12-3-2013

 

Fr. Diogo da Assunção (1571 - 1603)

(Pr. n.º 104, da Inq. de Lisboa)

 


 
   

Publicado em Telheiras - Cadernos Culturais Lumiar - Olivais - Telheiras

2.ª Série n.º 7, Novembro de 2014

 

 

A história de Fr. Diogo da Assunção, considerado um mártir do judaísmo,  tem sido mais falada que estudada. A sentença da sua condenação foi transcrita em “O Instituto”, de 1863 . No seu livro sobre António Homem, do final do séc. XIX, António José Teixeira também transcreveu algumas dezenas de folhas do processo, sem grandes comentários. A Prof. Elvira Cunha  Azevedo Mea, do Porto, apresentou um pequeno artigo sobre ele num Congresso em Jerusalém, em 1993. Miriam Bodian inseriu no seu livro Dying in the Law of Moses, publicado em 2007, uma monografia sobre ele, que está bem feita, com pequenas incorrecções sem importância (ex., Viana de Caminha não é Caminha, é Viana do Castelo), mas o volume, (pasme-se), não se encontra em nenhuma biblioteca pública de Lisboa.

A Inquisição teve muitas dúvidas sobre o modo como deveria acusar Fr. Diogo da Assunção, queimado vivo aos 32 anos: herege ou cristão novo? Havia de facto um bisavô cristão novo, mas preferiram não o apresentar como tendo parte de cristão novo na Lista do auto da fé de 3 de Agosto de 1603, embora o Assento do Conselho Geral quisesse ter sublinhado esse facto. Qual penso terá sido a razão destas hesitações, di-lo-ei no final.

Parece certo que na infância e no meio familiar de Fr. Diogo, nunca se falou de rituais ou cerimónias judaicas e muito menos se fizeram em sua casa. No convento, por volta dos 29 anos, perdeu a fé na religião católica e cultivou essa descrença com o que tinha mais à mão: o Antigo Testamento, sobretudo os Salmos do Breviário. Tinha um temperamento rebelde e se há coisas autoritárias uma delas é a religião católica com a imposição de mistérios e dogmas e a frequência obrigatória dos sacramentos. Daí a uma crise de fé, foi um passo. A seguir deu outro, procurando o que estava à mão e isso foi o Judaísmo que tem muitos ritos e cerimónias, mas não tem nem mistérios, nem dogmas, nem sacramentos. Se fosse uns três séculos mais tarde, seria talvez deísta, quatro séculos, seria agnóstico ou ateu.

Era pessoa inteligente, com boa memória e saberia bastante latim, pois enche os seus depoimentos de citações nessa língua. Uma questão importante é saber se ele era ou não doido, na linguagem simples do Regimento. Ao longo do processo, nota-se a preocupação dos Inquisidores em demonstrarem com sucessivos depoimentos que ele não o era, que tinha bom juízo e entendimento. Quando os Inquisidores insistem muito num ponto, é de desconfiar que não seja verdade. A simplista noção de loucura do Regimento não permitia analisar correctamente o estado mental dos réus. Só mesmo os doidos varridos, que não diziam coisa com coisa, é que eram considerados doidos.

A fuga de Fr. Diogo do convento para ir pedir ajuda de dinheiro e roupas a Gaspar Bocarro, um cristão novo que ele não conhecia e que morava a dois ou três quilómetros do Convento da Castanheira, em Cachoeiras, revela uma pessoa bastante desfasada das realidades. Pior ainda, aceitar a sugestão de Bocarro para ir pedir ajuda a Diogo de Sousa, um fidalgo cristão velho de Cadafais, a um quilómetro dali. Seria muito trabalhoso para ele, mesmo quase impossível, limpar-se na Inquisição de todas as heresias de disse na sua confissão ao fidalgo e que este transmitiu aos Estaus com todos os detalhes.

Teófilo Braga, na História da Universidade de Coimbra diz que ele era louco.  Também um confrade dele, Fr. António de Abrunhosa (Pr. n.º 2246, de Évora) declarou na Inquisição que tinham queimado vivo um doido. António Joaquim Moreira diz igualmente que ele “certamente era doido”. Mas de facto, os Inquisidores só tratavam como doidos os que perdiam completamente o tino; nos termos do Regimento, não os podiam condenar e tinham de os internar no Hospital até que se curassem ou até à morte. Não era o caso de Fr. Diogo da Assunção, que não era bem certo, mas não era totalmente louco.

Fr. Diogo foi considerado mártir do judaísmo. O seu caso foi muito falado na altura de tal modo que o próprio Menasseh Ben Israel escreveu que tinha uma cópia da sentença. No entanto, considero que a chamada Confraria de Frei Diogo, ou São Diogo, em Coimbra, poderá nunca ter existido e pode ter sido uma invenção dos cristãos novos para preencher confissões na Inquisição. Toda a actuação da Inquisição de Coimbra na 1.ª metade do séc. XVII precisa de um estudo aturado para desfazer lendas.  Por ex., a Prof. Elvira Mea conta no artigo citado, um episódio, dizendo que D. Branca Pais (Pr. n.º 2304, de Coimbra) “confessara” que “o Sam Diogo, que ela mandara pintar debaixo do nome de Sam Diogo d’Alcalá, era Frei Diogo, o que morreu queimado vivo pelo Santo Ofício em Lisboa, dizendo que ele era um dos maiores mártires que tinha a Lei de Moisés, pois dera a vida por ela; e que também a imagem de Nossa Senhora era a rainha Ester, dizendo que se encomendassem àqueles santos”. Consultando o processo, conclui-se que ela não confessou nada, o processo transcreve o depoimento de Sor Clara de Santa Maria (Pr. n.º 212, de Coimbra) que acusa a Madre Superiora, D. Branca Pais,  de ter dito aquilo. Não é a mesma coisa.  Note-se ainda que a denunciante, Sor Clara, teve depois, em 1633, um processo por perjúrio (Pr. n.º 212A, de Coimbra).

 

 

GENEALOGIA

 

 

Bernaldo Dias, com fama de cristão novo e de baptizado em pé, viveu em Lorvão e  teve filhos

1 - Baptista Dias, que teve um filho

                                         - João Baptista, de Lorvão

2 - Leonor Bernaldes, que casou com Nuno Velho (em 2.ªas núpcias dele)  de Cantanhede e tiveram

                                         - Fernão Velho, defunto, que casou em Lisboa, defunto

                                         - Branca Maria, que casou com Pero da Costa e tiveram

                                                             - João Travassos

                                         - Nuno Velho, que casou com Maria de Oliveira, de Aveiro e que foram viver para Viana do Castelo, e tiveram

                                                             - - Diogo da Assunção, relaxado

                                                               - Pero Velho Travassos, casado com Ana da Rocha, moradores em Viana, onde ele serve a governança da vila

                                                             - - Fernão Velho, solteiro

                                                             - - António de Oliveira, solteiro

                                                             - - Manuel Travassos, clérigo de missa, todos moradores com o pai em Viana.

                                                             - - Nuno Velho Travassos, e

                                                             - - João Velho, ambos na Índia, servindo em Ceilão.

 

Fr. Diogo da Assunção entrou para a Ordem dos Franciscanos, quando tinha cerca de 21 anos. Com ele entrou também um conterrâneo seu de Viana do Castelo, Jerónimo Fagundes, que na Ordem tomou o nome de Fr. Jerónimo de Jesus. Professaram os dois daí a um ano e pouco no Convento dos Capuchos. Havia na Ordem uma regra que proibia a entrada de cristãos novos, determinando que a profissão de fé ficaria sem efeito se se provasse a existência de sangue judeu em qualquer parte que fosse. Quando já tinham recebido ambos as Ordens de Epístola e de Evangelho (subdiácono e diácono), o Fagundes começou a espalhar a fama de cristão novo de Diogo. Possivelmente por isso, Jerónimo Fagundes e os outros do seu tempo foram ordenados sacerdotes e Fr. Diogo ficou para trás. Este facto deixou-o muito revoltado.

Entretanto, fora mandado para o Convento da Castanheira  (do Ribatejo), onde estava já há uns anos. Era uma pessoa reservada, embora conhecido como tendo um feitio colérico. Em geral dava-se bem com os companheiros e fazia serviço de enfermeiro, sempre que era preciso.

No dia 11 de Agosto de 1599, teve a infeliz ideia de fugir do convento. Foi ter com Gaspar Bocarro, um cristão novo com alguns bens que morava nas Cachoeiras, pedindo uma roupa secular e algum dinheiro para ir embarcar em Setúbal para fugir para o estrangeiro. Gaspar Bocarro não o atendeu e disse-lhe para ir ter com Diogo de Sousa, que morava perto. Era meter-se na boca do lobo. Diogo de Sousa chamou os frades do convento para o levar e fez um relatório completo com todos os detalhes da conversa que tivera com ele.

Deu o relatório que escreveu a Vasco de Carvalho, morador no Jogo da Pela, para este o ir entregar à Inquisição, o que ele fez a 20 de Agosto. É o primeiro documento do processo n.º 104.

img. 17 – “O fidalgo que esta der a Vossas Mercês dirá quem eu sou; determinado estava fazer isto eu pessoalmente, mas tolhe-me o andar mal disposto. Um frade ordenado de Evangelho veio ter comigo que lhe desse ajuda para ir para Inglaterra ou Flandres. E pelo que mais me descobriu, sendo coisas muito grandes contra a nossa santa fé católica é judeu e crê na lei de Moisés, e ele de si tenho sabido é cristão-novo. Dei ordem com que se levasse ao seu próprio mosteiro em segredo; por honra da Ordem, nele está preso a bom recado. A relação de tudo isto tenho feita na verdade, e jurada pelo hábito de Cristo que tenho, avisando-me v. m. mandarei selada com as minhas armas e muito segura, à qual poderão v. m. dar tão inteira fé como a mim próprio, até eu poder ir sendo necessário. Os seus frades consultando sobre isso me disseram, que eu devia dar conta a v. m., que eles fariam dele o que v. m. ordenassem, e me pediram muito segredo, o qual lhes guardarei. E Nosso Senhor guarde a V. m. como pode. 

 

Dos Cadafais, termo de Alenquer, hoje 18 de agosto de 99. 

Diogo de Sousa.”  

 

img. 19 –

Relação do testemunho de Diogo de Sousa, que ele apresentou na mesa, quando nela testemunhou contra o Fr. Diogo.

 

Hoje onze de agosto de 1599 anos estando eu nesta minha quinta dos Cadafais, que é no termo de Alenquer, veio ter comigo um frade capucho, o qual eu nunca tinha visto, nem ouvido que me lembre, e depois soube se chamava frei Diogo da Assumpção, e que era de Evangelho, e fez que nos recolhêssemos para uma casa, e me disse que fora ter com um homem dizendo-lhe andava fora do seu mosteiro e desagasalhado, que o socorresse, e o favorecesse; que este homem lhe dissera viesse ter comigo perguntando por mim, e que eu era fidalgo, que lhe daria remédio, e o aconselharia no que devia fazer, e que logo ficara contente, e satisfeito, que havia oito anos era frade nomeando-me muitos parentes seus, dos quais só conheço a Pero da Costa, e a João Travassos seu filho, que me queria descobrir muitas cousas debaixo de minha fidalguia e palavra, e que assim lha desse de as enterrar (o que fiz, e folgo muito de lha ter quebrada por ser neste particular), que ele estava muito arrependido porque tudo o que havia entre os frades eram mentiras, falsidades e enganos, e que ele mo mostraria por papeis, que logo tirou cuidando eu que seriam aquilo algumas pelejas, que lá teria, começou a ir lendo cousas, que diz tirou de livros do mosteiro por muitas vezes e ás furtadas porquanto não tinha tempo, por lhe não deixarem ter papel nem tinta, e indo lendo em latim começava a encontrar a nossa santa fé, torcendo as palavras, dando-lhe o sentido que ele tinha no coração, e como o eu vi ir mal encaminhado, por tirar dele e o segurar o fui ouvindo dizendo-lhe, que os homens que não sabiam latim eram selvagens, e que eu me tinha por tal pois o não sabia, ainda que o mais do que dizia entendia; ao que me respondeu, que por isso eles tinham todas as cousas da lei em latim, porque a não entendessem todos, a qual diziam haveis de crer isto e senão matar-vos-ão, e logo propus mandar recado ao seu guardião de Santo António da Castanheira, aonde era morador, e não se me ir das mãos; e fazendo-me eu meio ignorante, o ouvi muito a propósito, para saber em que lei cria, e na em que estava firme, interpretou aquela a seu sabor dizendo, que Cristo queria dizer rei ungido, como foram muitos do testamento velho e que Jesus o não fora, e pois tomara o nome que não era seu, pagasse numa cruz como pagou; que Jesus houvera outro deste nome, que a lei boa havia de ser aceitada de todo o povo, que a dos cristãos a fizeram homens, que andam fugindo e ás escondidas por entre penedos; que crescera e a creram, porque então eram gentios, e não sabiam que Deus mandava no Deuteronómio, que as suas palavras se não torcessem, nem lhes dessem outro sentido mais que o literal (e assim o tem escrito), e que eles cá diziam, que a escritura sagrada era como nariz de cera, que a levavam para onde queriam; que Aristóteles diz que um semelhante gera outro semelhante; pelo que tem de ver homem com pão? que os próprios frades franciscos e domínicos têm grandes controvérsias sobre muitas cousas, uns seguindo a Escoto ou Soto, e outros a Santo Tomás, que boa estava a lei aonde não havia firmeza, que lhe perdoasse dizer aquelas cousas assim, porque não era mais em sua mão, por desabafar do que dentro tinha, e eu pelo ir detendo, porque esperava os padres, que neste tempo saíam fora, dizendo-lhe fechasse a porta por dentro, e muito á pressa escrevi ao padre guardião, que tanto que aquele visse, viesse logo ter comigo, porque cumpria assim á nossa santa fé. Tornando, lhe perguntei se estava tudo aquilo em latim, que fosse dizendo mais daquelas cousas, e lhe dizia valha-me Deus, quantas cousas há no mundo; e logo disse que Maria (nomeando-a as mais das vezes assim) depois de parir a Jesus parira a S. Thiago e a S. João, os quais eram irmãos de Jesus, e que cá diziam por escapula a isto, que lhe chamavam irmãos por que S. Thiago se parecia muito com Cristo, e que José tivera acesso com Nossa Senhora, que nisso não havia que fazer, ao que me passou pelo sentido dar-lhe logo de punhaladas, o que fizera se não fora religioso. Tirou depois disto um livro dos sacramentos, e leu que acertando um rato de comer a hóstia consagrada, se pudessem o torrassem e o queimassem, e a cinza se pusesse no sacrário, ao que como escarnecendo: ora olhai lá Deus metido num rato! que havia muito não recitava de coração horas nem orações do coro, e que por trazer a sua consciência assim, e estar tão desgostoso lhe diziam os outros padres, que andava muito magro, e ele lhes respondia que era frenético de sua condição, que só rezava os salmos de David com tenção e devoção porque eram santos e bons, e que pois Deus lhe dera juízo para conhecer aquelas cousas, se não buscasse o remédio de sua salvação, que seria digno de mor pena, que todo o que soubesse ler a lei dos judeus e a não guardasse, se perderia, e que ver a majestade dos ofícios divinos dos judeus e aquelas cerimónias não havia mais que ver, falando dos santos que então houve, e dos profetas nomeando a Moisés e a Aarão, e a outros que eram grandíssimos, e que os santos que os cristãos faziam eram uns coitados, que acabavam por ais entre penedos e cheios de piolhos; que os apóstolos todos eram parentes de Jesus, e S. Pedro não andara sempre com Cristo, que pescava e ali vinha ter com ele Cristo; que se um bode ou cabra degolado no altar tirava os pecados, como os não tirava a morte de Jesus, o qual se se sujeitou á lei dos judeus, como depois quis fazer outra em contrário (que se a sua fora boa os judeus o não mataram), e que mandou Cristo que no baptismo ficasse tudo; que daí a quatro anos circuncidou S. Paulo a Timóteo, e S. Pedro o fizera a outros depois do baptismo, e que dizia Lutero que um inimigo de Jesus fizera os sacramentos, que Lutero e outros muitos foram cristãos, e, por não acharem fundamento na nossa lei, se foram dela, e por serem homens insignes fizeram seitas novas por ficar fama deles; que muitos havia que conheciam todas estas cousas, mas que por comerem e viverem sofriam; que a ajuda e favor que me pedia era que lhe desse algum vestido ruim, para se poder ir até Setúbal, onde havia muitas urcas para se embarcar e ir-se a Inglaterra ou Flandres, e (aquietando-o que falaríamos de vagar sobre isso), começou a dizer mais que se a lei de Cristo fora boa, que havia de ser comunicada a todos, que como podia ela ir aos negros e outros, (cem mil terras), pois la não podia haver sacramento por falta do pão e vinho, que a isto diziam eles que por ser de pouca quantidade se podia levar, e que diziam mais que Jesus assim como crescia no corpo crescia no saber, que em Deus não há a acrescentar nada de novo, que dantes não houvera mais que o Pater noster que os papas acrescentaram cada um como quiseram, e que uma fora papa, que o lenho da cruz havia tanto pelo mundo que não bastaram muitos madeiros, que uma velha vinha numa barca e dissera quem me dera um pequeno de lenho, e que o barqueiro tomara um pedaço de pau e lho dera por lenho, e que dali ficara o lenho da barca, e que diziam que fizera muitos milagres pela fé da velha zombando; que S. Francisco diziam suas crónicas que nunca este reino seria sujeito a Castela, que assim como mentira nisto mentiria no mais, o qual o enterraram (não me lembra em que parte disse), e que depois o trouxeram a Jesus, e que um cardeal dissera á hora de sua morte a um abade amigo seu que lhe vira as chagas, que se fora naquele lugar enterrado como podia cá ter as chagas e estar em pé, desdenhando disto que era graça e patranha, e que São Tiago também fora sepultado em Jerusalém, como podia vir o seu corpo de Galiza, que o mesmo era também falso, (e que os profetas diziam que o que viesse em nome do Senhor se chamaria Emanuel, que queria dizer Salvador, que Jesus não tivera tal nome, que nós lho puséramos) que a cristandade havia de padecer uma grande perseguição no ano de seiscentos e um, e que já se lhe ia aparelhando. Depois de todas estas cousas que se passaram desde pela manhã até o jantar, lho mandei dar, e lhe disse repousasse um pouco, deixando guarda sobre ele, e me fui falar com os padres que me aguardavam numa casa aqui junto, e por o padre guardião estar doente mandou o padre presidente e o padre frei António, com o qual falei nisto, e lhe dei ordem como viessem ter comigo, e me vim para o dito frade, e daí a pouco chegaram os padres, e ouvindo-os ele se meteu logo debaixo duma cama, sem lhe eu dizer nada, e dando-lhes eu de olho o foram tirar e o levaram ao seu mosteiro a bom recado. Hoje, que é o dia seguinte em que isto aconteceu, que são doze de agosto, fui pela manhã ter ao dito mosteiro de Santo António com o padre guardião e com o padre frei António dizendo- lhes, que ia ali para desencarregar a minha consciência sobre eles, e que assim o faria, porque, quando isto não bastasse, estava aparelhado para ir dar conta destas cousas á santa inquisição, o que faria com muita inteireza, se sentira em meu pai, Jorge de Sousa, ou em minha mãe D. Francisca, alguma cousa contra nossa santa fé católica, na qual eu creio como fiel cristão, e nela espero de viver e morrer, e movido como tal digo todas estas cousas bem e fielmente sem acrescentar nada, antes algumas me esqueceram por serem muitas, mas todas as de importância aqui estão; e assim digo mais que pelo dito, e pelas mais conjecturas que neste frade vi, nas mudanças do rosto em estimar umas cousas e zombar doutras, que é tão judeu como todos os que estão em Berbéria crendo na lei de Moisés. Tudo o que acima digo que lhe ouvi passa assim na verdade pelo hábito de Cristo que tenho e nele sou professo. Hoje os próprios 12 de agosto de 1599

Diogo de Sousa. 

 

Por honra dos parentes deste frade digo que me disse mais que não ousara de ir ter com nenhum de seus parentes, nem dar-lhe conta de nenhuma destas cousas, porque pelo próprio caso lhe deram de punhaladas e o mataram. 

Diogo de Sousa

 

A Inquisição não se contentou com o depoimento por escrito e convocou Diogo de Sousa para depor em 27 de Agosto de 1599, depoimento que ratificou no dia seguinte.

 

img. 26

Em 27 do mês de agosto do mesmo ano o referido Diogo de Sousa, cristão velho, de 37 anos, fidalgo nos livros d’El-rei, comendador da Igreja de Santa Maria da vila de Castelo Bom no bispado de Lamego, da ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo, natural dos Cadafais, termo de Alenquer, solteiro, filho de Jorge de Sousa defunto, e de sua mulher D. Francisca de Sousa, viúva, morador na sua quinta nos mesmos Cadafais, veio espontaneamente denunciar a frei Diogo da Assumpção, comparecendo nos Estaus sem ser chamado na audiência da tarde, que fazia o licenciado, Heitor Furtado do Mendoça, deputado do santo Ofício, de comissão do inquisidor, o licenciado Manuel Alvares Tavares.  

 

Culpas contra o réu Fr. Diogo da Assunção, do testemunho de Diogo de Sousa

 

(…) E disse que os dias passados mandou a esta Mesa uma carta em que falava acerca de um frade, que é o que atrás cita, a qual logo lhe foi mostrada e sendo por ele vista, disse que essa era e que era escrita de sua mão e assinada de seu próprio sinal a qual mandara por então estar mal disposto, e que também ele fizera uma relação do que com ele passara o dito frade com tenção de a mandar a esta mesa por então estar mal disposto, a qual logo apresentou e é a que atrás também fica junta e disse ser escrita de sua mão e assinada de seu próprio sinal  mas que depois disso se achara ele com boa disposição para poder vir a esta cidade e que por isso viera só a isto, para em pessoa denunciar o que acerca do dito frade tem para denunciar. E denunciando disse que aos onze dias do mês presente de Agosto pela manhã foi ter com ele denunciante à dita sua quinta um frade mancebo que parece será da idade de vinte e cinco anos pouco mais ou menos, magro, e alvo do rosto, com o nariz sobre o grande e afilado, e bem afigurado; a quem o denunciante não conhece, nem tinha visto, e ia vestido com hábitos de burel da ordem de S. Francisco dos capuchos de Santo António, com a barba e coroa feita com cercilho como frade, e chegando lhe fez reverência pedindo que se quisesse recolher para o ouvir, pelo que entraram ambos em uma casa do seu aposento, onde pediu um púcaro de agua, por ir muito sequioso, a qual lhe foi logo dada; e depois disse que era filho de João Velho, natural de Viana de Caminha, e nomeou alguns outros parentes, os quais o denunciante não conhece, excepto a Pêro da Costa, escrivão da Câmara de sua Majestade e João Travassos seu filho. Que frei Diogo contara a Gaspar Bocarro, cristão novo, morador na cidade, e então residente no lugar das Cachoeiras, a um quarto de légua do mosteiro de Santo António da Castanheira, que ia fugido deste mosteiro, onde era religioso há oito anos, e fora o Bocarro quem lhe indicara, para o socorrer, a Diogo de Sousa, morador nos Cadafais, a meia légua daquele mosteiro; que estava muito arrependido de ser frade, porque tudo entre frades era falsidade e mentira, como lhe mostraria por documentos que trazia consigo; e logo tirou da manga uns papeis feitos em cadernos de oitavo, que seriam três ou quatro, e cada um deles de poucas folhas. Além dos papeis que leu mostrou outros, que trazia dentro de um saco de pano encerado, e que teria largura de um palmo e comprimento de palmo e meio, pouco mais ou menos, cheio de outros papeis, que revelou serem os capítulos, que os frades do dito mosteiro tinham feito nos anos atrás nas cousas de sua Ordem; que ele os furtara de uma arca em que estavam fechados, que importavam muito aos frades do dito mosteiro, os quais haviam de sentir imenso essa perda; mas não os tirou do saco, nem leu nenhum; e acrescentou que a escrita dos referidos cadernos a fizera e trasladara às furtadas e escondidas de outros livros, que lhe não nomeou. E logo o dito frade começou a ler neles, escritos em latim, e posto que o denunciante entendia parte do que ele lia, não lhe lembra a forma das ditas palavras latinas, nem a cujos autores pertenciam. E lendo pelos mencionados cadernos, e sobre o latim declarando o que queria dizer em linguagem (porquanto o denunciante fingiu que não entendia), disse-lhe frei Diogo, que Cristo queria dizer rei ungido, como haviam sido muitos do testamento velho, e que Jesus não fora ungido, e que por tomar o nome de Cristo, alheio e não seu, pagara em uma cruz como pagou; que Jesus era nome que outros muitos tiveram, e que a lei boa devia aceitá-la todo o povo, e que a lei dos cristãos feita por homens, que andavam fugidos e escondidos por entre penedos, como os apóstolos, crescera e se crera, porque então eram gentios e sabiam pouco os que a creram, e que Deus mandava no Deuteronómio que as suas palavras se não torcessem, nem lhe dessem outro sentido mais que o literal; e que os cristãos diziam que a Escritura sagrada se parecia com um nariz de cera, que o levavam para onde queriam, e que Aristóteles ensinava que o semelhante gerava outro semelhante, assim como o boi gerava outro boi, e o cavalo gerava outro cavalo; por isso o que tinha de ver homem com pão? E quando ele proferiu as ditas palavras: que tem de ver homem com pão? não lhe declarou mais do motivo por que assim falava, mas ele denunciante entendeu, que se referia a Cristo Nosso Senhor, e á hóstia consagrada, como quem queria afirmar que não podia Deus fazer do pão seu corpo; mais contou o dito frei Diogo da Assumpção, que os frades franciscanos seguindo a Escoto ou a Soto, e os frades domínicos seguindo a Santo Thomaz, tinham uns com outros grandes controvérsias; e que boa estava a lei em que não havia firmeza; e continuou que Maria (nomeando-a deste modo as mais das vezes na dita prática, entendendo pela virgem Maria Nossa Senhora), depois de parir a Jesus parira a São Tiago e a S. João, os quais eram irmãos de Jesus, e que os cristãos por escápula explicavam, que São Tiago se chamava irmão de Cristo, por se parecer muito com ele. E que José tivera cópula carnal com Maria, e que nisso não havia que fazer. E quando o dito frei Diogo lhe disse estas palavras contra a pureza da virgem Nossa Senhora, lhe veio tentação a ele denunciante de levar de um punhal, que tinha na cinta, e matar ali ao dito frade com punhaladas, o que sem dúvida lhe fizera se não fora frade, mas contudo dissimulou, e o deixou ir por diante, e logo o dito frade tirou do seio ou fralda do hábito, que apanhado trazia na cinta, um livro de oitavo pequeno encadernado em pergaminho, o qual disse que tratava dos sacramentos, e não lhe declarou o nome do autor, e nele o dito frei Diogo leu em latim a parte seguinte: que acertando um rato de comer a hóstia consagrada, tomassem o rato se pudessem, e o queimassem, e aquela cinza fosse posta no sacrário; e então como escarnecendo disse o dito frade se pudessem, e se não lá vai Deus metido no corpo de um rato! E assim lhe disse mais que havia muito tempo, que não rezava as horas do coro com devoção nem tenção, e que somente recitava com tenção e devoção os salmos de David, porque esses eram santos e bons, e que por ele dito frade andar assim no mosteiro com sua consciência inquieta e desgostoso, enxergavam os mencionados frades do mosteiro de Santo António da Castanheira estar magro, e lhe perguntavam por que andava magro, e ele lhes respondia que era sua condição ser frenético e magro. E assim mais lhe declarou o dito frei Diogo, que pois Deus lhe dera juízo e entendimento, para conhecer todas estas coisas, se não buscasse remédio de sua salvação, seria digno de mor pena, e que todo o que soubesse bem a lei dos judeus, e a não guardasse, se perderia; e que ver a majestade dos ofícios e cerimónias dos judeus, não havia mais que ver, mas não lhe declarou onde se viam os ditos ofícios e cerimónias, nem se diria isto pelo ter visto se pelo ter lido. E logo lhe nomeou Moisés e Aarão e a outros da lei velha, que ora lhe não lembram, dizendo-lhe que foram uns santos mui grandes, e que os santos dos cristãos eram uns coitados, que acabavam por aí entre os penedos cheios de piolhos, e que os apóstolos todos eram parentes de Jesus, e que S. Pedro não andava sempre na companhia de Cristo, mas que andava pescando, onde Cristo ia ter com ele algumas vezes. E que na lei velha, degolando-se um bode no altar, com aquele sangue derramado se tiravam os pecados, e porque não tirava os pecados a morte de Jesus? E que se Jesus se tinha sujeitado á lei dos judeus, como depois queria fazer outra lei em contrário daquela verdadeira, a que se ele sujeitara? E que se a lei de Jesus fora boa, os judeus o não mataram, e que tendo Cristo mandado que no baptismo ficassem os pecados lavados, depois disto de ali a quatro anos circuncidara S. Paulo a Timóteo, e que também depois de Cristo ordenar o baptismo circuncidara S. Pedro a outros; e que Martim Lutero dizia que um inimigo de Jesus fizera os sacramentos, e que o mesmo Martim Lutero e outros muitos eram cristãos, e por não acharem fundamento na lei de Cristo se apartaram dela, e que por os tais serem homens insignes, fizeram seitas novas, e que muitas pessoas havia, que conheciam e sabiam estas verdades, e cousas que ele denunciado afirmava, mas que por comerem e viverem sofriam; e assim mais declarou o dito frade, que se a lei de Cristo fora boa, houvera de ser comunicada a todo o mundo, e que não podia ela ir aos negros, nem a outras cem mil terras, pois lá não podiam ter os sacramentos pela falta do pão e do vinho, que lá não havia, e que os cristãos respondiam a isto, que por ser o pão e o vinho, que se precisava para o sacramento, em pequena quantidade, podia levar-se, e isto proferiu o mencionado frei Diogo como que zombando, e ainda acrescentou que ensinavam os cristãos, que o menino Jesus assim como crescia no corpo crescia no saber, mas que se Jesus fosse Deus não podia haver nele aumentar-se o saber; e que dantes no princípio não houvera mais que a oração do padre nosso, e que os papas adicionaram á lei o que tiveram na vontade pondo-lhe cada um deles o que bem queria; e que uma mulher se proclamara papa, e mais disse o dito denunciado, que havia tanto lenho da cruz pelo mundo, que não bastavam muitos madeiros para ele, e que vindo uma velha em uma barca, mostrando desejos de possuir um pequeno lenho da cruz, o barqueiro lhe dera um pedaço de pau e o chamara lenho, e que dali ficara denominarem o lenho da barca, e que referiam fizera aquele lenho pela fé da velha muitos milagres zombando disto o dito frade. E que S. Francisco profetizava nas suas crónicas, que o reino de Portugal não seria nunca sujeito ao de Castela, e que assim como S. Francisco mentira nisso, mentiria também em o demais; e que S. Francisco quando morrera, o enterraram em um certo lugar, que lhe nomeou e ora lhe não lembra, e que dali o trasladaram a Assis, e que um cardeal narrara, estando para morrer, a um abade amigo seu (os quais não nomeou) que ele vira a S. Francisco em Assis estar com as chagas, e que não podia o dito cardeal ver a S. Francisco estar em pé com as chagas em Assis, pois que fora primeiro enterrado na outra parte desdenhando de poder ser isto, que o dito cardeal contava de S. Francisco afirmando, que isto era graça e patranha, e que também São Tiago fora enterrado em Jerusalém, e que como podia estar o seu corpo em Galiza? e que também isto era falso e patranha, e que os profetas tinham dito que o que havia de vir em nome do Senhor se chamaria Emanuel, que queria dizer salvador, e que Jesus nunca tivera tal nome, mas que os cristãos lho puseram. E que a cristandade havia de padecer uma grande perseguição no ano de mil seiscentos e um, e que já se lhe ia apareIhando. E referiu mais o denunciante, que em todo o progresso das ditas práticas, quando o mencionado frade falava em Cristo Nosso Senhor nunca o nomeou assim segundo sua lembrança, senão sempre ou por Cristo ou por Jesus, sem dizer Nosso Senhor, e que quando falava na virgem Nossa Senhora algumas vezes a nomeou por Nossa Senhora, mas as mais por Maria simplesmente. E que entre as práticas de todas as ditas cousas lhe pediu uma ocasião, que perdoasse de proferir estas cousas, porque não era mais em sua mão, para desabafar do que tinha dentro do seu peito. E que algumas vezes quando o referido denunciado ia dizendo estas coisas se remetia ao que estava escrito nos ditos cadernos, nos quais logo buscava e lia certas palavras em latim para seu propósito, que lhe declarava em linguagem, das quais ora não está lembrado em especial. E que enquanto o dito frade falava dessas coisas ele denunciante o escutava e o notava, e lho não contradizia directamente nem lho aprovava, para acabar de ouvir tudo. E que nas referidas práticas lhe rogou o mesmo frade, que o ajudasse na sua fugida, e que lhe desse um vestido de leigo, para deixar o hábito, e se ir assim vestido a Setúbal, para aí se embarcar em urcas, que lá estavam, para Inglaterra ou Flandres. E que ao presente ele denunciante não está lembrado, que o denunciado lhe dissesse mais coisas que as declaradas; e depois do frade lhas ter dito, ele com dissimulação o deteve na sua casa mandando-lhe dar de jantar, e dizendo-lhe que dormisse a sesta, porque estaria cansado, e em quanto desta maneira o deteve, escreveu imediatamente a frei Diogo de São Tiago, guardião do mosteiro de Santo António da Castanheira, para que viesse logo ter com ele a uma casa junto da dita sua quinta que lhe nomeou, porque convinha assim à nossa santa fé católica; e por o dito guardião estar doente de uma perna não compareceu, mas mandou ao presidente do referido mosteiro, cujo nome não sabe, e a outro frade, que se chama frei António, os quais logo foram ter com ele, e indo-os buscar á dita casa, onde conversando com o dito frei António por ser seu conhecido, que é um frade velho e antigo na dita ordem, e não lhe sabe mais sobrenome, nem donde é natural, e estando ambos sós contou ele denunciante ao dito frei António algumas das sobreditas cousas, que frei Diogo tinha proferido; e ordenou a ambos os ditos frades, como fossem á dita sua quinta, estando ele já Iá com o denunciado entrassem logo onde ele estava com frei Diogo, o que assim se fez; e entrando os ditos frades, e perguntando por ele denunciante, para logo o referido denunciado, que os ouviu e conheceu na fala, se escondeu debaixo de um leito ficando-lhe fora um sobre capelo de burel de caminho, e entrando os ditos frades na câmara onde estavam ele e frei Diogo, o denunciante lhes acenou que debaixo do leito estava o denunciado, e os ditos frades o tiraram e começaram a repreender chamando-o frei Diogo da Assunção, e foi assim que Diogo de Sousa lhe soube o nome. E ali os dois frades ataram ao referido denunciado, com uma fita branca de cadarço, a mão direita ao seu próprio cordão dele, e o levaram consigo para o mosteiro, em cuja companhia, para os ajudar no caminho sendo preciso, mandou ele denunciante um seu criado, e que depois de assim ser levado o dito frade, logo o denunciante, para lhe não esquecerem as mencionadas cousas, compôs a relação assinada de seus próprios sinais, e escrita de sua própria letra, em cinco laudas de papel atrás juntas, que ora apresentou nesta mesa, e que tudo o que na dita sua relação estiver escrito, além do que ora aqui tem denunciado por palavra, ele o há também por denunciado aqui, e o denuncia ora, porque tudo o por ele aí escrito passa assim na verdade como nela se contém. E que no dia seguinte, que contaram doze dias do mês presente, foi ele denunciante ao dito mosteiro, onde falou com o guardião e com o dito frei António, estando todos três juntos na cela do mesmo guardião, aos quais ele denunciante referiu e contou as cousas sobreditas, que o denunciado lhe tinha referido, pedindo ao mesmo guardião e frei António, que lhe aconselhassem o que devia fazer para descargo de sua consciência; e eles lhe responderam que cuidariam nisso e lhe dariam resposta, que entretanto estivesse quieto; e dali a três ou quatro dias procurou-o frei Francisco dos Mártires, pregador, frade do referido mosteiro, e ficando ambos sós lhe disse que alguns religiosos letrados do mosteiro haviam assentado, que no caso do dito frade denunciado não tinham eles que fazer mais que guardá-lo, para o entregarem quando a Inquisição o mandasse, e que Diogo de Sousa devia de vir denunciar, a este santo oficio da  Inquisição, o que sabia do dito denunciado; e conversando então com o frei Francisco dos Mártires lhe leu toda a dita sua relação por ele escrita atrás junta, e o dito frei Francisco dos Mártires o informou, que no mosteiro estavam guardados os cadernos e papeis, que o dito denunciado tinha mostrado a ele denunciante, e lhe foram achados e tomados pelos ditos presidente e frei António, quando o prenderam perante ele denunciante, e que portanto vem fazer ora a denunciação nesta mesa com zelo da fé e por descargo de sua consciência. E mais não disse. E sendo perguntado se lhe declarou o denunciado frei Diogo da Assumpção por palavras expressas, se cria na lei de Moisés ou em que lei cria, ou se estava apartado da fé de Nosso Senhor Jesus Cristo? Respondeu que não; mas que lhe disse as coisas, que tem aqui denunciado, da maneira que expôs, as quais o dito frade, quando as dizia, as afirmava por certas e boas, e que nelas lhe não declarou mais do que o já referido. E sendo mais perguntado acerca de Gaspar Bocarro, respondeu que o denunciado lhe não dissera cousa que passara com ele mais do que por escrito e vocalmente mencionou; e que de indústria perguntou ele denunciante ao dito denunciado se declarara também algumas das ditas cousas ao mencionado Gaspar Bocarro, ao que respondeu que não, porque estando com ele viera gente. 

Perguntado se frei Diogo lhe contara o motivo, por que se queria ir para Inglaterra ou Flandres, respondeu que o frade lhe dissera que, porquanto entendia todas as cousas que tem dito, queria ir buscar o remédio para sua salvação, e partir para Inglaterra ou Flandres e não estar cá.

E sendo mais perguntado se frei Diogo estava alucinado respondeu, que, quando o denunciado lhe dizia todas as referidas heresias e cousas aqui declaradas, o fazia por modo que o denunciante entendeu e viu claramente, que estava em todo seu siso perfeito sem perturbação do juízo, e que ele denunciante ficou muito escandalizado de lhas ouvir. E afirmou ainda mais, que nos ditos cadernos frei Diogo lhe leu umas trovas, que fizera contra os frades, nas quais lhe apontou em duas regras certas palavras heréticas contra nossa santa fé católica, de que não está agora lembrado em especial. E perguntado, que tenção lhe parece a ele denunciante que o dito frade tinha, ou se lhe manifestou que tenção era a sua, em lhe dizer cousas e heresias tão patentes contra nossa santa fé católica, não o tendo conhecido mas antes sabendo ser ele fidalgo, respondeu que o denunciado lhe não declarou sua tenção nisso, mas que lhe parece lhas disse confiado na palavra, que lhe deu de as ter em segredo, e pelo denunciado estar cheio em seu coração dos ditos erros. 

Perguntado se o referido frade lhe declarou, se alguém lhe ensinara aquelas cousas, ou as sabia somente ele denunciado, respondeu que não; mas que lhe parece, posto que nisso não se afirma muito, que o denunciado lhe disse, que escrevera uma carta ou cartas, não lhe lembra a quem, nas quais falava alguma cousa encobertamente, por se não fiar de cartas. 

Perguntado se sabe é o denunciado cristão-novo, ou de que casta é? Respondeu que não sabe disso mais, que dizer-lhe o já mencionado frei Francisco dos Mártires, e frei António, que frei Diogo era sobrinho da mulher de Pêro da Costa, e filho de um irmão dela, e que presumiam ter raça de cristão-novo. 

E não lhe foram feitas mais perguntas. E do costume disse nada. E prometeu guardar segredo no caso sob cargo do juramento que recebeu, e, sendo-lhe lida esta denunciação, declarou estar escrita na verdade, e assinou aqui com o dito senhor. Manuel Marinho o escrevi. 

Heitor Furtado de Mendoça.

Diogo de Sousa

 

De casa do fidalgo Diogo de Sousa, Fr. Diogo foi levado para o Convento da Castanheira e logo transferido para o Convento dos Capuchos nos Olivais, onde foi metido no tronco (prisão). Pensando possivelmente que se conseguiria escapar sem ir parar à Inquisição, pediu ao Guardião do Convento que queria ser ouvido pela Inquisição de Lisboa. Foi então lá  o Convento dos Capuchos nos Olivais o Deputado Heitor Furtado de Mendonça, por delegação dos Inquisidores,  com o Notário Manuel Marinho.

img. 151 – 21-8-1599

Disse ser cristão velho, de 29 anos. Entrou no Convento há 8 anos e fez a profissão de fé há 7. Desde há um ano em Lisboa e na Castanheira (para onde foi fugindo da peste) tem andado muito desconsolado na religião, “por se ver desfavorecido de seus prelados” que lhe não permitiam tomar ordens de missa. Os do seu tempo já eram padres e não eram melhores que ele. Deixou de se confessar quando devia, foi tentado do demónio. Leu um livro que lhe emprestou Fr. Jerónimo de Jesus (cujo título não recorda) que o fez vacilar na fé.  Há cerca de 35 dias (em Julho) determinou-se a descrer na fé de Cristo. Convenceu-se que Cristo não era Deus, mas profeta, e a salvação das almas estava na Lei de Moisés e não na de Cristo. Tinha chegado à conclusão:

- que na hóstia consagrada não estava o corpo de Cristo, não estava ali Deus.

- que as ordens que tinha de Evangelho não o obrigavam a nada.

- que as coisas da Igreja eram hipocrisia

- que se podia tomar qualquer lei que quisesse para viver nela.

- que se havia de salvar na misericórdia de Deus que era o Deus do céu.

- que se podia salvar na Lei de Moisés.

De todo estava apartado da nossa santa fé.

Quinta feira, anteontem, voltou a ter fé…  Viu que ia errado.

Quando andava desviado da crença católica, decidiu fugir para França ou Flandres para lá viver à sua vontade. Por isso fugiu dia 10 (dia de S. Lourenço) à noite, pulando a cerca. Foi ter com Gaspar Bocarro, cristão novo, à Cachoeira. Não o conhecia, nem nunca tinha falado com ele, mas por ser de nação… Pediu dinheiro e vestido de secular para se embarcar.  Gaspar Bocarro escusou-se alegando que tinham visto a ele entrar em sua casa e poderia ser prejudicado por isso. Mandou-o ir ter com Diogo de Sousa, um fidalgo seu amigo.

Embrenhou-se no mato para não ser visto. Dia 11, foi ter com Diogo de Sousa. Disse a este todas as heresias que lhe passavam pela cabeça. Este ouvia e não o contrariava. Disse que ia mandar chamar a Gaspar Bocarro, mas chamou foi o Guardião que mandou frades para o levarem para o convento.

Está muito arrependido e pede perdão e misericórdia.

Foi-lhe perguntado onde aprendeu Latim e ele disse que foi em Braga e depois o estudou também nos dois anos em que cursou Artes no convento.

 

img. 157 – 23-8-1599 – Continuação

Pediu audiência para confessar mais coisas.

Se as coisas da Igreja fossem verdadeiras, Deus não consentiria que uma mulher fosse Papa por dois anos, disse ele a Diogo de Sousa.  Há 40 dias mais ou menos, falando com Frei Bernardo, discorreram sobre a profecia de S. Francisco de que Portugal nunca seria unido a Castela, afinal o dito não foi verdadeiro; e ele confitente não dava importância a profecias. Não lhe lembra mais que confessar.  Repetiu que não conhecia Gaspar Bocarro nem Diogo de Sousa.

O que havia dito a Diogo de Sousa: “e assim mais lhe disse ele confitente que nas religiões não havia a santidade que de fora parecia e que alguns frades das religiões teriam também para si essas mesmas coisas que ele confitente para si tinha, mas que, porque nas religiões comiam e bebiam e por se não inquietarem o não manifestavam assim como ele confitente manifestava ali a ele dito Diogo de Sousa acerca de não serem verdadeiras nem perfeitas as religiões.”

Fez ontem 8 dias que o trouxeram preso do tronco do Conv. da Castanheira para Lisboa. Foram 4 frades que identifica que o trouxeram pelo Tejo abaixo e o entregaram ao Guardião que é Fr. Francisco de Santa Ana.

Procedeu-se logo à sessão da Genealogia.

 

img. 163 – 23-8-1599

Nasceu em Aveiro, mas foi criança de mama para Viana de Caminha, filho de Jorge Velho Travassos , natural de Cantanhede, que se criou em casa de D. Pedro de Cantanhede e ora mora em Viana, e de Maria de Oliveira, já defunta, ambos cristãos velhos. Não conheceu seus avós excepto Leonor Bernardes, mãe de seu pai, que faleceu em Lisboa em casa de Pero da Costa, escrivão da Câmara de Sua Majestade, genro dela. Ouviu dizer que seu avô, marido dela, se chamava Nuno Velho, natural de Tentúgal, e era Cavaleiro fidalgo nos livros de El-Rei, e morreu em Tânger.  Seu pai desempenhou em Viana o ofício de feitor da Alfândega, por  ordem dos contratadores e apresentação deles. O seu avô materno chamava-se Pero de Oliveira e era de Aveiro, não sabe o nome de sua avó.

Tem ao presente um tio e uma tia, irmãos de seu pai. Não lhe lembra o nome de seu tio, que é meio irmão de seu pai, filho de Nuno Velho e da primeira mulher deste, cujo nome não sabe, é vedor de Pero de Alcáçova, neto do Conde das Idanhas. A tia é Branca Maria casada com o dito Pero da Costa, e é irmã inteira de seu pai. Teve outros tios, irmãos de seu pai, que morreram solteiros na Índia e teve mais um tio chamado Fernão Velho, casado com uma fidalga em Lisboa, o qual morreu em Lisboa, sendo lá Capitão.

Da parte de sua mãe, tem ao presente um tio, irmão inteiro dela, chamado Diogo de Oliveira, casado não sabe com quem na vila de Aveiro, onde é vereador e Juiz e outros cargos da governança da vila e também uma tia, Margarida de Oliveira que foi casada com Rui Velho Barreto, da governança da vila de Viana, onde moraram e faleceram.

Tem seis irmãos inteiros: 

- Pero Velho Travassos, casado com Ana da Rocha, moradores em Viana, onde ele serve a governança da vila.

- Fernão Velho, solteiro

- António de Oliveira, solteiro, e

- Manuel Travassos, clérigo de missa, todos moradores com o pai em Viana.

- Nuno Velho Travassos, e

- João Velho, ambos na Índia, servindo em Ceilão.

 

Tem cerca de 29 anos e é frade professo da Ordem de S. Francisco, Província de Santo António e há 8 anos que entrou na religião e há 7 que professou. Tinha estudado Latim em Braga e depois de professar cursou Artes dois anos e meio, e ainda não estudou teologia. Quando tomou o hábito tinha já a primeira tonsura e o 1.º grau das ordens menores que tinha tomado em, Braga. Depois de professar, tomou as restantes três das quatro ordens menores e as Ordens maiores da Epístola; quem lhas conferiu foi um Bispo estrangeiro da Ordem de S. Francisco.  Quem lhe conferiu a Ordem de Evangelho foi o Bispo da Guarda, D. Nuno de Noronha, na Igreja do Sardoal, quando ele estava no Mosteiro de Nossa Senhora do Loreto de Almourol, em Tancos.

Foi baptizado em Aveiro e crismado em Braga por Frei Bartolomeu dos Mártires.

 

img. 167 – 23-10-1599 – Termo de entrega

O deputado Heitor Furtado de Mendonça entregou Fr. Diogo ao Guardião e intimou-o sob “pena de excomunhão maior latae sententiae que tenha com muito cuidado ao dito frade preso no dito tronco de maneira que não fuja dele para nenhuma parte nem ao dito tronco vá pessoa alguma nem inda frade nem religioso a ver o dito preso nem falar com ele e que não possa ele do dito tronco mandar aviso nem recado a nenhuma parte e que só possa ir ao dito tronco ministrar-lhe o mantimento um frade de muita confiança e sem suspeita que a ele dito padre guardião parecer mais apto para isso, o que tudo ele padre guardião prometeu cumprir…”

No processo, está a seguir esta nota: “Feito este termo acima, daí a dois dias, que foi a 25 de Outubro, foi mandado vir preso aos cárceres do Santo Ofício, como consta do termo de fls. 2”.

Na img. 50, e com a data de 30-91599, estão o requerimento do Promotor e o Assento da Mesa com o decreto de prisão:

Muito ilustres senhores  

Da confissão junta em estes autos de frei Diogo da Assumpção, frade professo da ordem de S. Francisco da província de Santo António, ordenado de ordens de evangelho, que ora está preso em esta cidade, em o mosteiro da dita ordem; e do testemunho de Diogo de Sousa, de 27 de agosto de 99 consta o réu estar apartado da nossa santa fé católica, e ter crença na lei de Moisés; e porque a dita confissão é diminuta, ficta e simulada, e o réu não confessou senão depois de saber que estava delato em esta mesa,  

Peço a vossas mercês o mandem recolher em este cárcere, e procedam contra ele pela dita culpa. Et fiat justitia.  

E com este requerimento do promotor fiz estes autos conclusos. Simão Lopes o escrevi.  

 

Foram vistas na mesa do santo ofício aos trinta dias do mês de Setembro de 1599 anos as culpas, que há contra frei Diogo da Assumpção, conteúdo no requerimento atrás escrito a fol., o que dele diz Diogo de Sousa aos vinte e sete dias de agosto de 99 anos, e a confissão do dito frei Diogo, que fez aos 21 e 23 do mês de agosto de 99, que nestes autos anda. E pareceu a todos os votos que o dito frei Diogo seja trazido ao cárcere desta inquisição do cárcere do seu mosteiro de Santo António desta cidade, onde está preso, para ser examinado e descobrir e dizer a verdade de suas culpas visto como a testemunha diz, que se declarou com ele que tinha a lei de Moisés por boa. E ele em sua confissão, acredita a dita testemunha, e não do auto e de seu judaísmo, antes diz que o aprendeu de livros que leu, nem é de crer que de tão pouco tempo a esta parte tivesse a dita crença, sendo professo como é vivendo entre os religiosos da sua ordem. E parece sua confissão ser ficta e simulada, e não estar ele convertido; com outras considerações, que no caso se tiveram. E que depois de trazido a estes cárceres se faça diligência acerca de sua genealogia para na verdade se saber, se tem raça de cristão novo ou outra alguma, a qual se não pode fazer tão comodamente estando ele onde está. E que este assento vá ao Conselho Geral, ou se dê conta deste negócio ao ilustríssimo senhor Inquisidor geral, visto estar ele no seu bispado, e não haver ora Conselho Geral. 

Manuel Alvares Tavares

Heitor Furtado de Mendonça,  

 

INTERROGATÓRIOS

 

1.° — Se conhecem frei Diogo da Assumpção, frade professo de ordens de evangelho, da ordem de S. Francisco da província de Santo António, de cuja informação se trata, declarem as testemunhas como é o conhecimento, e de que tempo, e de que idade será.  

2.° — Se conhecem Jorge Velho Travassos e Maria de Oliveira, já defunta, pai e mãe do dito frei Diogo; e se sabem donde são naturais e moradores, e como é o conhecimento, e de que tempo a esta parte.  

3.° — Se conhecem Nuno Velho e Maria Bernaldes, pai e mãe do dito Jorge Velho Travassos e avós paternos do dito padre, frei Diogo; e se têm noticia dos mais ascendentes declarem donde foram naturais e moradores, e como é o conhecimento e de que tempo a esta parte.  

4.° — Se conhecem Pêro de Oliveira e sua mulher, a que se não sabe o nome, pai e mãe da dita Maria de Oliveira e avós maternos do dito frei Diogo, e se têm noticia dos mais ascendentes declarem donde foram naturais e moradores, e como é o conhecimento e de que tempo a esta parte.  

5.° — Se sabem que os ditos frei Diogo e seu pai e mãe e avós paternos e maternos, acima nomeados, todos e cada um d eles foram e são tidos por cristãos velhos, limpos sem raça nem descendência de judeus, mouros nem de outra seita novamente convertidos, e por tais são tidos e havidos, e comummente reputados, e do contrário não há fama nem rumor; e se o houvera as testemunhas o souberam e ouviram dizer, segundo o conhecimento que têm das ditas pessoas, e cada uma delias,  

6.° — Se sabem que os ditos frei Diogo, e seu pai e mãe e avós paternos e maternos, nenhum deles fosse preso nem sentenciado pelo santo ofício, nem n'outra alguma infâmia.  

7.° — Se sabem que o dito padre, frei Diogo, é filho legitimo dos ditos Jorge Velho e Maria de Oliveira, e por tal tido e havido.

Se de tudo o sobredito é pública voz e fama.

 

img. 168 – 24-11-1599 – Interrogatório do réu

Não foi chamado mais cedo por estar mal disposto. Perguntado se quer acabar de confessar as suas culpas, disse que não tem mais culpas que confessar. Perguntado se fez algumas cerimónias da Lei de Moisés, disse que não.  Nenhuma pessoa o levou à crença na Lei de Moisés. O Inquisidor não acredita e insiste para que ele diga a pessoa que o doutrinou. Faz-lhe a admoestação costumada.

 

Procedeu-se entretanto, no início de 1600, aos inquéritos destinados a averiguar da limpeza de sangue de Fr. Diogo, primeiro em Aveiro e depois em Lorvão.

 

img. 55 – 11-1-1600 – AVEIRO

Em Aveiro, Aires Colaço, Miguel Dias, Fernão Gonçalves, João Rodrigues Ferraz, Mateus Couceiro,  Baltazar de Pinho e  António Fernandes disseram que tinham ouvido dizer que Jorge Velho teria alguma raça de cristão novo.

img. 63 – 26-1-1600

Na Inquisição de Coimbra – João Pereira de Sampaio, fidalgo, natural de Tentúgal e morador em Coimbra, de 50 anos, disse:

- Não conhece nenhuma das pessoas mencionadas nos 1.º e 2.º interrogatórios. 

- Disse ter ouvido dizer que um bisavô do réu, pai de Leonor Bernaldes, avó dele,  fora judeu e se baptizara depois de ser homem.

 

img. 68 – 28-2-1600 – LORVÃO

Em Lorvão fez-se a investigação da raça de Bernaldo Dias, que teria sido pai do avô Nuno Velho (referência incorrecta, fora pai da avó Leonor Bernaldes).

Maria de Araújo, de 50 anos,  casada com Simão Rodrigues – ouviu de facto dizer que Bernaldo Dias era cristão novo.

Jerónima Fernandes, de 68 anos, não conhecera Bernaldo Dias, mas ouvira dizer que era cristão novo e que tivera uma filha chamada Leonor Bernaldes.

Duarte Simões, de 75 anos, ouvira dizer que Bernaldo Dias fora cristão novo e homem de bem, mas não sabe se fora baptizado em pé ou não, nem outra coisa sabia.

Isabel Martins, viúva, de 80 anos,  - não conheceu Bernaldo Dias, mas sim um seu filho chamado Baptista Dias e um neto chamado João Baptista; mas ouviu dizer a seu pai e a sua mãe que o dito Bernaldo Dias viera fugido para esta terra, mas não sabia donde e que era cristão novo e que fora baptizado em pé, mas não sabia onde.

Domingos Francisco, de 75 anos, - viera para esta terra moço de 13 ou 14 anos e nunca mais de cá saíra. Era criado do cura de Lorvão, chamado Álvaro Ribeiro, ao qual ouviu dizer por muitas vezes que Bernaldo Dias era cristão novo e fora baptizado em pé, mas não sabia onde, mas ele testemunha conheceu um filho chamado Baptista Dias e um neto  João Baptista, “o qual ele testemunha chamou algumas vezes judeu e por tal era tido e havido e sua geração…”.

Francisco Simões de 80 anos – Não conhecera Bernaldo Dias, mas apenas seus filho e neto, referidos por outras testemunhas, os quais eram tidos por cristãos novos e os chamavam muitas vezes, mas não sabia de que parte.

 

Voltando ao réu, preso nos Estaus, à espera que os Inquisidores decidissem da sua sorte. Na img. 170, está esta observação, isolada: “Daqui por diante leva o réu outros termos nas audiências”.

 

img. 170 - 6-4-1600 – Inquisidor D. António Pereira de Menezes

O réu pediu Mesa. O Inquisidor perguntou porquê. Ele disse que queria saber o que se lhe apontava no processo. O Inquisidor disse que não vinha ali para isso; que a seu tempo se lhe responderia. Levantou-se encolerizado, dizendo palavras em Latim. O Inquisidor disse que ele não estava em juízo perfeito e mandou-o levar para o cárcere.

img. 170 - 7-4-1600 

Estão os Inquisidores Manuel Álvares Tavares e D. António Pereira de Menezes, e os Deputados Heitor Furtado e Mendonça e Domingos Riscado.  O réu disse que não tinha por que pedir mesa porque não lhe sabiam dizer quod est nomen Dei . Da Mesa perguntaram se ele sabia qual era o nome de Deus? Ele respondeu: “ O nome de Deus é  Ego sum Deus Abraham, Deus Isaac, Deus Jacob, et hoc est nomen meum in sempiternum, et in generatione et generationem; E se a Mesa não sabia isso, a Mesa é que tinha de ser presa."  Foi-lhe dito que se aquietasse. Disse depois o réu respondendo, que o Deus de Israel era o seu Deus e que o Messias ainda não tinha vindo.

Respondeu sempre encolerizado, disse que não devia obediência àquela mesa. Foi chamado o Alcaide para o levar para o cárcere.

img. 172 – 7-7-1600 – Os dois Inquisidores

Disse que jurava pelo Deus Altíssimo, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. Disse que era judeu e bom judeu, que judeu havia de morrer. Notus est in Judea Deus et in Israel magnum nomen eius. Os evangelistas não escreveram o que ouviram a Deus, mas o que ouviram a S. Pedro e S. Paulo. Quer guardar a lei dos judeus. Perguntado pelo que reza, disse que reza o Psaltério sem Gloria Patri, o Pater Noster, e o testamento de Deus.  Disse que guarda os sábados. Quem lhe ensinou estas coisas? Disse que fora Deus que lhas revelara.

Os Inquisidores anotam que o réu não está doido.

 

Os interrogatórios param aqui e só retomam dois anos mais tarde. Entretanto, foram recolhidos os testemunhos de companheiros do convento e de padres doutores que foram mandados falar com o réu com a intenção de o converter.

 

img. 71 – 8 de Abril de 1600

Por mandado dos Inquisidores, foi falar com o réu o Jesuíta P.e Manuel Correia.

Disse Fr. Diogo que estava convicto que a Lei Velha era muito melhor que a Lei Nova. O Padre disse-lhe que não havia duas Leis mas uma só, a Lei de Deus.  Disse o réu que o que o levara àquela convicção fora a leitura de Fr. Francisco de Victória e que a Lei Velha era a Lei de Deus, porque a Lei Nova era Lei dos homens. Escreve o padre que ele começou então a desatinar, a gritar e a bater na cadeira. Disse-lhe o padre que ele estava louco ou malicioso e que nem judeu sabia ser.  Depois recitava muitos versículos dos Salmos, que sabia de cor (o réu tinha breviário no cárcere).  O padre disse que ele não estava doido, mas as suas ideias eram invenção do demónio.

img. 72 – 13 de Abril de 1600

Voltou ao cárcere o P.e Manuel Correia, acompanhado pelo P.e Gaspar Ferraz, também Jesuíta.

Fr. Diogo estava mais calmo. Perguntaram-lhe os padres se rezava. Disse ele que rezava os salmos do breviário. Se dizia o Gloria Patri? Disse que não, porque não havia Trindade. Onde aprendera Latim? Disse que fora em Braga. Perguntaram-lhe como, sendo filho de pais cristãos, podia ser judeu? Disse que eles andavam todos errados. Eram seus pais cristãos novos? Disse que nunca o soubera, mas entendia agora que sua mãe era cristã nova e que seu pai era cristão velho e vinha dos Reis de Portugal. Que livros tinha lido? Lera alguns livros, mas sobretudo fora alumiado por Deus. Daí a pouco disse que ele era o Messias, e que o tinha entendido desde que está no cárcere.

Disse que, enfadado do seu ministro, pôs-lhe à porta um escrito que dizia: “ut sugeret mel de petra oleumque de saxo duríssimo” (Deuterónimo, 32,13)” e assinara “Christus Dominus”).

Continuaram os padres a trocar com o réu citações em Latim dos salmos. Falaram-lhe eles depois da ressurreição dos mortos e ele disse “Não há-de haver Juízo nem ressurreição dos mortos”. Os padres disseram que iam rezar por ele. Respondeu que tais orações não seriam ouvidas por Deus, porque tudo o que se ligava à igreja era tudo ficção.

No final do relato, o P.e Manuel Correia diz o que entendeu do réu (img. 74): Não lhe “pareceu malícia própria de judeu”, porque falava com muita singeleza a tudo. Também não lhe pareceu doido, porque “falava com juízo e muito sobre si (…) acudindo a todas as coisas com autoridades dos salmos (…) posto que algumas fora de propósito (…) o que me a mim pareceu foi iluso do demónio. (…) Teve fundamento o demónio para lhe persuadir isto numa grande manencolia que este religioso teve de seus superiores o tratarem como ele diz mal e lhe avantajarem outros, do que ele ainda está tão sentido…(…)

Note-se que o réu não refere que o sangue de cristão novo lhe veio de seu pai, como deveria sem dúvida saber, mas que era proveniente de sua mãe. Esta é mais uma prova de que não havia prática religiosa judaica em sua casa.

img. 75 – 24 de Abril de 1600 – Os dois padres Jesuítas foram relatar aos dois Inquisidores, Manuel Álvares Tavares e D. António Pereira de Menezes,  o seu encontro com o réu. Referiram, além de muitas outras afirmações, estas: "Que ele réu tem ordens de Evangelho, mas as “ordens são invenção dos homens”;  antigamente a Missa não era mais que um pater noster, tudo o resto são invenções que acrescentaram os Papas"; repetiu muito que era judeu.

Disseram ambos que ele não está doido nem tem lesão no entendimento, mas está iludido pelo demónio.

 

DEPOIMENTOS DE COMPANHEIROS DE CÁRCERES DE FR. DIOGO

img. 79  - 11 de Setembro de 1600

Pero Domingues  (Pr. n.º 6094),  cristão velho, guarda dos cárceres da Inq. de Coimbra, preso nos cárceres juntamente com Miguel Figuet Francês (Pr. n.º 2873 – calvinismo), Tristão Dias (Pr. n.º 10892 – judaísmo), António Gomes (Pr. n.º 570 - judaísmo) que é pai de Gabriel Franco, Bacharel em Leis (judaísmo, blasfémias – Pr. n.º 10502, de Coimbra). António falou na crença judia do filho e disse que este é doido. Fr. Diogo disse que não, que é um profeta de Deus e bem aventurado. Disse que não adorava estátuas nem imagens. Os santos não tinham olhos nem orelhas para ouvir, por isso, não era necessário pedir aos santos; ele, quando rezava os salmos no breviário, não dizia o Gloria Patri. Não havia de se benzer nem dar crédito à cruz que são dois paus.

Diz Pero Domingues que, durante dois meses, nunca o viu benzer-se,  nem dizer o Gloria Patri. Quando se levantava, não fazia reverência à Cruz nem à Nossa Senhora, mas olhava para o céu. Santo sacramento não quer dizer coisa sagrada, se não segredo.

img. 83 – 22 de Setembro de 1600

Miguel Figuet – Há 40 dias, ele e Tristão Dias (Judeu), Amador da Silva (Pr. n.º 17852) e Pero João (Pr. n.º 7306) ambos presos  por bigamia, Pero Domingues, guarda da Inq. de Coimbra preso por fazer erros em seu ofício. Disseram os outros que os judeus estavam mal aconselhados em manterem a lei de Moisés. Disse então o frade que não havia se não a Lei de Deus de Abraão, de Isac, de Jacob. Estava claro que ainda não era Deus vindo ao mundo. Raspou da parede o nome de Cristo e escreveu Deus. 

Há 26 dias, foram mudados para a cela onde estava António Gomes  e dizendo este que seu filho era doido, Diogo disse que não, que era santo porque sustentava coisas contra a fé. Se o seu filho não reconhecia a Cristo e aos santos, era ele santo. Agora os que morriam por não quererem reconhecer a Cristo eram santos.  Disse que não havia outra lei se não a lei de Abraão, de Isac e de Jacob que é a Lei de Moisés. Falava em segredo com o António Gomes, da Guarda.  Disse Diogo que não adorava santos e não dizia Gloria Patri. Quando eles se escandalizavam, ele dizia que bem podiam vir dizer à Mesa o que ele tinha dito. Disse que Deus não mandou guardar o domingo e que o verdadeiro domingo é o sábado. Não lhe parece que ele seja doudo ou tenha lesão no entendimento.

img. 89 – 25 de Outubro de 1600

Os Inquisidores foram visitar a cela onde estava ele e outros quatro. Apareceu com um barrete na cabeça. Os Inquisidores disseram-lhe que se descobrisse e ele respondeu “Soli Deo honor et gloria” e outras coisas em Latim. Perguntaram-lhe se ele era judeu e ele disse que sim. Os Inquisidores retorquiram: “se ele fora criado com o leite da Igreja Católica, era cristão, frade professo e diácono, como é que era judeu?” Respondeu “erravi sicut ovis quae periit quaere servum tuum quia mandata tua non sum oblitus” (Salmo 118, vers. 176. Perguntaram os Inquisidores quem o ensinara a ser judeu, se os seus pai e mãe o não eram. Respondeu que sua mãe era, mas ela andava errada como ele o andara o tempo que fora cristão. Mandaram a um dos companheiros que lhe tirasse o barrete, não o querendo ele nunca tirar. Perguntados os companheiros, disseram que Frei Diogo parecia sisudo e de bom juízo;  não era doido nem em tal conta o tinham.

img. 91 – 14 de Dezembro de 1600 – Denunciação de Pero Domingues.

Pero Domingues disse que estando há dois meses no cárcere com o Frade, ele dissera ser meio cristão novo. No cárcere estão Tristão Dias, c.n., sirgueiro, António Gomes, c.n., da Guarda, Pedro Gomes (Pr. n.º 3224) c.n., confeiteiro, Miguel Figuet, francês. Uma manhã ouviu o frade dizer meio em segredo a Tristão Dias que não rezasse oração nenhuma se não o Padre Nosso, pois era a única verdadeira que Deus fizera e que todas as outras eram falsas. Tristão Dias nada respondeu.

Há cerca de um mês, noutro cárcere, onde estava ele, o frade, Miguel Figuet, Miguel Fernandez de Luna (Pr. n.º 2874 - Maometismo), e António Gomes Gorjão (não aparece o processo),  preso por casar duas vezes. Uma vez disse o frade em voz alta que os cristãos velhos não sabiam qual era o nome de Deus e que nem os Inquisidores o sabiam. E dizendo-lhe eles que criam na SS.ma Trindade, ele respondeu furioso que davam dois espíritos  a Deus, sendo ele um só espirito.  Que Deus é só espírito, não é carne e Cristo não podia ser Deus. A verdadeira lei é a que Deus deu a Moisés.  Disse que não é herege e que é bom judeu, que a maior honra que tinha era ser judeu, filho de uma judia e de um português. Disse que não cria em nenhuma coisa da Igreja, nem nos Sacramentos dela. Disse que São Francisco nunca fora santo nem tivera chagas. Cristo era filho de uma mulher e de um homem e nunca ressuscitou. Disse que estava encaminhado para Deus e que nunca se desdiria das coisas que agora dizia.

Disse ainda:

      - que o frade está sem comer nem beber todo o dia de sexta-feira, só come à noite.

      - que ele diz que é idolatria reverenciar as imagens e as cruzes.

      - que ele diz que nesta casa não há justiça nem misericórdia.

      - que o frade é homem sisudo e não tem lesão no juízo.

 

img. 98 – 19 de Dezembro de 1600

Depoimento de Miguel Fernandez de Luna  -  O réu disse que, ainda que os judeus agora estão abatidos, Deus não havia de faltar com a sua palavra e havia de mandar o Messias e que este os havia de restituir ao primeiro estado e disse mais que era judeu, filho de um português e de uma judia e que ele fora cristão até vir a conhecer a verdade. Que Cristo não é Deus, nem existe a SS.ma Trindade, não há Filho, nem Espírito Santo, e no céu não há Nossa Senhora nem S. Francisco e este nunca teve chagas.

Dizia ele que ajoelhar diante de um crucifixo era idolatrar uma imagem. Notou mais que o frade jejua todo o dia de sexta feira, nada comendo. O frade tem entendimento e está em seu perfeito juízo.

img. 104 – 24 de Julho de 1601

Do processo de António Gomes Gorjão, bígamo (não aparece o processo).

Quando esteve na cela com Fr. Diogo, António Rodrigues (Pr. n.º 9560 - judaísmo), Pero Domingues e Miguel Fernandez de Luna, nove meses atrás, dizia o frade que era filho de uma judia da geração de David e de um português, parente dos Reis de Portugal. Viu que o frade tirava toda a gordura da carne e dizia que o fazia para seguir a Lei de Moisés. Refere bastante mais detalhes das conversas de Frei Diogo.

 

DEPOIMENTOS dOS cONFRADES e dOS pADRES dOUTOS qUE fORAM mANDADOS eSTAR cOM o rÉU

 

img. 108 -  15 de Janeiro de 1601

Texto escrito por Fr. Francisco dos Mártires,  Guardião do Convento de S.to António da Castanheira., dirigido à Mesa da Inquisição. Esta havia-lhe dado ordem de entregar todos os “cartapácios, cadernos e papéis” de Fr. Diogo. Mas já não estavam no Convento, porque Fr. Jerónimo (deve ser Fr. Jerónimo de Jesus) com Fr. Diogo da Conceição e Fr. Sebastião, haviam-nos levado para o Convento dos Capuchos.  Fr. Diogo estava a ler um livro que o Convento lhe emprestara e, pelo sim pelo não, ele levava-o para o entregar na Mesa.

No texto, salta a vista o medo pavoroso que o Padre Guardião tem da Inquisição. Termina dizendo: “… e confesso que com, logo no princípio da sua fugida, presumir ser de alguma grandíssima tentação e crassa ignorância, depois que falei com ele alcancei  ter esse frade altíssima dissimulação, e o tenho por tão judeu  como quantos estão em Berbéria. Bem pode ser que me enganarei , mas quando me engano, o que tem largado pela boca me escusara.”

O Notário devolveu em 22-2-1601 o livro entregue pelo Padre Guardão que era  “Questionarium conciliationis simul et expositionis locorum difficilium sacrae scripturae, por Frei Marcos de la Camara Complutense, “por não haver nele glosa alguma escrita de mão”.

 

img. 111– Carta do seu confrade e conterrâneo Frei Jerónimo de Jesus, no século Jerónimo Fagundes, de 15 de Abril de 1603.

Não é de facto testemunha de defesa, antes pelo contrário. Segundo ele, Fr. Diogo zombara do culto das imagens e dissera que o livro de Fr. Marcos de la Camara sobre as dificuldades de interpretação das Escrituras era um “livro parvo”.  Mas acrescenta: “ … e lhe perguntei eu quem lhe ensinara tanta matinada de coisas como dizia. Respondeu que Deus  (…) e me disse em sonhos, pois que assim costuma Deus de falar aos seus, como a José falou. Daqui e de outras conjecturas que tinha, inferi que sem dúvida em sonhos lhe falara o demónio; e as conjecturas são porque ele na religião costumava falar por sonhos, mui alto e com muita veemência; e, repreendendo-o eu asperamente disso, dizendo-lhe nunca havia de ser confessor porque descobriria as confissões, agastou-se muito comigo”.

 

img. 113 – Tem a nota de ter sido entregue em 3 de Julho de 1603, mas deve ter sido redigido em data anterior

Relatório de Fr. Paulo Foreiro

O réu é herege da perfídia judaica, com o erro dos Saduceus, porque nega a ressurreição das carnes. Mas não é bem Saduceu, porque não nega a imortalidade da alma, como eles. Tem outros erros no judaísmo.  Tem para si que ele agia com seu juízo perfeito., porque falava muito a propósito com todos os subterfúgios.  Acha que o réu tem contactos com o demónio e que lhe fala. Pelas razões dos hereges, calunia a vida monástica, “que mais parece nisso luterano que judeu”. Escreve: “Tenho o fradinho por ignorante, mas astuto como herege (…) Ele é herege judeu (…) tem outros erros adjuntos e está pertinaz. E não cuido que tem nada de infâmia, senão de alguma comunicação absque dubio com o diabo.”

 

img. 115 - Tem a nota de ter sido entregue em 13 de Julho de 1603, mas deve ter sido redigido em data anterior.

Fr. João de Valadares.

Relata que falou com o réu duas vezes por mandado dos Inquisidores. Achou-o pertinaz nos erros judaicos contra a SS.ma Trindade, contra a divindade de Cristo e contra o Sacramento da Eucaristia. Pareceu-lhe muito indouto, contudo memorizou bem muitas citações da Bíblia. A paixão e impaciência que mostra é fruto da sua grande obstinação.

img. 117 – sem data

Fr. Francisco Cardoso

Diz que o réu não está doido. Faz-lhe lembrar outro preso de Coimbra, que a Inquisição queimou e que tinha bom entendimento, só desatinava em matéria de religião.  Presume que ele tem contactos com o demónio que o ensina. Acha que ele tem por força de ser castigado, E o castigo deve também servir para “se ter mais resguardo nas religiões no receber homens de nação”.

 

img. 121 – 11 de Dezembro de 1602

Fr. Diogo da Conceição – Ministro Provincial

Fr. Diogo da Assunção veio para o Convento em Julho de 1593 com Fr. Jerónimo Fagundes, também de Viana e agora sacerdote. Ao fim de um ano tomou o hábito . Mas foi-lhes dito que se se descobrisse que tinham alguma raça de judeu, mouro ou herege, a profissão seria nula e de nenhum vigor.  Ali, em Santo António dos Capuchos, ficou 3 ou 4 anos e depois foi a estudar para Santo António da Castanheira, donde foi passar férias de 3 ou 4 meses a Santo António da Merceana.  Deu sempre boa conta de si e no convento de Lisboa foi enfermeiro “e por proceder bem e dar mostras de bom Religioso e sisudo, lhe deram as ordens de Epístola e de Evangelho. (…) Ele é herege judeu. (…) tem outros erros adjuntos e está pertinaz.”

Um Fr. Francisco das Chagas, que é também de Viana do Castelo, e agora está no Convento de Viseu,  chamou-o judeu ou cristão novo. Tomou o hábito mais tarde, mas tem já ordens de Missa, tal como Fr. Jerónimo Fagundes.  Fr. Diogo ficou aborrecido e pediu ao Provincial Fr. Pedro dos Santos que lhas desse também. Mas é costume não dar as ordens aos Religiosos que as pedem e por isso foram-lhe negadas. Fr. Diogo queixou-se publicamente do Provincial. Com isto andou ano e meio até que fugiu do Convento da Castanheira no São Tiago de 1599. E logo no dia seguinte, trouxe-o João de Sousa, filho de Jorge de Sousa dos Cadafais, a meia légua do Convento da Castanheira.  A testemunha acudiu a isso e vendo que Fr. Diogo tinha dito ao Sousa algumas coisas contra a Fé, trouxe-o do cárcere da Castanheira para o dos Capuchos em Lisboa. Veio por mar até à cidade e foi para o cárcere. Foram dizer à Inquisição que ele estava nos Olivais, por haver então peste em Lisboa. Mandou falar com o preso a Fr. Miguel Rangel que agora é Bispo de Angola; o preso disse a este que estava arrependido e queria confessar a sua culpa. Ele testemunha falou com Fr. Diogo e o admoestou. E foi trazido para o cárcere da Inquisição.

“…sempre o dito Fr. Diogo procedeu como homem sisudo e capaz, e nunca fez nem disse coisa de que se pudesse coligir ser doido ou falto de juízo; e se o fizera ou dissera, ele testemunha o soubera por ser seu guardião no tempo em que foi noviço e depois por ter cargos na ordem e tomar informação como procediam os Religiosos dela, entanto o dito Frei Diogo era tido na ordem por um homem santo. E as obras que fazia o mostravam, e ele declarante por lhe fazer a profissão, o tinha na ordem como filho e nunca com ele teve diferença alguma.”

 

img. 126 – mesma data

Padre Frei Belchior, definidor, de 61 anos

Veio do Brasil em 1595 para o Convento de Lisboa e então era Fr. Diogo, enfermeiro.  No Capítulo foi nomeado Guardião do Convento e teve-o por seu súbdito. Foi Fr. Diogo para o Convento da Castanheira e continuou a fazer serviço de enfermeiro. Ele testemunha esteve lá doente e ele curava-o. Na manhã do dia em que fugiu, tinha-lhe dado uma purga.

Conta a mesma história que o anterior (Fr. Francisco das Chagas que dizia que ele era judeu ou cristão novo). Queixara-se por os outros serem ordenados sacerdotes e ele não.  Como religioso era sisudo e capaz, só era um pouco impaciente e colérico. 

img. 130 – Francisco de Cascais Lourenço

img. 131 – 1 de Janeiro de 1603

Fr. Jerónimo de Jesus

Já conhece o réu há 15 ou 16 anos.  Pede licença para vir de Coimbra a Lisboa para falar com o réu.

ing. 134 – 26 de Março de 1603

1.º testemunho de Fr. Jerónimo de Jesus.

Conta a vida paralela dele com o réu. Viviam ambos em Viana do Castelo, têm a mesma idade. Foram estudar juntos para Braga nos Jesuítas e entraram juntos nos Franciscanos, no mesmo Convento, onde professaram juntos.

Sempre considerou que o pai de Fr. Diogo era cristão velho e ficou muito admirado quando se disse no Convento que seria meio cristão novo.

Estavam ambos no Convento da Castanheira quando ele fugiu. A certa altura, comprou um livro de Fr. Marcos de La Camara para oferecer a seu tio Baltasar Fagundes, Vigário de Vila Real e Fr. Diogo pediu-lho emprestado para o ler. 

Diz-se entre os religiosos que ele fugiu por não lhe quererem dar ordens de Missa.

Perguntado pela capacidade e entendimento de Fr. Diogo, disse que sempre lhe achou bom entendimento, que era religioso e caritativo e apenas tinha uma pouca de cólera quando era contrariado.

img. 138 – 3 de Abril de 1603

Fr. Jerónimo de Jesus conversou a sós com Fr. Diogo e foi depois dar conta à Mesa da conversa que tinham tido.

Fr. Diogo está judeu e defende o seu judaísmo. Expôs as suas ideias em matéria de religião, negando a SS.ma Trindade, que Cristo fosse o Messias, menosprezando o ensino dos doutores da Igreja.  Zombou de S. Francisco, Santo António e Santo Agostinho, e do Papa, um homem que está em Roma e chamam Papa. Deus o tinha alumiado a ele.

Não consentiu que Fr. Jerónimo lhe pegasse com a mão dizendo que estava poluta. Fr. Jerónimo conseguiu que se despedissem abraçando-se como amigos. Fr. Diogo abençoou-o com as palavras; “Benedicat tibi Dominus et custodiat te ut videas dies bonos et recedas a malo” estendendo a mão mas sem fazer o sinal da Cruz.

img. 140 –  4 de Julho de 1603

Ratificação do depoimento de Miguel Figuet contra o réu em 22-9-1600

img. 142 –4 de Julho de 1603

Ratificação do depoimento de Miguel Fernandez de Luna em 19-12-1600

img. 145 – 11 de Janeiro de 1603

Traslado da ratificação do depoimento de António Gomes Gorjão em 24-7-1601

 

RETOMA DOS INTERROGATÓRIOS INTERROMPIDOS DOIS ANOS ANTES

img. 175 – 20 de Junho de 1602

O Inq. Manuel Álvares Tavares mandou-o chamar. Jurou em nome do Redentor do mundo, o que originou discussão com o Inquisidor; disse que Cristo não foi Redentor porque Cristo é remido e não é Redentor. Se cuidou em suas culpas? Disse que cuidou mas não as há-de confessar aqui se não a Deus. Quer ser cristão ou ser judeu? Quer ser judeu, quer seguir a lei dos judeus e nela salvar-se. Disse que seu pai era gentio e sua mãe descendia de Abraão. 

É judeu desde que foi preso pela Inquisição. Antes de ser preso reprovava os sacramentos, mas não queria ser judeu. Nas suas palavras: “mas nunca disse que era judeu; e que é verdade que depois que está nestes cárceres é judeu e filho da Igreja de Sion e que antes que viesse a eles nunca foi judeu.

Cristo foi profeta mas não Redentor. Conhece o perigoso estado em que se encontra? Disse que não está em estado perigoso, “quia in velamento alarum tuarum exultabo (Salmo 62,8) ; adhæsit anima mea post te; me suscepit dextera tua (Salmo 62,9). Disseram-lhe que deveria pedir perdão e misericórdia, pois, a continuar assim, a Mesa não poderia deixar de usar com ele do rigor da justiça.

img. 179 – 3-9-1602 – Perguntado se cuidou em suas culpas, disse que não tinha culpas contra a fé. Disse de facto primeiro queria ser cristão, mas isso foi antes de estar alumiado, mas agora o está na lei de Moisés, que é também a Lei de Cristo, pois ele disse” non veni solvere legem sed adimplere”. Perguntaram-lhe se queria estar com um padre para o alumiar. Respondeu que estava alumiado. Quer ele ser cristão no âmbito da Igreja Romana? Disse que a Igreja Romana não é a Igreja de Deus, pois esta está em Jerusalém. Não quer dar obediência ao Sumo Pontífice cabeça da Igreja de Roma. Perguntado quem lhe ensinou o seu modo de pensar e com quem o comunicou, disse que ninguém  e também com ninguém o comunicou.

Notas mihi fecisti domine vias vitae adimplebis me laetitia cum vultu tuo delectationes in dextera tua usque in finem” : Nem homem nem mulher lhe ensinaram nada disto; pelo contrário, seus pais só lhe ensinaram falsidades e mentiras. Não tem necessidade de nenhum padre que o elucide.

img. 182 – 30-10-1602 – Termo de admoestação

Foi a admoestação antes do libelo.

img. 184 – Libelo

Ouvido o libelo, o réu disse que persiste em seguir a Lei dos judeus e que na lei de Moisés espera salvar-se. Disse que jejuou muitos dias por guarda da Lei de Moisés. Disse que não queria procurador para se defender.

No termo a seguir, diz-se: “… o senhor Inquisidor mandou (…) fizesse este termo em como o dito Fr. Diogo respondeu a todas as perguntas que lhe foram feitas e acima estão as provas que estava em seu siso e entendimento e eu Notário dou fé que o dito Frei Diogo em todo o dito tempo esteve muito sisudo e calado ouvindo e respondendo com muito siso e tudo a propósito estando sempre sisudo e alegando muitas autoridades.”

Quando na Inquisição se repete a mesma coisa muitas vezes, o mais certo é que seja mentira…

img. 194- 6-11-1602 – Inq. Manuel Álvares Tavares.

O  réu não quis responder por escrito aos libelos da justiça. Vai o Inquisidor interrogá-lo. 

Contestando tudo, praticamente aceitou todas as acusações que lhe haviam feito, citando muitas frases latinas da Bíblia, por mero exemplo: Convertimini, convertimini a viis vestris pessimis; et quare moriemini, domus Israel. (Liv. do Profeta Ezequiel, 33,11) Domine, Dominus noster,quam admirabile est nomen tuum in universa terra! (…)Quid est homo, quod memor es ejus? aut filius hominis, quoniam visitas eum?  (Salmos  8,8)

img. 199 – 7-11-1602 – Inq. Manuel Álvares Tavares

Prosseguiu as ruas “respostas” aos artigos do libelo, no mesmo estilo, fazendo inúmeras citações da Bíblia em especial dos Salmos.

img. 206 – 8-11-1602 – Inq. Manuel Álvares Tavares

Prosseguiu a sessão. No início o réu diz sempre que jura e promete dizer a verdade pelas palavras de Deus contidas no livro dos Evangelhos, mas não pelas palavras de Agostinho.

Sobre o 7.º artigo, diz que o mundo não se há-de acabar, porque as obras de Deus permanecem para sempre e citou o Salmo 148: Laudate Dominum de cælis (…)Quia ipse dixit, et facta sunt; ipse mandavit, et creata sunt. Statuit ea in æternum, et in sæculum sæculi; præceptum posuit, et non præteribit  e do Salmo 92: “Deus enim firmavit orbem terrae, qui non commovebitur

img. 211 – 9-11-1602 – Inq. Manuel Álvares Tavares

Prosseguiu do mesmo modo a sessão.

img. 219 – 11-11-1602  Inq. Manuel Álvares Tavares (o dia 10 foi domingo)

Prosseguiu a sessão.

img. 225 – 12-11-1602 - Inq. Manuel Álvares Tavares

Último dia da sessão de resposta aos artigos do libelo, que ocupam 37 páginas do processo (e não 70 como diz Miriam Bodian)

img. 230 – 15-11-1602 – Aceitação da procuração

Diz o processo que o réu nomeou o Lic. Miguel Nuno como seu Procurador e este prestou juramento.

img. 241 – Em nome do réu, o Procurador diz que não tem defesa nem contrariedade a apresentar. O Inquisidor despacha: “Visto como o réu Fr. Diogo esteve com seu procurador e não formou sua defesa, temo-lo por lançado dela no processo por diante nos termos em que está.

img. 242 – 18-11-1602 – Notificado ao réu o despacho anterior. A seguir foi chamado pelo Inquisidor à Mesa para prestar mais declarações. Perguntado, disse não querer obedecer à Igreja de Roma. Que Cristo foi filho de Deus, como o são os mais filhos de Israel; foi remido, não redimiu.  Disse que tem este modo de pensar desde que está preso na Inquisição.  Desde quando se apartou da Igreja Romana? Disse que à volta de um mês antes da sua fuga. Disse que ninguém o ensinou, foi Deus. Que ”tomara o hábito sendo menino sem saber o que fazia e que agora entendia que as coisas da igreja de Roma era tudo hipocrisia e fingimento e falsidades, e que por isso, não queria crer nem viver nela..

Disse que não quer ouvir letrados nem doutores para o elucidar, pois não tem dúvidas.

Agora diz o Gloria Patri, mas omitindo “et Filio, et Spiritui Sancto”, pois não acredita na SS.ma Trindade.

Se ele aprendeu a doutrina judaica pelo breviário, quem lhe ensinou as cerimónias judaicas que não estão no breviário?  respondeu com locuções latinas da Bíblia: “ignitum eloquium tuum vehementer et servus tuus dilexit illud” (Salmo 118) .

img. 246 – 21-1-1603 – O réu pediu Mesa. Réu e Inquisidor fazem uma conversa de surdos, cada um nas suas posições já conhecidas. No final, o réu assina “xp’s dn’s que é o mesmo frei Dº dassumpção.” (img. 249), ou seja Cristo Senhor. O Inquisidor presumiu que o réu se afirmava “santo” porque em tempos tinha dito que todo o homem santo era Cristo. Mas por não querer encolerizar o réu, não lhe fez qualquer pergunta, como mandou exarar na img. 250.

img. 250 – 16-5-1603 – O Inquisidor Manuel Álvares Tavares mandou-o vir à Mesa. Peguntou-lhe se ele quer regressar à fé católica e à obediência à Igreja; respondeu ele negativamente, dizendo que quer guardar a Lei de Moisés.  Disse-lhe o Inquisidor que ele seria severamente castigado se perseverasse em tão mau caminho.

img. 251 –  16-6-1603 - Termo de admoestação antes da publicação (da prova da justiça)

img. 253 – Publicação da prova da justiça.

Ouvida a leitura das provas, disse que era tudo verdade, que não tinha contraditas com que vir e também não queria estar com o procurador. Mas o Inquisidor mandou que estivesse com o procurador.  A 25 de Junho, devolveu o traslado das provas da justiça. O Procurador anotou que não via defesa com que fosse possível vir.

img. 288 – 3-7-1603  - Assento da Mesa

“... E pareceu a todos os votos que visto como sendo ele preso, confessou suas culpas de judaísmo, pedindo delas perdão e misericórdia: e nisso perseverou por espaço de tempo, mostrando sinais de arrependimento: e depois se revogou da dita confissão espontânea que havia feito, dizendo que a fizera por ainda não estar alumiado: tornando a continuar a crença dos ditos erros; e sendo neste tempo por muitas vezes admoestado com caridade, assim nesta mesa, como por religiosos pios e doutos de várias religiões (…)  em confirmação de seu judaísmo e apostasia, dizendo grandes blasfémias contra a pureza e limpeza de nossa santa fé católica e Igreja Romana (…) como herege e apóstata seja entregue à justiça secular (…) que se tenha particular cuidado do Réu, para que não perca a sua alma e se reduza à nossa Santa Fé Católica…”

img. 291 – 10-7-1603 – Assento do Conselho Geral

Foram vistos estes autos na mesa do Conselho Geral e assentou-se que é bem julgado pelos Inquisidores, Ordinário e Deputados em condenarem o Réu, frei Diogo da Assunção que tem raça de cristão novo, seja degradado actualmente de suas ordens, e entregue à Justiça secular, por herege, apóstata pertinaz, convicto, confesso: e em declararem que incorreu em excomunhão maior e nas mais penas de direito; confirmam sua sentença pelos seus fundamentos, mandam que se dê a execução. E que antes dela se tenha particular cuidado do Réu, dando-se-lhe alguns Religiosos que estejam com ele para o poderem reduzir à nossa santa fé; e que vá ao auto com uma mordaça na boca, persistindo em sua pertinácia. E em sua sentença se declarará que tem raça de cristão novo.”

 

img. 293 – 10-7-1603 – Auto de notificação e admoestação.

img. 294 – 1-8-1603 – Notificação de mãos atadas

img. 294 – Sentença

img. 304 – Publicação da sentença no auto da fé de 3 de Agosto de 1603

Foi publicada a sentença acima escrita ao réu frei Diogo da Assumpção em sua pessoa, em Lisboa no auto público da santa fé, que se celebrou na Ribeira delia aos três dias do mês de agosto deste ano estando presente o viso rei dom Cristóvão de Moura, e muita gente, domingo três de agosto de 1603 anos. E logo foi deposto das ordens e degradado delas, e entregue ao corregedor Rodrigo Homem. E morreu queimado vivo.  Francisco de Burgos o escrevi.”

 

Sentença da Relação:

Acórdão em Relação – Vista a Sentença dos Inquisidores, Ordinário e Deputados da Santa Inquisição, em que declaram ao Réu, Fr. Diogo da Assumpção por herege, apóstata e pertinaz da nossa santa Fé, e como tal o relaxam e entregam à Cúria secular, e que vista a disposição de direito em tal caso, o condenam a que, com baraço e pregão, seja levado pelas ruas públicas ao ligar do suplício, e posto em um poste alto será queimado vivo e feito em cinza e pó, para que dele não haja memória; e seus filhos, e netos percam sua fazenda para a Coroa e Câmara Real; e pague as custas. Lisboa, 3 de Agosto de 1603. Sebastião Barbosa = Gama = Simão Monteiro = Luis de Bastos e Brito = Fernão de Magalhães.

Custas – 5$046 réis.

 

Podemos concluir que Fr. Diogo da Assunção não tinha crença judaica, utilizou o judaísmo para a sua revolta contra a opressão. Nas suas declarações, perpassam até algumas ideias dos luteranos, de ouvir dizer, que não de leituras. O judaísmo esse foi buscá-lo ao Antigo Testamento. Quando menciona ritos e cerimónias judaicas, fá-lo com inexactidões, certamente nunca as praticara. Não foi um mártir de religião nenhuma, foi mártir da sua dignidade. Neste ponto, estou plenamente de acordo com Miriam Bodian, quando diz: "On May 16, 1603, Frei Diogo was again summoned to an audience. He was solemnly advised that if he would return to the Church, the tribunal would deal with him mercifully. Even if Frei Diogo had believed that such “mercy” would save him from the stake – he was surely not so naïve – it would have been an act of sheer psychic self-destruction for a person with such a brittle personality to capitulate. His self-esteem was now entirely bound up with his role of resistance and martyrdom (pag. 109).

O Conselho Geral queria que se dissesse para o exterior que ele tinha parte de cristão novo, mas nem o Assento da Mesa, nem a sentença, nem a lista do auto da fé mencionam o facto. Eram duas maneiras diferentes de encarar a acção da Inquisição. Sublinhar que o frade era cristão novo era assumir a política da perseguição a todos os cristãos novos; ocultá-lo era acentuar a faceta da perseguição dos heréticos.  Acho que a Mesa pequena tinha algum pejo em acusá-lo como cristão novo, porque o processo dele era muito diferente do que era habitual no caso dos cristãos novos: não havia denúncias das suas culpas, ninguém tinha dado nele. Praticamente, também não havia confissão porque ele já tinha confessado todas as suas ideias a Diogo de Sousa. E sabiam muito bem que não havia tradições judaicas na família, apesar dos vestígios da raça no sangue. A questão da raça tinha tão pouca importância que ele trocava a ascendência e dizia que a parte de cristão novo lhe vinha de sua mãe.

 

  

 

A Diego de la Ascensión

 

 

En el año de mil y seiscientos

y tres, a tres de Agosto, la severa

Inquisición levanta horrible hoguera

en Lisboa con humos turbulentos.

 

No teme sus flamígeros tormentos

Diego de La Ascensión, en la carrera

que a la Ley alcanzando verdadera

la mantiene con altos documentos.

 

Rompe los yerros de opresión violenta

y arrojando al suplicio que lo enciende

muere y renace Fénix de su lumbre.

 

De Judá honor e del convento afrenta,

su cuerpo en la ceniza al mar desciende

y su alma sube en luz a empírea cumbre.

 

Miguel de Barrios (1635 – 1701)

 

 TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Elvira Azevedo Mea, Diogo d’Assunção, o mártir marrano, Proceedings of the eleventh World Congress of Jewish studies, Division B, vol. 1 pag. 114

Jerusalem, World Union of Jewish Studies,  1994  

 

Miriam Bodian, "A Monk of Castanheira", em Dying in the Law of Moses, Crypto-Jewish Martyrdom in the Iberian World, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 2007

 

David M. Gitlitz, Secrecy and Deceit, The Religion of Crypto-Jews, Jewish Pubn Society, 1996

 

João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses, Porto, 1921

Online: www.archive.org

 

Camilo Castelo Branco, Frei Diogo da Assunção, em Mosaico e Silva de curiosidades históricas, litterárias e biográficas, Livraria Chardron, Porto

 

Sentença de Diogo da Assunção no pr. n.º 104 da Inq. de Lisboa, in O INSTITUTO n.º 11-12, pag. 221 e ss., 1863

 

António José Teixeira, António Homem e a Inquisição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1895.

Online: www.archive.org

 

Tomás Lino d’Assumpção, Histórias de Frades, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1900

Online: www.archive.org

 

Cecil Roth – A History of the Marranos – Schocken Books, New York, 1974

 

Regimento da Santa Inquisiçam de 1552, em António Baião, A Inquisição em Portugal e no Brazil, doc- XXXI, 1906, separata do Arquivo Historico Portuguez. vol. IV e ss.

Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, 2.º vol. , Coimbra, 1895

 

António Joaquim Moreira, Sentenças da Inquisição

Online: http://purl.pt/15141