10-12-2008

 

Versão original, em italiano                 

 

Informação sobre o Reino do Congo de Fr. Raimundo de Dicomano (1798)

 

 

Os missionários no Congo, no final do sec. XVIII

 

O texto que abaixo se transcreve tem na sua origem uma história algo atribulada que se liga intimamente às missões portuguesas do Congo no sec. XVIII.

Dada a falta de missionários em Portugal, aceitou o Governo Português que o Congo fosse evangelizado a partir de 1645 por Capuchinhos Italianos que agiam mais ou menos sob a autoridade da Congregação de Propaganda Fide, de Roma. Ali deixaram a saúde e muitas vezes a vida algumas centenas deles, pois o clima e as condições de vida eram inclementes e não perdoavam.

Porém, em meados do sec. XVIII, o Marquês de Pombal opôs-se à ida de missionários italianos para Angola e para o Congo, de modo que, em 1765, o Congo foi praticamente abandonado pelos Capuchinhos.

Em 1778, subiu ao trono D. Maria I e o Marquês de Pombal foi afastado. A Soberana pediu aos institutos religiosos portugueses que procurassem missionários para a Conquista de Angola e foi assim que embarcaram dezoito em 22 de Junho de 1779. Destes, partiram 4 para o Congo em 2 de Agosto de 1780, entre os quais Fr. Rafael de Castelo de Vide, que faleceu Bispo de S. Tomé e do Príncipe em 17 de Janeiro de 1800. Um faleceu no caminho e outro ainda missionou no Congo mas veio a falecer em 8 de Maio de 1783. Ficaram no Congo o dito Fr. Rafael e o Padre Doutor André do Couto Godinho, preto originário do Brasil, Licenciado em Cânones pela Faculdade de Direito de Coimbra.

Como se vê do texto abaixo transcrito, os Padres eram muito importantes como sustentáculos do poder do Rei em S. Salvador do Congo, desde que, logo no sec. XVI, os Reis e toda a população se converteram e adoptaram um certo Cristianismo, utilizado para a unificação do Reino. Instalou-se até a tradição de que o Rei tinha de ser coroado por um missionário.

Em 1785 foi enviado para S. Salvador do Congo o padre Agostiniano descalço, Fr. José de Torres, para reforçar os dois que ali se encontravam.

Entretanto Fr. Rafael teve graves achaques de saúde e decidiu partir para Luanda com o P.e José de Torres em 28 de Junho de 1788; chegaram ambos a Luanda após quarenta dias de viagem. Ficou sozinho no Congo o Padre Doutor André Godinho, que ali faleceu em 1790, deixando mais uma vez S. Salvador sem Padres.

 Em 1790, a Propaganda Fide enviou para Angola o missionário capuchinho, Fr. Raimundo di Dicomano nascido em Dicomano, na Toscana em 1754.

 Embarcou ele em Lisboa, com Fr. Giuseppe Maria da Firenze em 20 de Julho de 1790, chegaram a Luanda em 27 de Junho de 1791.

 Em 17 de Março de 1792, o Governador D. Manuel de Almeida e Vasconcelos recebia uma embaixada do Rei do Congo, D. Aleixo 1.º, pedindo o envio de um padre Capuchinho para o coroar.

 Em 28 de Agosto de 1792, o Governador enviou então Fr. Raimundo de Dicomano ao Congo com um alferes para servir de intérprete.

 Em Julho de 1793, enviou como reforço mais dois padres capuchinhos chegados a Luanda em 9 de Fevereiro de 1793, P.es Dionigi de Mondovi e Fedele da Pistoia, e um Irmão laico, Cristoforo de Riolo.

 Estes chegaram a Bamba Congo, onde não os deixaram prosseguir caminho. Adoeceram e pediram socorro ao Governador que enviou uma expedição com um mensageiro para negociar a sua libertação. O mensageiro conseguiu que eles pudessem regressar a Luanda.

O mensageiro prosseguiu depois viagem para S. Salvador a fim de se informar da situação de Fr. Raimundo de Dicomano e do alferes.

 Fr. Raimundo foi bem recebido pelo rei Aleixo 1.º mas este morreu pouco depois e foi substituído pelo Rei Joaquim que se opôs ao missionário.  Este reinou muito poucos meses e foi substituído por Henrique 1.º , ainda em 1794 (tendo já havido um Henrique I por volta de 1567, parece que deveria ser Henrique II).

 Fr. Raimundo foi hostilizado pelo Rei, como se vê da Informação abaixo transcrita. Foi protegido pelo Príncipe, senhor de Quibango, o futuro Garcia V, que reinou de 1803 a 1830.

O Padre regressou a Luanda logo em Fevereiro de 1795, esgotado de cansaço pelas dificuldades e sofrimento por que passara.

O Governador pediu-lhe um relatório que ele escreveu em italiano, em 16 páginas de letra miudinha.

Partiu de Angola em 31 de Julho de 1798 com Fr. Giuseppe Maria da Firenze.

Ainda missionou no Brasil, na Baía. Ali faleceu a 27 de Março ou 27 de Maio de 1812.

Por muitos anos, nenhum missionário voltou ao Congo. Foi enviado um em 1804 para coroar Garcia V, que o pedia insistentemente, mas morreu no caminho. Só em 1813 é que o Prefeito dos Capuchinhos Luigi Maria d’Assisi foi ao Congo coroar Garcia V.

 

Informação sobre o Reino do Congo de Fr. Raimundo de Dicomano (1798)

 

O original italiano do manuscrito de Fr. Raimundo di Dicomano esteve perdido até 1977. Era, porém conhecida, uma cópia de uma tradução portuguesa num livro de cópias da BNP – cod. 8554, ignorando-se quem a terá feito.

 Em 1957, o belga Cónego Louis Jadin traduziu para francês essa tradução portuguesa e publicou-a anotada no Bulletin des Séances de L’Academie Royale des Sciences Coloniales, tomo III, fasc. 2, de 1957, pages 307 à 337, com o título Relation sur le royaume du Congo du P. Raimondo da Dicomano, missionnaire de 1791 à 1795.

 Em 1972, por sua vez, o P.e António Brásio publicou o texto português na revista Studia n.º 34, 1972, pags. 19 a 42.

 Em 1977, o P.e Fr. Carlo Toso publicou em Itália uma versão italiana muito anotada, traduzida do texto português com o título L'informazione sul regno del Congo di Raimondo da Dicomano  na revista L’Italia Francescana, n.º 52,  1977, pags. 299-375 .

 Descoberto o original italiano, o P.e António Brásio preparou a sua publicação antes de falecer em 1985. O texto foi publicado na revista Studia n.º 46, 1987, pags. 303-330.

 A tradução do cod. 8554 é bastante livre, mas o pensamento expresso corresponde ao do original. Já a tradução aqui apresentada é bastante mais literal e, sendo a construção do Português praticamente igual à do Italiano, deixei ficar alguns lapsos de concordância e erros de construção que estão no original e não afectam a compreensão.

No intuito de maior divulgação, repito a publicação do original italiano (aqui), corrigindo alguns lapsos de leitura do P.e Brásio.

  

Não tem base de sustentação a afirmação do P.e Brásio de que ambas as versões – o original italiano e a tradução portuguesa do cod. 8554 – são da  mão de Fr. Raimundo, porquanto constata-se o seguinte:

1.º O tradutor não verteu para português palavras ou expressões que não conhecia, já que não deveria ter à mão elementos de consulta, por ex.

Passarsela – viver bem

Mallevadore – garante, fiador.

Claro que, se o tradutor fosse Fr. Raimundo, não teria esse problema.

 2.º O tradutor quis mostrar o seu conhecimento de nomes e costumes indígenas e fez vários acrescentos ao original:

- Falando de caça, acrescentou as empacassas

- Alterou a sumária referência ao amendoim pisado como tempero, para “por tempero usão de moamba que é amendoins pizados com dungos ou seja, pimenta da terra

- acrescentou que aos gafanhotos chamam nenconco

- no crime de “pecar com mulher solteira”, acrescentou que a “pena é pagar o dote a dobrar e o mucano, que é o que em Luanda chamam lembamento”.

- substituiu o nome das papas em italiano (pulenda) pelo indígena angú.

 3.º A tradução portuguesa do cod. 8554 é muito mais correcta gramaticalmente que o original italiano de Fr. Raimundo.

 Para além disso, não encontrei na versão portuguesa muitos italianismos como diz o P.e Brásio; eventualmente, “ouvir missa”, em vez de “assistir à missa” pode ser um.

 

 

INFORMAÇÃO

 

apresentada ao Il.mo e Ex.mo Senhor D. Miguel António de Melo, Governador, e Capitão Mor do Reino de Angola, por Fr. Raimundo de Dicomano, Missionário Capuchinho Italiano, da Província de Toscana; na qual descreve tudo o que viu e obrou, nos três anos, que passou missionando no Congo, sobre os costumes, as ideias religiosas e políticas dos povos dos pretos da África Ocidental, confinantes com os Estados de Sua Majestade Fidelíssima, ou que lhe são sujeitos, e que habitam a norte da Cidade de S. Paulo da Assunção.

 

Il.mo e Ex.mo Senhor,

 

Para satisfazer o pedido, que V. Ex.ª me fez de lhe relatar por escrito o que vi e pude saber no decurso de três anos, que ocupei ainda que indignamente o posto de Missionário do Reino do Congo, não só no que respeita à Religião actual daqueles povos, como ainda ao seu Governo e costumes, descreverei neste relatório tudo o que vi e de que presentemente me recordo, dispensando-me de narrar a V. Ex.ª muitas coisas que se contam, das quais não tenho grande certeza. Para tornar este relatório o mais inteligível possível, dividi-lo-ei em parágrafos, e acrescentarei algumas notas para explicar os nomes, e termos próprios do País.

 

§ 1.º - Religião actual do Congo

 

Contam os historiadores que em tempos antigos floresceu no Congo a Religião Católica. Sua Majestade Fidelíssima, o Rei D. João II de Portugal, de feliz memória, foi o primeiro que a introduziu naquele vasto Reino, enviando, no ano de 1492, Missionários da Europa, que, chegados ao Rio Zaire, desembarcaram no Principado do Soio, e dali passaram para o Congo. Afonso, filho de D. João, o primeiro Rei do Congo que recebeu o Baptismo, deu muitíssimas provas do seu grande zelo e amor pela Religião, e pela propagação do Evangelho de Jesus Cristo. Logo que recebeu o Baptismo, e foi instruído nas verdades da Religião, mandou destruir os ídolos, exilou os Bruxos e os Feiticeiros, e proibiu todas as superstições, e chegou tão longe o seu zelo, que enterrou viva sua Mãe por esta não querer abandonar a idolatria.

Ele próprio andava a instruir os seus povos nas verdades mais importantes da Religião Cristã, e ajudou de tal modo os Missionários, que em pouco tempo aquele grande Reino se tornou Cristão; mas hoje em dia, as coisas mudaram totalmente de figura, porque a Religião, que agora se encontra pelo Congo, não é senão pura aparência, e apenas se vê um ou outro vestígio de Cristianismo e de Religião.

Estes povos conservam ainda a ideia de que existe um Deus Omnipotente, Criador do céu, e das terras, Juiz dos vivos e dos mortos, que premeia os bons e castiga os maus, mas esta ideia, que lhes resta, é muito confusa e superficial. Encontram-se algumas pessoas que invocam e chamam a Deus, Zambianbungo, mas não sabem realmente o que significa esta palavra. Sabem contudo, que Deus é uma coisa grande, e temem-no, e ficam convictos neste pensamento pelo que ouvem dizer aos velhos e porque existem ainda alguns restos de igrejas, e cemitérios e por verem passar algumas vezes os Missionários.

Eles pensam e protestam que são Cristãos, e consideram-se mais honrados que os que não o são, a quem por desprezo chamam Gentios, e querem o Baptismo de Cristãos. E na verdade o Missionário enche-se de ternura quando, passando pelas suas Banzas [1], vê aquela grande multidão de povo correr em magotes levando os seus filhos ao Padre para que os baptize, pedindo em altas vozes anamungoa [2] – Baptismo; provocam um aperto no peito e muitas vezes faz saltar as lágrimas vê-los deitar-se por terra, erguer as mãos ao céu pela alegria que sentem em ver o Missionário, a quem pedem a bênção. Mas se o Padre Missionário os chama amorosamente para junto de si para lhes ensinar a doutrina Cristã, e instruí-los nos Santos mistérios da nossa Santa Religião, não querem ouvir, nem os querem aceitar; e, se o Padre Missionário recusa baptizá-los, porque não sabem nem querem aprender a doutrina, todo o grande amor e benevolência que lhe demonstravam se transforma em furor, e o Padre com toda a sua gente fica em grande perigo de ser assassinado, e perder a vida, pensando eles que o Padre os tem em pouca estima e os despreza, sentindo-se afrontados e desonrados.

(1).BANZA. Banza é uma quantidade de cabanas juntas, em que habita um povo governado por um Senhor intitulado Infante, Duque, Príncipe, Marquês, que são construídas geralmente junto dos rios, ou de algum lago e onde há água, e são sempre edificadas dentro de bosques, e não lhes deixam senão um pequeno e muito estreito caminho, por causa dos inimigos do Congo. Há muitas e algumas são grandes, de duzentas e mais cabanas. Estes Senhores titulares são o mesmo que em Angola, os Dembos. Estes têm sob a sua protecção outros povoados menos numerosos, que chamam Libatas, porque são governadas por um Senhor Infante não titulado, que tem pouca gente, e estas Libatas terão cerca de quarenta a cinquenta cabanas mais ou menos, e estas correspondem aos Sobas de Angola.

 

(2). A palavra Anamungoa neste sentido quer dizer sal benzido, ou sal do Senhor, porque na língua deles mungoa é sal, e quando pedem anamungoa querem pedir o baptismo, e julgam que para ser baptizados, basta o sal, e se o padre não está com atenção quando os baptiza, assim que lhes põe o sal, fogem e não esperam que o Padre acabe de os baptizar.

 

Estão eles persuadidos que Sua Majestade Fidelíssima lhes manda os Missionários e eles os pedem apenas para baptizar, e sepultar os seus mortos na Cidade de S. Salvador, Capital do Reino [3] e para se apresentarem eles mesmos ao Missionário, como quem se vai confessar, sem saber o que estão a fazer. Depois de baptizados, fazem muita festa e alegria, e desaparecem sem voltar à presença do Padre.

Do Sacramento do Crisma, já não se recordam porque passou muito tempo sem o verem administrar, e não sabem nada da doutrina cristã, nem a querem aprender.

Do Sacramento da Eucaristia, resta-lhes ainda alguma ideia, porque sabem e crêem que na Hóstia Consagrada está Amoana Zambi ambungo – o Filho de Deus Jesus Cristo; mas ninguém pede para comungar e não se dispõem a receber este Sacramento. Só os grandes Senhores pedem muitas vezes a Comunhão, e querem-na por força, sem que antes se confessem ou preparem, e não querem deixar as concubinas. A razão, por que o fazem, creio que seja esta. Ouvem contar aos velhos, que quando passavam os Missionários e diziam a Missa, davam a alguns a Comunhão (certamente àqueles que julgavam capazes, depois de os terem confessado). Agora recordam-se que, quando os Missionários diziam a Missa, davam a Comunhão aos Senhores, aos que eram casados, e aos mais velhos, mas não se recordam que estes sabiam a doutrina, e se confessavam, e agora, quando o Padre diz a Missa, estes mesmos querem comungar sem se confessarem, nem fazer o que o Padre lhes diz; se o Padre lhes nega a Comunhão, consideram-se ofendidos, de modo que, para se vingarem, não têm dificuldade nem escrúpulo de dar ao Padre sortilégio [4] ou feitiço; nestes casos, é preciso que o Padre seja muito prudente e use de cautela e estratagemas para se libertar em semelhantes ocasiões.

 

(3) Devendo falar-se muitas vezes da Cidade de S. Salvador, capital do Reino do Congo, não pense V. Ex.ª que esta seja uma Cidade como as da Europa: não duvido que antigamente fosse algo de bom, pelas ruínas que se mantêm. Porque se vêem ainda as paredes da Igreja Catedral, que era muito grande e bem feita. Vêem-se os restos do Palácio do Rei, da Rainha, do Príncipe, todos de pedra quadrada e muito grandes. Vêem-se alguns restos da casa e da Igreja dos Jesuítas, do nosso Hospício e das outras nove Igrejas, todas de boas pedras e cal, e tudo foi construído pelos Senhores Portugueses: mas presentemente é um bosque de arbustos e de mato. O Palácio actual do Rei é uma cabana de palha, como a dos outros pretos. As cabanas todas que se contavam no meu tempo não eram mais de vinte e duas, e toda a gente que habitava na Cidade não chegava a cem pessoas; isto é o que compõe toda a Cidade de S. Salvador, Capital do Reino do Congo.

 

(4) Sortilégio ou feitiço, não é senão um veneno, e os feiticeiros são quem conhece as ervas, raízes, e animais venenosos, e os preparam, e estas coisas, conforme a maior ou menor quantidade, ou matam ou causam doenças. Por esta razão, me deram feitiço três vezes e fiquei muitos meses doente, tremia-me o corpo todo e a minha carne ficou verde; o que me ajudou nestas doenças foram os vomitórios e os purgantes que tinha comigo, e uma vez em que estive quatro dias sem falar, quem me medicou foi uma senhora velha.

 

Do Sacramento da Penitência têm ainda a noção de que este Sacramento perdoa os pecados cometidos depois do Baptismo, e vêm em multidão para se confessar, mas basta-lhes somente ajoelhar-se diante do Padre, responder alguma coisa ao intérprete que os interroga para depois dizer a resposta ao Padre, mas não sabem nada da doutrina, e se o Padre através do intérprete os quer ensinar, ou não respondem, ou fogem, porque lhes basta terem-se apresentado ao Missionário, e ter falado com o intérprete, e receber do Padre a bênção. Recebida esta, põem-se de pé e todos os seus parentes e amigos o abraçam e o atiram ao ar, saltando de alegria por se terem confessado.

Do Sacramento da Extrema Unção têm agora uma ideia muito negativa; quando estão doentes, não querem que o Padre os visite, e não querem confessar-se e não querem de modo nenhum os Santos Óleos. Eu considerei sempre que faziam isto porque geralmente quando se administram os Santos Óleos a um doente, ele morre, e eles estão persuadidos que sejam os Santos Óleos a fazê-los morrer, e o pior é que não se consegue eliminar este preconceito, porque não querem ser instruídos e aprender a doutrina. Em três anos, apenas administrei este Sacramento a uma rapariga escrava, que foi também a única que confessei, porque lhe tinha mandado ensinar a doutrina, e ficando doente, fui visitá-la, e me pediu para se confessar e, depois de confessada, dei-lhe os Santos Óleos, e ela morreu.

Do Sacramento do Matrimónio têm uma ideia melhor, pois sabem muito bem que, quando são casados com uma mulher, não se podem casar com outras. Sabem que é um Sacramento da nova lei, instituída por Jesus Cristo; mas isto também o sabem superficialmente. São estimados pelo povo, e são respeitados, e com tudo isto, poucos são os que se encontram, que queiram casar-se. Eu não fiz senão dez ou doze casamentos de escravos da igreja, porque lhes paguei o dote, casei só quatro nobres e o Príncipe e penso que os meus antecessores também casaram poucos, pois eu baptizei mais de vinte e cinco mil almas, e os filhos nascidos de matrimónio foram apenas quarenta e dois. As razões por que não querem casar-se, e que pude descobrir, são as seguintes:

1.º Porque um homem, que tem apenas uma mulher é sempre pobre, não tem que comer e não é estimado, porque entre eles existe o costume de que só as mulheres trabalham, e têm de dar de comer aos homens; ora como pode uma mulher trabalhar tanto que dê para comer o marido, ela e os filhos? Mas se um homem se casa com dez, vinte e trinta, ou mais mulheres (eu conheci alguns que tinham até oitenta), então este fica rico e grande senhor, porque estas mulheres dividem o ano entre elas, e cada uma dá de comer ao marido no tempo que lhe cabe, e o marido é obrigado naquele tempo a dormir com a mulher que lhe dá de comer, por isso todas procuram tratar bem o seu marido e este vive bem.

2.º Casando-se por matrimónio, o pai deve dar o dote à filha e casando-se segundo o costume deles, é o marido que tem de dar o dote ao pai da rapariga.

3.º Porque, casando-se por matrimónio a esposa, seja boa ou seja má, o marido tem de ter paciência, e mantê-la, e não a pode restituir ao Pai, e eles querem ser livres, porque, segundo o costume, se a mulher for má, e não quiser trabalhar e tratar do marido, e dos filhos, o homem entrega-a ao pai e pede a restituição do dote.

4.º Porque, como os sobrinhos são os herdeiros dos tios [5], recebem também por herança as mulheres de seu tio, a quem devem tratar como suas, e dormir com elas nos tempos que lhes cabe, e o Matrimónio proíbe-lhes isso; se o sobrinho não quer juntar-se com as mulheres do seu tio, estas são livres de poder escolher um outro sobrinho e parente e então este é o herdeiro.

Estas são as razões, que eu pude averiguar, por que não querem casar-se; mas eu duvido que tenham outras razões e superstições, que não vieram ao meu conhecimento, mas seja como se quiser, o que é certo é que, sejam ou não casados, sempre têm muitas mulheres, e se me é permitido sobre este ponto dar o meu parecer, digo que sempre tiveram este costume, e que não é possível fazer-lho mudar, porque não se encontra somente no Congo e nas províncias por onde passei, mas está generalizado a todos os pretos. Que estes pretos do Congo e Angola vivam com uma só mulher, parece-me não ser possível convencê-los; os próprios escravos, que são os mais pobres, não se contentam com uma e têm três, quatro e mais ainda. Posso dar ainda outra razão e é que ali se vendem mais homens que mulheres, e as mulheres, quando chegam à puberdade, são como os animais, não se querem conter e não querem esperar, vão logo procurar algum que as queira; até as próprias mães, para receber dote, logo que sabem que se vai aproximando a altura, vão-lhes procurando um homem de qualquer maneira e muitas vezes nem esperam que o tempo chegue.

 

 

(5) Os Sobrinhos, que são os herdeiros, não são os filhos dos irmãos, mas sim os das irmãs, exempli gratia: Pedro, Paulo e Antónia são irmãos; ora os herdeiros de Pedro e Paulo são os filhos de Antónia, e os filhos de Pedro e Paulo são herdeiros dos irmãos das mães deles; mas é preciso notar que, se Antónia não tiver filhos, então os filhos de Pedro e de Paulo são herdeiros de seus Pais, como na Europa. Estes sobrinhos são obrigados a pagar as dívidas dos tios e as suas dívidas e mucanos, e ficam empenhados e são mesmo vendidos se não tiverem com que pagar.

 

 

Não querem ouvir falar do preceito de santificar os dias de festa porque para eles todos os dias são iguais; nunca se vêem na Igreja para assistir à Missa, resta apenas o costume na Cidade de S. Salvador de cantar as Ladainhas de Nossa Senhora, porque estão vivos ainda alguns Mestres antigos, e uma mulher de idade que lhes paga, e se o Padre Missionário vai à igreja para dizer a missa, recitar os actos de fé, esperança e caridade, e ensinar a doutrina através dos seus intérpretes, não vem ninguém, e não lhes importa que o Padre os chame e os repreenda; e este mau costume não se encontra somente nos povos do Congo, mas é comum a todos os pretos desta Conquista e também aos outros.

No Congo há uma Ordem Militar dos Cavaleiros de Cristo, que lhes foi concedida pelo Rei de Portugal. O Rei do Congo não pode criar um Cavaleiro, nem este tomar a Cruz, sem que um Padre lha ponha; estes Cavaleiros não têm Comendas, e consiste apenas em serem considerados Nobres e terem o privilégio de poder pôr muitas cruzes feitas de retalhos de pano de diversas cores no capote ou no pano de palha com que geralmente se cobrem, mas eles ampliam este privilégio e põem destas cruzes no chapéu de sol, nas portas das casas, e o Rei põe-nas também na cadeira em que se senta, e senta-se por cima delas sem vergonha; as mulheres destes Cavaleiros fazem o mesmo que os homens, pondo muitas cruzes nos seus panos.

Resta-lhes ainda um outro vestígio de Religião que é sepultar os mortos nobres nas igrejas de S. Salvador (isto é, naqueles lugares onde antigamente estiveram as igrejas), mesmo que estejam longe, e que tenham de caminhar muitos dias. E não os levam senão quando lá está um Padre, e não têm inimigos pelo caminho; ou quando pelo menos podem juntar bastante gente armada para se defenderem, e por isso é que muitas vezes se sepultam defuntos, que já tinham morrido há oito, dez e mais anos. Quando morre um nobre, põem-no logo num compartimento, fazem-lhe muito fogo em volta e todos os dias de manhã e à tarde, o enfaixam com um pano, e o espremem pouco a pouco para fazer sair todas as humidades que tem, e em poucos dias fica seco, apenas com pele e ossos; então, põem-no numa caixa num canto da casa e cobrem-no de pedras; e conservam-no ali, até que o possam levar para ser sepultado na Cidade de S. Salvador.

Quando chegam com o morto ao Congo, levam-no para uma praça muito grande que fica diante da Catedral; fazem ali muita festa entre os parentes e a gente que o vieram acompanhar; saltam, dançam, cantam canções segundo o seu costume, bebem naquele dia muito vinho de palma ou garapa [6], e quando estão esgotados de cansaço, vão chamar o Padre para lhe fazer as exéquias, e acompanhá-lo ao lugar onde o querem sepultar e assim embriagados voltam para suas casas. Muitas vezes quando o morto está no buraco, antes de deitar terra, deitam-lhe por cima do corpo vinho de palma; mas nunca soube a razão, se o faziam por superstição ou se o faziam para embriagar o morto depois de estarem eles embriagados, e nestas ocasiões acaba sempre por haver alguma desordem.

Eis aqui exposto a V. Ex.ª o que é presentemente a Religião no Congo; mas o pior é que me parece tão difícil pô-los de novo no bom caminho, e fazê-los abandonar os seus preconceitos, que sem um milagre extraordinário da Omnipotência de Deus, não se pode conseguir. Estão eles tão persuadidos e convictos das suas ideias e tão apegados aos seus costumes, que é impossível removê-los. Quando se lhes explica e se lhes inculca a verdadeira ideia dos santos mistérios e dos preceitos de Deus e da Igreja não fazem caso, e muitas vezes respondem não serem esses os costumes e as leis do Congo, e que, por o Padre ser novo, não está bem instruído nas suas leis. Além disso, os próprios intérpretes de que é necessário servir-se, não se atrevem a repetir aquilo que o Padre diz contra os seus costumes, sendo mucano [7] para os intérpretes contradizer o que é feito universalmente por todos, porque dizem que o intérprete não deve dizer ao Padre o que fazem, e se o fazem, são castigados, ou envenenados, no tempo em que estão com o [papel queimado], assim que falta o Padre, fazem-lhe pagar o mucano.  Porque cabe, dizem eles, aos Mestres e aos escravos idosos instruir bem o Missionário, e com minha grande aflição me foi dito muitas vezes que eu não estava bem instruído, quando os repreendia por estes preconceitos, e pela péssima vida que levavam.

 

(6) GARAPA, é uma espécie de cerveja, feita de milho e de mandioca seca; põem tudo a amolecer na água por alguns dias, e depois pisam tudo no almofariz, e fazem-no ferver no fogo; deixam-no depois repousar três ou quatro dias, e bebem aquela água, que embriaga tanto como o vinho.

 

(7) MUCANO é o mesmo que em Luanda quituxi; mas no Congo esta palavra mucano tem muitos significados, porque não só quer dizer delito, mas também disputa, e as iniciativas que tomam os advogados quando defendem as disputas para os seus litigantes: tudo isto exprimem com a palavra mucano

 

Quantas vezes, ó meu Deus! eu teria feito em tais ocasiões como fez o Rev. Padre José de Torres, Religioso Agostiniano descalço, um dos meus antecessores, que, sabendo pelos seus grandes talentos que não poderia obter fruto algum, por causa da obstinação desta gente, não quis baptizar; mas eu não o podia fazer, porque ele tinha consigo companheiros, que lhe davam de comer, e eu era sozinho e não tinha quem me desse alguma coisa se não baptizasse. Sem baptizar, não era possível reunir gente para mandar buscar algumas coisas a Luanda, tendo-me sido roubado tudo o que tinha para a viagem, e tive de estar mais de um ano sem dizer Missa, porque me faltavam o vinho, as hóstias e as velas, e por isso, a fome, e a pena que tinha de tantas crianças que poderiam morrer sem o baptismo, que é o único fruto que um Missionário pode obter, fizeram com que me decidisse a baptizar.

Se a gente do Congo, Ex.mo Senhor, pede Missionários, não é propriamente porque desejem e queiram ser Católicos, mas pedem-nos apenas por um vil interesse. Porque, tendo um Missionário, sepultam-se os mortos, fazem-se Ofícios, armam-se Cavaleiros; e por estas funções eclesiásticas, ganha o Rei, os Conselheiros de Estado, o Príncipe, ou seja Rei de fora, os Mestres, porque estes querem ser pagos.

Quando o Padre vai em missão, tudo o que ganha, tem de o repartir com estes tais, e acontece muitas vezes que a parte menor é a que fica para o Padre, quando não lhe roubam tudo. Estando lá um Padre, sempre se lhe envia de Luanda alguma coisa para a sua alimentação; se isso chega às mãos do Missionário, (é preciso muita cautela, para que lhe chegue, sendo em geral pouco fiéis os portadores, e muito ladrões aqueles que estão naquela muito longa viagem); chegados que são à presença do Padre, correm todos para os seus pés, sentam-se em volta das cargas, e não vão embora dali, enquanto o Padre, ou por amor, ou pela força, não lhes dê alguma coisa.

Estas ridículas utilidades são o motivo por que pedem Missionários, e por que não os deixam partir quando lá estão. E, se estão doentes, ou não podem já trabalhar, estando esgotados, e querem regressar para Luanda, não podem fazê-lo sem antes os cativarem com presentes, algum Senhor poderoso que o ajude e o acompanhe, ou então, que o Ex.mo Senhor Governador de Luanda o mande resgatar com muitos presentes, e esta é a razão por que muitos ali morrem abandonados. 

O Missionário não pode andar em missão se não no tempo em que não chove, que é nos meses de Junho, Julho, Agosto e Setembro, o Missionário pouco pode demorar-se em cada povoação, porque os pretos juntam-se por dois ou três dias para baptizar os seus filhos, e depois deixam de ver-se, e acontece sempre que o Missionário não tornará a rever os mesmos povos, senão depois de muitos anos, sendo tão extenso aquele Reino. Poderia ser que, tendo muitos Missionários permanentes destinados para aqueles lugares, como foi noutros tempos, se pudesse conseguir restabelecer naquele Reino a Religião Cristã, porque então os meninos nascidos há pouco, instruídos pelo Padre, todos os dias continuadamente, talvez se fizessem bons cristãos; mas isso é quase impraticável. Porque faltam Missionários para acudir à Conquista de Sua Majestade Fidelíssima, como se encontrarão para o Congo que é um Reino estranho, tão longe de nós, e sendo o percurso muitas vezes impedido pelos inimigos e ladrões? Além disso, os de Bamba, que estão no meio do percurso, manifestaram muitas vezes a intenção de não querer deixar passar os Missionários para o Congo, se antes se lhes não mandam Missionários, como de facto fizeram na última expedição, em que, chegados a Bamba, os retiveram ali por muitos meses, sem os deixar continuar viagem, e por causa disso adoeceram, e regressaram a Luanda, dois dos quais morreram , e outros dois embarcaram para Lisboa doentes.

 

§ 2.º Eleição do Rei

 

O Rei do Congo é electivo. Quando morre o Rei, os Conselheiros de Estado com o Marquês Manivunda tomam o comando do Reino (comando imaginário). Os Conselheiros são seis, e estes são nobres congoleses, só o Marquês Manivunda é Infante com título, e este permanece à frente dos outros [8]. Assim que morre o Rei, os Conselheiros mandam chamar o Padre (o Padre não pode ver o Rei quando está doente) para que lhe vá cantar um responsório. O Padre é então considerado como primeiro Conselheiro de Estado, e a ele pedem licença para anunciar a morte do Rei aos Príncipes, Infantes, Marqueses, etc. (que na verdade são muitos no Congo), mas o Padre não assiste à eleição nem vota, apenas lhes faz um discurso sobre a eleição e lhes expõe as qualidades que deve ter um Rei. Recebida a licença do Padre, mandam avisá-los e convidam-nos a vir e assistir às suas exéquias, e ao seu funeral, que se faz sempre no segundo sábado depois da morte, e para fazer a eleição de um novo Rei. Sepultado o Rei, reúnem-se numa casa os Conselheiros e o Marquês Manivunda, e ali ficam à espera dos presentes daqueles que aspiram a ser eleitos. Mas a eleição recai quase sempre no Príncipe, porque ali se encontra à morte do Rei, e se não o querem eleger por amor, faz-se eleger por força, como aconteceu com o presente Rei.

 

(8) Para dar uma ideia destes Infantes, Duques, Marqueses, etc. é preciso saber que o Rei D. Afonso primeiro teve três filhos, dois varões e uma mulher; destes três filhos se fizeram as três famílias que agora são consideradas no Congo. Todos os descendentes destes três filhos são chamados Infantes, ainda que a mãe seja escrava, como é o caso do presente Rei. Por isso acontece que no Congo são inumeráveis os Infantes, e não se distinguem dos outros pretos. Estes são bem diferentes daqueles que na Europa se chamam Infantes de Espanha e de Portugal. Os do Congo andam nus, e não têm nada. Ora a estes tais é que o Rei dá o título de Duque, Príncipe, Marquês, etc.; os nobres são pois aqueles que não descendem destas três famílias e que são livres, e possuem alguma coisa.

 

Assim que é eleito, vão buscá-lo e conduzem-no para uma praça onde se prepara uma cadeira, fazem-no sentar, ajoelham-se, pegam num pouco de terra, e esfregam o próprio rosto, batem as mãos, e gritam “Este é o nosso Rei”; e o povo que ali se encontra grita “viva o Rei”, e assim se conclui a eleição do Rei; acontece porém muitas vezes que, depois de ser eleito o Rei, chegam mais alguns pretendentes e encontram já eleito o Rei; não ficam satisfeitos e protestam no meio de uma praça, em que está uma grande pedra, na qual estão esculpidas as armas do Rei D. Afonso primeiro, dizendo que não o querem reconhecer como Rei e declaram-lhe guerra.

Em seguida, a estes se unem outros que fomentam o mesmo partido, e se o Rei eleito quer permanecer no trono, tem de pagar a estes alguma coisa e geralmente tiram-lhe tudo quanto tem, os melhores escravos, e ficam ainda assim livres de lhe dar o presente habitual, e fica o novo Rei sem nada, e muitas vezes sem ter que comer (como acontece ao presente Rei). O Rei eleito não pode exercer nenhuma função enquanto não for coroado por um Padre, não pode construir o seu palácio de palha, nem morar no lugar próprio do Rei, pois durante esse tempo é apenas chefe dos Conselheiros. O Rei deve ser sempre escolhido entre os descendentes de uma das três famílias de D. Afonso.

 

§ 3.º Seu poder e autoridade.

 

O Rei do Congo não tem força porque não tem soldados, nem armas, nem pólvora, nem balas. Tem poder quando elegem um que tem muita gente, e escravos na sua banza, e a eleição se faz com unânime consentimento, porque nesse caso não lhe roubam nada; logo que o Rei é eleito, deixa na sua habitação um seu sobrinho que depois há-de ser seu herdeiro, e leva consigo para S. Salvador uma parte da sua gente para o defenderem, e o Sobrinho que fica na banza tem de lhe pagar um tanto por ano. O presente Rei, Henrique 1.º não tinha senão vinte ou vinte e cinco espingardas e os seus sobrinhos eram muito pobres. A sua autoridade existe somente na sua cabeça, e na dos seus Conselheiros. Na verdade, ouvindo-os falar, parece que não há outro Rei no mundo senão o Rei do Congo, mas na realidade apenas tem autoridade sobre as suas mulheres e os seus escravos. Ele pode publicar todas as suas ordens numa praça chamada pengala, onde não há ninguém e todas as suas ordens são levadas pelo vento.

Todos os Infantes, Príncipes, Marqueses, etc., têm as suas populações, e cada um manda nas suas banzas. O Rei apenas lhes dá o título, mas se os chama ou lhes ordena alguma coisa, não fazem caso, e não lhe obedecem, porque em geral são mais fortes que o Rei e não o temem. O presente Rei era o mais pobre de todos, mas, porque quis ser feito Rei à força, e sem esperar pelos outros Senhores, teve de dar tudo para que o deixassem sentar-se no trono, e nada lhe restou, de maneira que foi necessário que eu lhe mandasse alguma galinha com um pouco de mandioca, para ele jantar. Basta saber isto, para se poder imaginar o resto. O Rei não pode sair fora de sua casa sem o consentimento dos seus Conselheiros, mesmo que queira ir assistir à Santa Missa.

Há também no Congo um Príncipe, que é escolhido pelo Rei e tem de ser um Infante titulado de uma das três famílias de D. Afonso. Este Príncipe quando está na corte de S. Salvador chama-se Rei de fora, porque então o Rei não manda senão na sua família, dentro de casa, quando não se trate de um negócio de Estado, e relevante, como guerras, etc. Quando o Príncipe não está em S. Salvador, é Rei de fora o Mordomo Mor, a que chamam Nelumbo. A autoridade deste Príncipe é maior ou menor conforme a mais ou menos gente que tem para se fazer obedecer, e muitas vezes tem mesmo o Rei de obedecer a este Príncipe.

E há ainda o Marquês Manivunda, que tem o título de Antepassado do Rei, e este tem mais autoridade que o próprio Rei na administração da justiça. Este não pode encontrar-se com o Rei já coroado, porque então o Rei deveria pedir a bênção a este Marquês; cabe-lhe fazer a Coroação e assiste até que o Rei seja colocado no trono e preste juramento, retirando-se depois. Quando morre o Rei, ele fica Regente, e não pode ser eleito Rei. Este Marquês tem maior ou menor autoridade conforme a gente que o segue.

 

§ 4.º Receitas do Rei

 

O Rei do Congo não pode impor tributos aos seus vassalos. Antigamente pagavam-lhe tributo o Duque de Bamba, o Príncipe de Soio, o Duque de Sundi, o Duque de Quina, o Marquês de Mussulo, e outros Senhores, mas depois que se revoltaram já nada lhe pagam. Toda a receita que tem agora é quando lá tem um Missionário; porque se concede a cruz de Cavaleiros de Cristo a algum nobre, este tem de lhe pagar ou um porco, ou uma cabra, ou galinhas, ou zimbo, que é o seu dinheiro.

Quando levam os mortos para serem sepultados, têm de pagar um tanto de sepultura ao Rei. Quando se dá algum título de Infantes, estes têm de lhe pagar alguma coisa; esta é toda a receita que tem. Se não há ali um Padre, nada tem. O que tem de certo são as suas mulheres, os seus sobrinhos e os escravos que lhe dão de comer. O presente Rei D. Henrique 1.º é tão pobre que anda quase nu, coberto apenas por um pano que foi uma toalha do altar maior da Catedral, que ele roubou quando morreu o Rev. Padre Doutor André, e um pedaço de paramento encarnado que trazia aos ombros; quando se coroou, trazia uma outra toalha branca e vermelha de damasco, atado com uma estola e tudo isso tinha roubado da Igreja.

No final do meu terceiro ano de estadia no Congo, estando eu muito doente, Sua Ex.ª o Senhor Governador de Angola, e Capitão Mor de Sua Majestade Fidelíssima, mandou-lhe um magnífico presente para o induzir a deixar-me partir. Deste presente, apenas pôde conservar um capote, um chapéu de sol, e a tipóia ou rede, e tudo o resto lhe foi levado pelos seus credores e parentes. Ganha o Rei ainda alguma coisa nas demandas, como veremos no parágrafo seguinte.

 

§ 5.º Leis e Administração da Justiça

 

1.º Uma das leis fundamentais do Reino do Congo é que o Rei não é sucessivo mas electivo, que as mulheres não podem reinar, e os filhos do Rei não podem reinar por sucessão ao pai, mas podem reinar noutras ocasiões.

2.º A eleição do Rei cabe ao Marquês Manivunda e aos Conselheiros de Estado.

3.º O Marquês Manivunda tem de lhe dar posse e assistir à Coroação, até que o Rei preste juramento e seja colocado no trono e tem de se retirar logo a seguir, não podendo voltar a encontrar-se com o Rei, e quando é necessário decidir algum negócio de Estado, a que deve assistir este Marquês, então ele deve estar escondido atrás de uma parede de palha (já se sabe) e quando ele fala, está tudo terminado, o Rei não pode responder, e todos batem as mãos. Assim aconteceu quando se tratou da questão do meu resgate. O Rei com todos os outros não queria dar-me licença para partir, só o Príncipe estava do meu lado, porque eu lhe tinha dado muitos presentes; então mandei uma porção de aguardente e outras coisas ao Marquês Manivunda, para que se não me opusesse, e falasse a meu favor e assim foi.

Quando se ouviu a voz do Marquês que, saindo de um buraco daquela parede de palha, dizia que eu não era escravo, e que estando doente podia partir quando quisesse, e que era uma vergonha para a nação Congolesa dizer que um Sacerdote era escravo, sem poder voltar a Luanda quando queria, então acalmaram-se e o Rei concedeu-me a licença.

4.º O Rei eleito não pode fazer a sua casa de palha no lugar destinado aos Reis, se não foi coroado por um Sacerdote, e durante esse tempo está numa cabana debaixo de uma árvore chamada imbondeiro.

5.º O Rei não pode sair de casa senão em duas ocasiões, isto é, quando há um Padre e quer ir assistir à Missa; então deve avisar os seus Conselheiros, e estes têm de o acompanhar; mas se o Príncipe quer assistir à Missa, então não a pode ouvir o Rei, e logo que acaba a Missa, tem de voltar para casa.

6.º Pode sair para ir para a guerra, mas antes tem de obter licença do Marquês Manivunda e do Príncipe. Quando o Rei vai para a guerra com licença destes dois, os Senhores são todos obrigados a segui-lo com a sua gente; mas se a guerra é com os seus vassalos e não tem licença, nesse caso apenas se deslocam os amigos; é permitido ao Rei fugir na guerra quando perde e não se pode defender do inimigo, e é isto que acontece quase sempre.

Cada Senhor de Banza ou Libata tem um macota, isto é um velho chamado Manimpemba ou advogado, e quando surge alguma divergência entre o seu povo, este advogado examina a causa e, ouvidas as partes, decide.

Quando sucede haver uma demanda entre dois Senhores, então escolhem um Senhor dos mais potentes para juiz, e na sua presença, e do seu advogado, os advogados dos litigantes defendem a lide do seguinte modo: o Senhor que chamou o outro na presença deste terceiro, que é o juiz, deve ser o primeiro a dizer as suas razões, e apresentar as provas; mas antes de falar, tem de depositar aos pés do juiz e do seu advogado uma quantia em dinheiro (que eu não sei quanto é), ou um porco, ou uma cabra, e depois falar. Quando este acabou de falar, o juiz diz ao outro que venha tal dia para responder, e o juiz com o seu advogado e os velhos comem aquilo que o outro pagou.

Quando depois vem o segundo responder, deve fazer o mesmo, porque os juízes do Congo não querem ouvir as razões se antes não vêem o dinheiro. Aqui certamente os juízes roubam muito, porque antes de dar a sentença fazem-nos voltar muitas vezes a dizer a suas razões.

Dada finalmente a sentença, se não ficam satisfeitos podem recorrer para um dos seis grandes do Reino, deste para o Príncipe, do Príncipe para o Rei, do Rei para o Marquês Manivunda, e então já não podem recorrer, e este último tem toda a autoridade para anular até a sentença do Rei.

No Reino do Congo não há pena de morte, senão para os feiticeiros; todos os outros delitos são condenados em dinheiro e pagam com zimbo, panos, porcos, cabras, etc. Quando os juízes não podem ter depoimentos de testemunhas, usam o juramento chamado de incassa ou seja madeira amarga. A casca desta madeira geralmente faz vomitar, e nós damo-la aos pretos como vomitório. Eles têm um preto chamado Mestre de incassa, cuja função é raspar aquela casca numa pedra e prepará-la em pílulas; este preto dá tais pílulas a um dos contendores; se vomita é inocente, se não vomita é culpado, e o mesmo fazem com os feiticeiros. Se vomitam ficam livres, se não, matam-no à facada, quando não tiverem quem os resgate, e se esses tais são escravos, tem o Senhor deles liberdade de os matar ou de lhes salvar a vida, pagando o mucano.

 

§ 6.º Os seus costumes

 

A terra do vasto Reino do Congo é muito fértil e boa, mas não é cultivada. A razão principal por que não é cultivada é a seguinte: Porque têm aqueles povos o costume de atribuir todas as doenças e a morte das pessoas aos feiticeiros, e este é um costume e um preconceito comum a todos os pretos, e a todos os povos da Conquista de Angola, e também na Cidade de Luanda; deste preconceito resulta que, se uma família cultiva e semeia muitos amendoins, feijões, milho, mandioca e banana, com tudo o que semeiam, alimentam-se muitos porcos, cabras, galinhas, que é todo o gado que têm, aparecem logo os invejosos, que não querem trabalhar, e vendo que aquele tal trabalhou muito, esperam uma ocasião de o fazerem passar por feiticeiro, porque se naquela altura acontece que adoeça ou morra alguém, a ele atribuem a causa da doença e da morte. Então fazem com que seja chamado diante do Senhor da Banza, e obrigam-no a fazer o juramento da incassa.

Para ver mais claramente quão grandes sejam nestes casos os roubos e os homicídios, é preciso saber que se aquele, que foi acusado de feiticeiro, ou de ter feito feitiço, é acusado por meio deste juramento de ter sido ele que fez adoecer ou morrer, logo lhe roubam tudo quanto tem e dividem entre eles, isto é, entre os parentes daquele que adoeceu e morreu, como eles dizem, do feitiço, e também com o Senhor da Banza e com o Mestre que preparou o juramento. Ora é sabido que estes tais para roubar o pobre homem, preparam-lhe a casca da árvore, de modo a que não a possa vomitar, e não a vomitando, matam-no e roubam-lhe tudo quanto tem.

Se o que morreu, como eles dizem, do feitiço for Infante ou nobre, prendem-lhe ainda toda a sua família, e ficam todos escravos, e esta é a causa principal, como dizia, por que passam fome, andam nus e são tão pobres. Acho que outra razão por que não cultivam aqueles grandes terrenos é porque só as mulheres trabalham na terra. Os homens não têm outra obrigação que não seja fazer as casas, e andam todo o dia sem nada fazer, e a ver trabalhar as mulheres. Porque se os homens trabalhassem poderiam ter comida quanta quisessem. Poderiam alimentar muitos animais de toda a espécie, porque têm pastos excelentes, não lhes falta água, porque lá existem muitos rios e lagos, o que não podem fazer todos os povos de Angola, especialmente os que habitam perto de Luanda, porque lhes faltam os pastos e a água, e se passa um ano ou dois sem chover, como muitas vezes acontece, o gado morre e a terra não produz, mas pelas razões ditas acima, deixam de trabalhar e contentam-se em andar nus, e passar fome. Poderiam também ter com que se vestir sabendo fazer o pano de palha, e esta não lhes falta, mas são tão preguiçosos e poltrões, que não se importam de andar nus, para não terem de trabalhar.

As casas não são senão alguns paus e canas atados, e cobertos de palha, e quando se mudam de um lado para o outro, levam consigo também as casas; o seu alimento é muito simples e parco, e não consiste em mais que um pouco de mandioca, da qual comem também as folhas, feijões, milho, banana, um pouco de carne de porco, cabra e alguma galinha; para tempero, servem-se de um pouco de amendoim pisado, com um pouco de peixe que por ali há, e um pouco de sal; mas o sal não é para os pobres, porque é muito caro e é preciso que o venham comprar em Luanda, ou no Mussulo, ou no Museto, que é na foz do Rio Ambriz. No Congo não têm peixe senão nos grandes rios, mas não o sabem pescar e nos lagos não há peixe. No Rio Ambriz há muitos cavalos-marinhos, mas não são capazes de os matar. A gente de Bamba algumas vezes matam-nos com a espingarda; junto deste rio há elefantes, mas não muitos; algumas vezes, encontram-se leões e tigres, mas são raros; de caça, não vi senão gazelas e veados, mas não os sabem matar, nem têm pólvora nem balas; nas alturas em que pegam fogo aos campos, aparecem alguns coelhos; mas a sua maior caça são os ratos do campo e os gafanhotos, que comem em grande quantidade.

O comércio desta gente entre eles não é mais do que uma troca de coisas. No Congo têm em certas alturas as feiras e mercados onde vêm os pretos de Chibango, de Bamba e de Sundi e estes compram os escravos que vão vender em vários portos de mar. Os de Bamba fazem o seu negócio com os Ingleses no porto do Rio Loge, no marquesado do Mussulo, e vendem os escravos por espingardas, louças, pólvora e panos. Dos de Chibango, alguns vendem os escravos em Ambuela e outros sítios da Conquista de Portugal, mas para receber só aguardente, enxadas e alguns bons tecidos, mas a maior parte e os melhores escravos vendem-nos aos Ingleses e para Luanda levam apenas os que os Ingleses não querem, como sejam os homens de idade, as mulheres que já deram à luz por diversas vezes e os meninos pequenos, e o mesmo fazem os de Bamba, para receber dos Senhores Portugueses o zimbo, que é o dinheiro deles. Os de Sundi e do lado do Rio Zaire vão vender os escravos aos mobiri, que são gentios que vivem junto a este rio, entre o Soio e Loango, e estes fazem o seu comércio nos portos de Cabinda, Soio e outros portos, com os Ingleses, Franceses e Holandeses, e vendem-nos por tecidos, pólvora, ídolos de barro e de bronze, enxadas, ferro, etc.; este é todo o comércio que pude saber que fazem.

Esta gente tem um costume particular para que os Senhores paguem as dívidas aos pobres. Quando acontece que, ou por morte de algum Senhor, ou para mudar algum povo de um lugar para outro, ou por qualquer outro contrato, um Senhor poderoso fique devedor a algum pobre, se o pobre pede ao Senhor o que lhe é devido, com certeza este não lhe dá nada; mas eles fazem assim: O pobre vai para a estrada e fica à espera que passe gente de qualquer outro Senhor mais rico e mais poderoso do que aquele, que lhe deve; pega naquela gente, ata-os e leva-os para sua casa. Quando o Senhor dessa gente sabe que lhe foi roubada a sua gente, manda chamar o ladrão e pergunta-lhe porque roubou a sua gente. O pobre responde, porque o tal sujeito lhe é devedor. Então manda chamar o devedor e ouvir as partes; obriga o devedor a pagar a sua dívida e pagar a afronta que ele recebeu de lhe ter sido roubada a sua gente por sua culpa, e se o outro não quer pagar, faz-lhe guerra, e este fica sempre garante de que o outro não se vai vingar no pobre. Estes assaltos feitos nos caminhos são a causa de estarem sempre em guerra um povo com outro. Por isso, os caminhos do Congo são tão perigosos para os passageiros [9].

 

(9) As guerras que os povos do Congo fazem entre si acabam depressa, porque quando vai à guerra com parente titular, leva consigo toda a gente que pode, com as espingardas, e muitas mulheres para carregar os víveres; com estes homens armados de espingardas, terão ao máximo duas ou três cargas de pólvora para cada um; como balas servem-se de pregos, pedrinhas e pedaços de ferro. Quando chegam junto da Banza do inimigo, gritam, e correm como desesperados, e uma parte vai contra o inimigo, outros escondem-se na erva, que ali é muito alta, e no meio dos bosques; os que vão contra o inimigo, logo que se vêem, descarregam as espingardas de um lado e outro, mesmo que seja antes do tempo, e que se encontrem longe uns dos outros para que o tiro possa produzir efeito, e por isso é que quase nunca se matam. A tarefa dos que se encontram escondidos é pegar fogo a alguma casa ou cabana da Banza, porque se dão fogo a uma, ardem todas, sendo de palha; se conseguem o que pretendiam, fazem-se logo senhores da Banza, roubam tudo o que podem levar consigo antes que o fogo consuma tudo, e o resto deixam arder e assim acabam as guerras. Se os que estão escondidos não podem pegar fogo, e se os da Banza se defendem, fogem os outros, e os da Banza vão atrás deles a ver se conseguem apanhar algum. E se não, fazem-lhes por trás muitos cercos, de modo que, seja qual foi o resultado, a guerra acaba sempre em poucas horas.

 

Em todas as Banzas do Congo, e especialmente na Bamba há uma casa em que fazem a circuncisão, mas por mais diligências que eu fizesse para saber porquê, não fui capaz de o averiguar. Certamente eles não sabem nada de Judaísmo; os meus intérpretes diziam-me que não o faziam por religião, nem por superstição; mas porque as mulheres não querem os homens se não são circuncidados e confirmei que assim é quando comecei a entender alguma coisa na língua deles. Têm ainda uma outra casa onde de noite se reúnem certos impostores para enganar o povo ignorante, dizendo que falam a cariambemba com o diabo, e que este os ensina a conhecer as doenças, e os remédios, e os feiticeiros, mas não pude saber com clareza o que ali faziam; eu sempre suspeitei que todos os meninos que nasciam, antes ou depois os levavam a esta casa, e que tivessem alguma superstição; mas não pude saber se era verdade.

Têm ainda uma terceira casa, e esta está escondida nos bosques, onde se reúnem os feiticeiros de noite e ali preparam os venenos, que eles conhecem, para depois os mandar a outros, e preparam também os remédios. Há muitos pretos que fazem de cirurgiões e vão medicando; estes conhecem muitas ervas e raízes, que têm as suas virtudes, e provocam a cura de muitas doenças, mas não querem ensinar estas ervas senão quando são velhos, e então apenas as ensinam a seus filhos. Estes cirurgiões para ser estimados entre o povo tingem a cara com tacula (é uma árvore cujas raízes são vermelhas e de várias cores), dão saltos, dizem palavras incompreensíveis, e fazem-se pagar antes de dar os seus remédios, porque dizem que assim fazem mais efeito.

Têm também o costume de queimar todas as casas do Rei quando morre; entre eles é um grande crime o roubo; mas eu confesso a verdade, que nunca vi tantos ladrões como os que ali há; quem rouba e não reparte os objectos roubados com os outros, se é escravo, vendem-no para pagar as coisas roubadas; se não é escravo, os seus pais têm de pagar o seu custo senão fica escravo e vendem-no, ainda que seja pequeno o roubo; mas se foi roubado em outra terra ou na estrada, e o ladrão reparte o produto do roubo com os outros, especialmente com o Senhor da Banza, então não é acusado e o Senhor defende-o.

Um outro grande delito entre eles é pecar com a mulher de outrem, porque fica logo escravo da mulher e tem que pagar o seu próprio resgate, senão, vendem-no. As mulheres dos Infantes titulados e de todos os outros Senhores têm de ser respeitadas, de maneira que, se alguém olha para elas, ou em casa, ou pelos caminhos, fica logo escravo e é um grande delito; também é delito pecar com as meninas, antes de ter pago o dote.

 Outro delito é pisar com os pés a cruz dos Cavaleiros. Estes ladrões, que não pensam noutra coisa senão em roubar, têm o costume de fazer na terra uma cruz na estrada, especialmente nos portos onde se passam os rios, nas feiras, nos mercados e nas banzas, de modo a que, passando um forasteiro que não sabe onde está a cruz, lhe põe um pé em cima, logo o atam e o vendem se, ele não tem com que pagar o seu próprio custo. Eu incorri neste delito, porque saltando da barca para terra, não sabendo nada da cruz, pus-lhe um pé em cima e vieram logo a pedir que pagasse; mas o barqueiro defendeu-me dizendo que o Padre não paga mucanos, e eles acalmaram-se; mas penso que se acalmaram porque eu tinha muita gente comigo e eles eram poucos, e eu já tinha pegado num bom bastão nas mãos para lhes pagar.

O seu vestir é muito simples, e pobre, porque a plebe apenas se veste com um pano de palha ou outro pano, que compram com escravos, para os homens se cobrirem as partes vergonhosas; os Senhores que podem cobrem todo o corpo com outro pano comprido, que arrastam por terra, ou algum capote, e estes podem trazer ainda um barrete de palha, ou qualquer outra coisa na cabeça ou um chapéu quando o têm; mas os outros não. As mulheres casadas e aquelas que podem vestem como os homens. As pobres e os pobres trazem um palmo de pano pela parte de diante e outro atrás, cozido a uma corda que cingem nos flancos e cobrem também os seios, depois de darem à luz; o resto do corpo fica todo descoberto; as raparigas não trazem senão um palmo de pano pela parte de diante; os rapazes enquanto não são grandes, andam nus. Eles têm o costume de tingir o corpo de cores diversas e untar-se com óleo de palma. Os homens e especialmente os Senhores trazem barba, mas cortam os cabelos. Quando as mulheres dão à luz fazem fora de casa um grande fogo, e juntam-se muitas mulheres e põem a parturiente diante daquele grande fogo, e prestam-lhe assistência duas mulheres e todas as outras estão a bailar e a gritar, cantando canções segundo o seu costume, e dão à luz sem problemas, porque eu nunca ouvi dizer que alguma mulher morresse no parto. Lavam depois as crianças várias vezes ao dia com água fria, e dão-lhe a mama até eles quererem, desde que tenham leite; eu porém não encontrei mulheres que tivessem muitos filhos. Os homens, sim.

No Reino do Congo há muitas palmeiras e amendoins, de que se quisessem poderiam fazer uma grande quantidade de óleo, que poderia ser um produto de comércio considerável; mas são tão amantes do vinho de palma que não as deixam dar os frutos, pois assim que a palmeira deita flor, fazem-lhe um corte com a faca e tiram o vinho, que é branco como o leite e é doce como o mosto; passados dois ou três dias, torna-se vinagre muito forte, e embriaga como o vinho de videira; o amendoim comem-no torrado, e servem-se dele para temperar. Têm ainda muita mandioca de que poderiam fazer muita farinha, mas não sabem ou não têm onde a fazer e comem-na cozida no fogo ou na água, ou crua; outra partem-na em pedaços e deixam-na secar ao sol e depois pisam-na no almofariz, e fazem farinha para cozinhar papas. No Congo não há frutas senão alguns ananases, que crescem pelos bosques, e goiaba; têm também muita banana e grande, que plantam nos vales; encontram-se algumas cebolas, e couves, mas poucas; têm muito tabaco, mas não o tomam em pó, mas só para fumar.

Isto é Ex.mo Senhor o que tive ocasião de observar nos três anos de 1793, 1794 e 1795 da minha estadia no Congo, e com muito gosto meu tenho a honra de apresentar a V. Ex.ª que Deus guarde e conserve por muitos anos.

 

De V. Ex.ª

S. Paulo da Assunção, 30 de Junho de 1798

Fr. Raimundo de Dicomano Miss.º Capuchinho Italiano da Província de Toscana

 

 

Original Italiano: Arquivo Histórico Ultramarino, Diversos, caixa 823, sala 12.