, não foi reproduzida na edição portuguesa, com o título “Cartas de Lisboa , 1822”. A última carta (n.º 11) tem a data de 1 de Junho de 1822; Pecchio regressou então à pressa a Espanha, onde piorava a situação politica, com perigo para as ideias liberais.

Em 1823, foi para Inglaterra. Candidatou-se a um lugar de professor de italiano na Universidade de Londres, mas desistiu quando se deu conta da pouca importância do cargo. Foi nomeado depois mestre de línguas estrangeiras na Universidade em Nottingham. A seguir foi viver para Brighton.

Em 1825, foi encarregado junto com o Conde de Gamba, de levar, em nome do Comité Pró-Helénico 60 000 libras esterlinas aos Gregos.

Em Setembro de 1828, casou com uma senhora de razoável fortuna, Philippa Brooksbank, filha de Benjamin Brooksbank e de Philippa Clitherow, de quem não teve filhos. Viúva, sua esposa veio a falecer em 24 de Janeiro de 1869.

Para além dos livros respeitantes aos países que visitou, Espanha, Portugal, Grécia e Inglaterra, Pecchio escreveu a Storia dell’economia pubblica in Italia, Lugano, 1829, a biografia Vita di Ugo Foscolo, 1830, poeta e literato de quem era amigo, e Storia critica della poesia inglese, tomos I a IV, que ficou incompleta.

 

2. Sobre as cartas escritas de Lisboa por Giuseppe Pecchio, foram publicados entre nós um comentário em artigo de Giuseppe Carlo Rossi e uma tradução para português, com anotações de Manuela Lobo da Costa Simões. Estranhamente, ambos os textos têm por base a tradução francesa e não o original italiano que (pelo menos agora) existe na Biblioteca Nacional.

O original italiano, para além das 12 cartas que falam de Portugal (incluindo a primeira, endereçada de Cádis), contém ainda mais seis cartas escritas de Madrid de 20-6-1822 a 8-8-1822.

 

3. Pecchio, como bom liberal, é um optimista sempre disposto a ver o lado positivo do seu semelhante. Revela real admiração pelos portugueses, lamentando o atraso económico do País; e admira muitos dos nossos políticos. Admira os rostos portugueses, “homens robustos, esbeltos e de fisionomia agradável”. Os portugueses chegaram ao Reino da liberdade, como aquele que sai de repente das trevas: a luz ofusca-o, não distingue ainda qualquer objecto.

Aponta o dedo à política imperial da Inglaterra que (diz ele) nos tratou como uma colónia:

 

Se fosse vero che Ulisse fosse il fondatore di Lisbona bisognerebbe ammirare oltre il suo génio astuto anche il suo buon gusto. La situazione è incantatrice. È un ingresso veramente degno dell’Europa. Dal mio tavolino domino coll’occhio il Tago e la sua riva sinistra. Che peccato che vi sia qui una inimicizia contro gli alberi come in Ispagna! Io sperava che gl’inglesi in un secolo di dominio avrebbero adornate le rive di questo maestoso fiume di boschi, di giardini, di case di campagna. Non hanno piantato neppur un albero pei vivi; soltanto quattro cipressi pei morti nel loro cimitero. Hanno goduto il Portogallo da usufruttuari. Più egoisti dei frati non hanno fatto una miglioria in tanti anni che possedettero questa colonia.     Pag. 14

 

Se fosse verdade que Ulisses foi o fundador de Lisboa, dever-se-ia admirar nele o bom gosto, tanto quanto o seu génio e astúcia. A situação desta cidade encanta. É uma entrada verdadeiramente digna da Europa. Da minha janela domino o Tejo e a sua margem esquerda. Que pena haja aqui, como em Espanha, antipatia contra as árvores! Comprazer-me-ia que durante um século de domínio, os Ingleses tivessem enfeitado de árvores, de bosques, de jardins e de casas de campo, as margens deste rio majestoso, mas eles serviram-se de Portugal como usufrutuários. Mais egoístas que os monges, não fizeram um único melhoramento durante o grande número de anos que dominaram esta colónia…  Pag. 21

Contrastando com as deficiências que encontra na vida da cidade, Pecchio  fica extasiado com o sistema político e vai religiosamente assistir a uma sessão das Cortes. Admira a eloquência de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), de Manuel Borges Carneiro (1774-1833) e até do Padre João Maria Soares de Castelo Branco (1767-1831), da Universidade de Coimbra.

Pecchio é anti-clerical e não o esconde. Louva o Marquês de Pombal pela expulsão dos Jesuítas e pela condenação de Malagrida. E lamenta que em Portugal não sejam permitidos todos os cultos.

A carta de 12-3-1822, refere-se a uma viagem a Londres, que visita pela primeira vez, onde irá levando consigo as poesias completas de Camões. “Quanta simpatia sinto por esse poeta soldado, o mais infeliz de todos os poetas!”, escreve ele.

Em Londres, reencontrou o seu amigo Ugo Foscolo, que abraça com prazer.  Volta então às relações de Portugal com Inglaterra:

 

I portoghesi dicono male di Wellington, malissimo di Beresford e benissimo di Wilson. I portoghesi che sono orgogliosi non possono perdonare ai primi due d’avere più orgoglio di loro. Wilson invece per la sua popolarità, pel suo valor romanzesco, per la pubblica giustizia che rese all’intrepidità dei soldati portoghesi lasciò fra loro una grata memoria. Era dunque ansioso di conoscere personalmente questo generale, questo cavaliere errante della liberta. Il suo coraggio dev’essere temerario. Non avete osservato come tutta la sua persona pende innanzi, come si slancia nell’attitudine di un ussaro che carica? Il vostro re lo ha destituito di generale perché impedì che gli ammazzassero il suo popolo. Ha però di ciò un largo compenso. Egli ha il brevetto di tutti i popoli liberi.  Pag. 38

Os portugueses dizem muito mal de Wellington e ainda pior de Beresford mas em contrapartida, dizem muito bem de Wilson. Os portugueses, que são infinitamente orgulhosos, não podem perdoar aos dois primeiros o terem querido ser mais do que eles. Wilson, ao contrário, pela sua popularidade, pelo seu valor cavalheiresco e pela justiça que prestou publicamente à valentia dos soldados lusos, deixou entre eles uma recordação que lhes é cara. Eu devia estar portanto impaciente por conhecer pessoalmente este guerreiro, este cavaleiro andante da liberdade. A sua coragem deve ser levada até à temeridade. Não reparaste como todo o seu corpo está inclinado para a frente, na atitude de um hussardo que carrega sobre o inimigo? O vosso rei destituiu-o da patente de general porque ele impediu que se degolasse o povo, mas Wilson foi largamente recompensado por isso: recebeu um brevet de todos os povos livres.   Pag. 60

 

Os papéis desempenhados por Beresford e Wellington em Portugal são por demais conhecidos. Já o de Sir Robert Wilson (1777-1849) o é menos. Foi ele o criador da “Loyal Lusitanian Legion” corpo não muito grande, de cerca de 2 000 homens, que integrava muitos dos oficiais portugueses que haviam fugido para Inglaterra, depois da primeira invasão francesa, quando Portugal esteve sob o domínio francês por seis meses. A Legião distinguiu-se sobretudo em Espanha, na batalha de Alcântara em 14 de Maio de 1809 e na batalha de Talavera, em 27 e 28 de Julho de 1809. A Legião acabou por ser integrada nas forças de Beresford e Sir Robert Wilson regressou a Inglaterra não muito satisfeito com isso. Sir Robert Wilson elogiava muito a valentia dos militares portugueses.

Pecchio fez também uma visita ao Parlamento Inglês que não o entusiasmou.

Na carta de 20-5-1822, refere-se à iminente independência do Brasil  que ele acha natural, depois de a Corte ali ter estado durante 14 anos. Acha que o Brasil só tem a ganhar e Portugal poderá pelo menos poupar a força militar que ali tem de doze mil homens.

A carta de 25-5-1822 refere um encontro com o General Bernardo Correia de Castro Sepúlveda (1790 - 1875) que, no Porto, comandou a revolta liberal de 24 de Agosto de 1820, a partir do Regimento de Infantaria n.º 18, que comandava. Não lhe poupa elogios e dele refere esta interessante declaração:

 

L’opinione del generale Sepulveda sopra il maresciallo Beresford mi parve egualmente franca ed imparziale. Egli attribuisce a quel maresciallo il merito d’avere disciplinato, ed agguerrito l’esercito portoghese. “Prima di lui (diceva egli) la professione più avvilita in Portogallo era quella delle armi. I grandi della corte si compiacevano di far conferire ai loro servi il grado di tenente, e di capitano. Beresford sottrasse l’uffiziale a questa ignominia. Ei ci lasciò un esercito pieno d’onore che gareggiò la disciplina e valore coll’esercito inglese. In guisa che non abbiamo fatto alcuna innovazione nè regolamenti militari da lui introdotti. Beresford era un déspota nell’amministrazione, però integro. Beresford non ebbe la grandezza d’animo di salvare dal patibolo il valoroso generale Gomez Freira (sic) con dodici altri uffiziali portoghesi che cospirarono contro la sua persona nel 1817; ma Beresford avrà sempre un diritto alla nostra stima e riconoscenza per averci dato una esistenza militare.” Pag. 55/56

A opinião do general Sepúlveda sobre o marechal Beresford pareceu-me, igualmente, franca e imparcial. Ele atribuiu-lhe o mérito de ter tornado aguerrido e disciplinado o exército português.  “Antes do marechal Beresford, - dizia Sepúlveda – a profissão mais aviltada em Portugal era a das armas. Os grandes da Corte compraziam-se em conseguir patentes de tenente e capitão para os seus criados. Beresford livrou os oficiais desta ignomínia; deixou-nos um exército honrado que rivaliza em disciplina e bravura com os soldados ingleses. E isto é de tal maneira verdade, que não fizemos qualquer alteração nos regulamentos militares que devemos a este marechal. Beresford era um déspota na administração, mas era íntegro. Beresford não teve a grandeza de alma de salvar do suplício o corajoso general Gomes Freire e doze outros oficiais portugueses, que conspiraram contra eles em 1817, mas terá sempre direito à nossa consideração, por nos ter dado uma existência militar." Pag. 86

Em 1823, Sepúlveda era já Brigadeiro e Comandante Militar de Lisboa, acabando por aderir à VilaFrancada. Mas como aderiu tardiamente, D. Miguel mandou-o preso para Peniche, onde permaneceu um ano. Depois foi para França e aí ficou, mal visto pelos liberais e pelos absolutistas.

Na carta de 29-5-1822, dá mais uma pincelada no retrato da miséria dos portugueses:

 

Piove dirottamente. Non è male, perché senza questi diluvi il letame rimarrebbe nelle contrade sino alla fine del mondo. Per ripararsi dalla pioggia una cinquantina di vagabondi si sono confitti contro la parete del mio albergo. Se vedeste quanti cenci vi sono nel regno che possiede tanti diamanti! In Lisbona vi saranno 300 mila abitanti, ma non vi saranno 100 mila camicie. Lisbona è la più grande scuola del nudo di tutta l’Europa.   Pag. 57

Chove a cântaros. Sem esse dilúvio, que é um grande benefício para esta cidade, a imundície permaneceria nas ruas até ao fim do mundo. Mais de cinquenta vagabundos abrigam-se, neste momento, junto às paredes da minha hospedaria. Se pudésseis ver quantos andrajosos existem neste Reino que tantos diamantes possui, ficaríeis espantada. Há cerca de 300 000 habitantes na cidade de Lisboa, mas estou quase certo que se não encontrariam aqui mais que cem mil camisas. Quase um terço desta população encontra-se seminua. Pag. 89

 

Mas logo a seguir, faz o contraste com as façanhas que tornam Portugal digno da Europa: i) a descoberta do caminho marítimo para a Índia; ii) os portugueses foram os primeiros, em 1760, a destruir a “monarquia universal dos jesuítas”; iii) foram ainda os primeiros a adoptar uma Constituição que servirá um dia de modelo a muitos governos europeus.

Na última carta de Lisboa, de 1-6-1822, Pecchio saúda a “revolução portuguesa que está nas mãos de homens fortes, intrépidos e instruídos.”

ADENDA - 20-7-2009 - A leitura da exaustiva tese de Carlo Colombo, defendida na Università degli Studi di Milano em 2008, leva-me a rectificar e completar o texto supra.

Lady Jenny O. era Jane Elizabeth Harley (1796-1872), a terceira dos filhos do Conde de Oxford e a mais velha das três filhas. Mas é quase certo que nenhuma das cartas lhe foi enviada, até porque na altura ela era namorada de um amigo de Pecchio: o Barão Sigismondo Trechi. A redacção em forma de carta era um truque literário muito utilizado à época. Entretanto, o namorado foi preso e a família Oxford teve de fugir para Paris em Abril de 1821.

 

ADENDA - 10-05-2013 - Carlo Colombo acaba de publicar as cartas com anotações e índices em livro que juntei à Bibliografia.

                     27-05-2015 - O mesmo Carlo Colombo publicou agora na mesma editora - Vittoria Iguazu - o livro CRONACHE - La libertà muore in Spagna, que é a tradução do texto de Giuseppe Pecchio, Journal of military and political events in Spain during the last twelve months, with some introductory remarks on the present crisis by E. Blaquiere. London, 1824. Os livros da editora estão à venda em Lisboa na Livraria Fábula-Urbis na Rua Augusto Rosa, 29, atrás da Sé.

 

 

               TEXTOS CONSULTADOS

 

Tre mesi in Portogallo nel 1822, Lettere di Giuseppe Pecchio a Ledi G. O. , Madrid 1822 per D. Michele di Burgos , 87 pag.

 

José Pecchio, Cartas de Lisboa, 1822, pref. Manuela Lobo da Costa Simões,  trad. Manuel José Trindade Loureiro. Lisboa, Livros Horizonte, 1990, 102 pag.  ISBN:  972-24-0773-2

 

Giuseppe Carlo Rossi, Il Portogallo del 1822 visto da Giuseppe Pecchio, Sep. Aufsätze zur Portugiesischen kulturgeschichte, 2, Münster, Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung, 1961, p. 237-254

 

Anedoctes of the Spanish and Portuguese Revolutions, by Count Pecchio, with an Introduction and Notes by Edward Blaquiere, Esq. , Printed for G., and W.B. Whittaker, Ave-Maria-Lane, 1823.

Online: www.archive.org

 

Giuseppe Pecchio, Semi-serious Observations of an Italian Exile, During His Residence in England, England, 1833

Online: http://books.google.com

 

Giuseppe Pecchio, Journal of Military and Political Events in Spain During the Last Twelve Months, Spain, 1824

Online: http://books.google.com

 

Ralph Griffiths, The Monthly Review, a review of:

Narrative of Campaigns of the Loyal Lusitanian Legion During the Years 1809-11 under Brigadier General Sir Robert Wilson, Aide-de-camp to His Majesty, and Knight of the Orders of Maria Theresa, and of the Tower and Sword. With some Account of the Military Operations in Spain and Portugal during the Years 1809, 1910, and 1811. Pag. 346.

Online: http://books.google.com

 

 

 

 

Cyrus Redding,  Literary Reminiscences and Memoirs of Thomas Campbell, London, 1860

Online: http://books.google.com

 

Carlo Colombo, I Tre Mesi in Portogallo nel 1822 di Giuseppe Pecchio, tesi di laurea in Lettere Moderne apresentada à Facoltà di Lettere e Filosofia da Università degli Studi di Milano, ano escolar 2006/2007, [policopiado], 349 fls.

 

Giuseppe Pecchio, I Tre Mesi in Portogallo nel 1822, com anotações e índices ao cuidado de Carlo Colombo, Vittoria Iguazu Editora, Colle di Val d’Elsa (Si), Italia, 2013,  224 pag..  ISBN 978-88-974-4612-5