10-10-2003
EDUARDO LOURENÇO
(n. 1923)
22 de Maio de 2003
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS. VENCE
Faz 80 anos amanhã, 23, uma rara figura de homem e escritor de ideias, sempre a pensar o Portugal que durante tanto tempo o condenou ao silêncio. Apesar de prémios, homenagens, estudos, a sua dimensão humana continua desconhecida, bem como parte da sua obra.Aqui se revela um Lourenço duplamente «inédito»
Estive sempre ao lado da minha vida distraidamente longa. Nunca estive atento. Vendo bem, vivi em dois registos. Como se a minha vida real não me dissesse respeito. Sempre a fingir que não estava lá, para não estar onde estava. No fundo, sou pouco sério», reflecte, em voz alta, Eduardo Lourenço, fazendo-me lembrar certo passo de uma das nossas conversas anteriores, de muitas horas.
(«Tenho uma grande memória do simbólico. O meu mundo real é o mundo da poesia e da ficção. Há um diálogo constante com o que leio ou li. Com os livros e as personagens. São a minha família secreta.»)
«O que não aparece no que escrevi – continua agora – é o outro lado da pessoa que sou, que gosta do mundo e da vida, em estado de eterno enamoramento e com uma infinita curiosidade por tudo.»
Desta vez estamos em Vence, na pequena vivenda entre árvores e flores escondida atrás de uma sebe alta de 50 ciprestes que ele próprio plantou:
– Foi a única coisa que verdadeiramente eu fiz em toda a minha vida. O que eu suei! Pensei que morria...
Lourenço e sua mulher compraram a casa em 1974, após nove anos de Nice, ali a 20 quilómetros, em cuja Universidade ambos ensinaram. Desde então vivem nela, agora sozinhos, com os Alpes Marítimos atrás, em fundo distante, separando a França da Itália, e o mar em frente, lá ao longe.
– O Eduardo dizia: eu ainda fico aqui, debaixo do último cipreste que plantar, recorda Annie. A casa fica afastada do centro da velha cidadezinha de apenas uns 12 mil habitantes, na Avenue de Provence, n.º 1130, exactamente a distância em metros da primeira rotunda após a ponte pela qual se chega também, ali perto, à bela Capela dos Dominicanos, toda pintada e decorada por Matisse. Avenida? De facto uma estrada quase estreita, sem passeios, com vivendas espaçadas de ambos os lados e árvores frondosas, sobretudo acácias floridas. E, este anos, com muitos melros a cantar.
O homem que mais e melhor tem pensado Portugal faz esse caminho todos os dias, uma ou duas vezes, a pé ou ao volante do seu pequeno Opel Corsa, de que Annie é mais habitual condutora. Deita- -se tarde, levanta-se cedo, começa, logo de manhã, por ir comprar jornais e revistas.Lê tudo, ainda que sem a voracidade com que lê o que lhe chega de Portugal: VISÃO, Público, JL – Jornal de Letras,Jornal do Fundão, mesmo alguns periódicos locais.
CULTURA
Fora do País desde 1953, nunca saiu dele e aceita todos os convites para fisicamente voltar. Penso nisto, é um dia, 8 de Maio, de intenso céu azul, muito característico da Provença, Eduardo pede a Annie para ver de novo se o correio já chegou. Annie lembra-se que é feriado (Dia do Armísticio), e ele mostra-se desalentado:
– Há 50 anos que esta é a minha hora suprema. Espero o correio como quem sempre espera qualquer coisa que mude a sua vida. Como quem espera o Messias!
É pelo correio que há meio século lhe chega o Portugal de que nunca saiu e afinal fica tão longe daquele silêncio e daquele isolamento vizinhos da solidão.
Os pais, sua presença/ausência, e a infância sempre foram e hoje ainda são mais uma constante no sentimento e na reflexão interior do Poeta-Filósofo que também é. A família, da pequena aldeia de S. Pedro de Rio Seco (Almeida, Guarda), onde Eduardo Lourenço de Faria nasceu, era pouco mais do que pobre. Filha de um «lavrador que teria sido tecelão», a mãe, Maria de Jesus, de uma «profunda religiosidade », sincera e rural, marcou-o com a presença. O pai, Abílio, também o marcou, mas mais com a ausência. Oriundo de Lagares da Beira, filho de um pequeno comerciante de prole numerosa, a falta de recursos obrigou-o a alistar-se como voluntário na «tropa», em vez de ser médico como pretendia. Quando Eduardo, o mais velho dos sete filhos, andava só no 1.º ano do liceu da Guarda, partiu para Moçambique, onde ficou meia dúzia de anos longe da família, para a poder sustentar.
«Nunca houve entre nós essa relação íntima, secreta, que há entre um pai e um filho», diz-me. E numa pungente página do seu Diário inédito, publicada no último JL – Jornal de Letras, começa por escrever: «Em minha casa cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita.» Nas nossas três longas conversas, ao longo do tempo, de que guardei registo, o tema aflora com alguma frequência. Em 1996, depois de ter sido o primeiro ensaísta a ganhar o Prémio Camões, justíssima consagração do criador que também é, quando falávamos dos seus primeiros escritos, de súbito fez uma pausa no seu torrencial e luminoso discurso, uma sombra se insinuou no rosto e disse-me:
– Só Deus e Freud é que devem saber porque escolhi o nome literário de Eduardo Lourenço. Talvez porque estava impregnado dessa ideia dos Lourenços. Hoje penso nisso com alguma melancolia. Ou com algum remorso.
Magia do cinema e prazer do ‘paleio’
Depois da escola primária em S. Pedro e do 1.º ano do liceu na Guarda, vai para o Colégio Militar – «como podia ter ido para o Seminário». São seis anos, dos 11 aos 17, interno, no que considera «um buraco negro» de que não gosta de falar, embora se recorde que a sua primeira nota a Filosofia foi um 0 (a final foi 19) e que «arquitectava ficções, romances históricos».
– Um tipo do meu género engaiolado! Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário. Mas a lembrança mais dolorosa é a de ficar no Colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado. Já a maior alegria era ir ao cinema, na Amadora, com os meus tios.
Esta foi, para o jovem Eduardo, uma das «maiores descobertas da [sua] vida: a da magia do cinema». Que continua a ser um dos seus grandes interesses.
Lourenço é uma espantosa e humaníssima máquina de pensar criadoramente. Com um fulgor de inteligência, imaginação e intuição, uma capacidade de relacionamento e metaforização, uma natural ironia e auto-ironia, uma expressão envolvente, a que não falta nem o achado de linguagem nem a inesperada/inspirada saída fora dos cânones – absolutamente fantásticas. Por escrito ou às vezes, ainda mais, de viva voz, à conversa com os amigos, em conferências, lições, intervenções que em geral não prepara muito, nem precisa, limitando-se a umas notas escritas na sua letra minúscula e cada vez mais imperceptível. O que significa que boa parte da sua obra ficará inédita...
– Do que eu gosto é de paleio... Passei a primeira parte da minha vida nos cafés a palear, fornecendo matéria para alguns camaradas e outros ouvintes escreverem o que eu dizia. Se tivesse continuado em Portugal acho que não tinha escrito nada. E se tivesse nascido milionário seria pior do que o Mandarim do Eça...
Cada pergunta ou observação que se lhe faz é pretexto para longas falas admiráveis, nas quais a sua excepcional cultura é sempre um cais de partida, nunca um ponto de chegada. Assim, ouvi-lo é deslumbrante; entrevistá-lo, impossível. No sentido ou com a técnica tradicionais, já se vê. O que sublinho porque estávamos a falar do adolescente Eduardo, fardado de Menino da Luz, e de cinema – o que de súbito o leva a evocar uma «América mítica, uma fabulosa fábrica de propaganda, não ideológica mas do modo de vida norte- -americano». A saltar daí, com pertinência e fulgor, para outra coisa, a assinalar que «o Império americano começou por ser construído através do cinema» e avançar pelo Império até chegar à invasão e ocupação do Iraque.
Quando faz um breve silêncio, não aproveito para pôr qualquer questão, não quero nem ouso interrompê-lo, sei que vai continuar seu alto voo, não sei é para onde. Estou ali mas, para ele, o gravador é como se não estivesse, constante e instintivamente afasta o pequeno microfone, eu volto a aproximá-lo e ele a afastá-lo, não saímos disto.
– O Cinema da Amadora foi a minha primeira catedral. Não uma igreja, nem uma anti-igreja, mas uma catedral, onde vivi os mais exaltantes, os mais sublimes, momentos da minha adolescência. Para mim havia então dois Portugais: um dentro do cinema, outro fora dele. Aquilo era o céu, o moderno sobrenatural, e ao pé dele qualquer outra forma de religiosidade empalidecia.
Coimbra, Torga, ‘Heterodoxia’
Terminado o Colégio Militar, com boas notas, o destino de Eduardo foi Coimbra. Chegou a frequentar os preparatórios de Ciências, que lhe dariam acesso à Escola de Guerra, a que estava destinado. Mas começaram a cantar outras sereias, entre elas a primeira de uma série de paixões «de caixão à cova, uma coisa tipo Dante», com uma «menina lindíssima» da sua terra que morava em Coimbra; a última dessas paixões foi a da jovem a quem dedicou Heterodoxia I – outra história por contar.
– Vendi as sebentas logo no fim do primeiro período e passei o ano inteiro na Biblioteca a ler Nietzsche e outros filósofos. Tinha 17 anos e uma grande curiosidade por temas que visivelmente estavam fora do meu alcance e por isso me pareciam misteriosos. Descobri também a Revista de Portugal, dirigida pelo Nemésio, que foi a minha iniciação, o meu primeiro contacto com os escritores vivos: até aí pensava que os escritores estavam todos mortos...
Fez então novos exames de aptidão, reprovando no de Direito e passando no de Letras. Foi, então, para Histórico-Filosóficas – «por ser o curso para que iam os que não tinham mais nenhum sítio para onde ir, e porque aquilo de que sempre gostei mais foi de História».
Católico praticante, membro do CADC, Eduardo começa a seguir outros caminhos e aproxima-se dos neo-realistas, mas sempre crítico, independente, heterodoxo. A ligação maior é com Carlos de Oliveira, seu colega de curso, dois anos mais velho, «com uma formação literária que eu não tinha» e que mais tarde haveria de ver como «uma espécie de Torga mais requintado e sombrio».
Em Janeiro de 1943 estreia-se com um conto no Diário Popular: «Foi o primeiro dinheiro que ganhei. Pagaram-me 50 escudos, que deram para uma grande jantarada com os amigos.» No ano seguinte inicia a colaboração na Vértice, com um poema, e só depois é que começa a publicar outros textos.
Licenciado, em 1946, com 18 valores, assistente, Eduardo é assíduo frequentador das tertúlias literárias, quer as dos jovens da sua geração, entre os quais está Eugénio de Andrade, quer a dos mais velhos, entre eles Miguel Torga, com o qual tem uma forte ligação. Torga aprecia-o tanto que, coisa raríssima, até lhe oferece os livros com simpáticas dedicatórias: estou a vê-los aqui, bem arrumados na imensa balbúrdia do escritório de Lourenço, a antiga garagem, enquanto a nova também já está cheia de livros e o carro fica lá fora.
Foi Torga, aliás, quem levou Eduardo a publicar o seu primeiro livro, Heterodoxia I (1949), e tratou até da sua edição: «Não paguei um tostão, mas também não recebi nada», recorda o autor. Que dedica à obra de Torga o seu segundo livro, saído em 55, o ano seguinte ao do casamento com Annie Salomon, na sua (dela) Bretanha natal.
Torga fez a Lourenço, nas provas do livro que ele lhe mandou, algumas sugestões tendentes a torná-lo mais encomiástico. O autor não ficou contente, mas mantiveram boas relações, de tal modo que quando veio a Portugal com Annie, pela primeira vez, foi ao Gerês apresentar-lha. E Annie ouviu, com espanto, Torga dizer-lhe: «O Eduardo não devia ter casado, porque é um poeta!» As relações só haveriam de se romper, para serem reatadas nos anos 80, «como se nada houvesse acontecido», quando Lourenço escreveu uma nota muito crítica sobre o 9.º Diário.
Bom, mas em 48 e 49 tinham ocorrido dois factos que mudariam a sua vida: com meia dúzia de meses de intervalo, morreram-lhe a mãe e o pai: «Com 26 anos fiquei chefe de família.» Lourenço tem «uma grande preocupação em não magoar ninguém» e admite que, se os pais não tivessem morrido, «não teria publicado nada: não queria entrar em choque com eles. Seria uma ferida que não poderia curar». Tempos antes o pai, tendo sabido que ele estivera com a «malta neo-realista toda» na casa da Figueira de João José Cochofel, chegara a ir a Coimbra falar- lhe, preocupado com as suas companhias «comunistas».
Peregrinações e ‘A Rosa dos Tempos’
Almoçamos num restaurantezinho simpático, na praça central de Vence. Lourenço tem vários comprimidos para tomar, de que de hábito se esquece ou que baralha. Annie chama-lhe a atenção, é ela que tenta sempre remediar a sua proverbial distracção (esquece-se das coisas, perde as chaves de casa, etc.), distracção tão grande como a sua ausência de soberba ou vaidade, é ela que tenta dar alguma organização à agenda que não tem, aos compromissos que assume, à vida que, como costuma dizer, «vive como se fosse eterno». Fundamental para ele, Eduardo não só o reconhece e agradece, como sublinha a sua «solicitude»: «Annie é a minha ligação ao real.»
– Às vezes a Annie zanga-se consigo, não?
– Não: eu, às vezes, é que me zango com ela. Ela, comigo, zanga-se sempre...
Vence é a última etapa de um longo percurso comum e foi um local escolhido também pela altitude e pelo clima, bom para a asma de Annie, hoje bastante atenuada. Chegado ao fim de seis anos sem ter apresentado a tese de doutoramento, O Tempo e a Verdade (– ... e afinal tenho andado toda a vida a escrevê-la, está diluída em toda a minha obra. Além disso, tenho um livro novo, que talvez se vá chamar A Rosa dos Tempos – O Fim do Mito da História Universal, que de certa forma a completa.
–Mas isso é uma novidade absoluta... E são textos mesmo inéditos, ou reúne alguns dos já publicados?
– São textos nunca publicados, escritos nos últimos cinco a dez anos. Porque inéditos, em Portugal, podem-se considerar todos os textos publicados há mais de oito dias. Há uma desatenção cultural absolutamente extraordinária.)
Lourenço vai, em 1953, para a Universidade de Hamburgo, como leitor: «Se alguma vez a palavra exílio, ou auto-exílio, teve um significado para mim foi nesse primeiro ano na Alemanha e numa terra onde às três ou quatro da tarde deixava de haver sol.» Em 1954, passa para Heidelberg, depois para Montpellier – e em 1958/59 ei-los na Universidade da Baía, de que ambos gostaram muito:
– Vêm daí a minha paixão e as minhas relações psicanalíticas com o Brasil. Estava fascinado, mas a situação em relação à Filosofia era decepcionante. Estava lá bem demais, mas com um estatuto indefinido: ou me vinha embora, ou poderia ficar lá para sempre.
Regressaram a Montpellier, e Lourenço, sem contrato, ficou um ano («dos piores da minha vida») sem emprego. Segue-se Grenoble e, em 1965, Nice, onde, como Annie (professora de Literatura de Língua Espanhola), deu aulas até se jubilar, em 1988.
Pelo meio, claro, foi construindo a obra notável que se conhece e tendo alguma discreta intervenção cívica:
– E eu nunca quis cortar com Portugal, nunca sequer coloquei essa hipótese. Por isso, quando, no Brasil, escrevi para o Portugal Democrático, fi-lo com pseudónimo.
Já em 1945 Lourenço assinara as célebres «listas» a favor das eleições livres. Não gostando da «actividade política» em meados dos anos 40, estava na tropa em Mafra, entendeu que era altura de agir. Ouviu falar da existência de um Partido Socialista, liderado por Ramada Curto, popular advogado e dramaturgo, e resolveu «alistar-se»:
– Não estive com meias medidas, mandei-lhe uma carta. Ramada respondeu-me, de uma forma muito engraçada, pedindo-me para me ir encontrar com ele, na Brasileira. Fui e disse-me que o partido era só ele. Se eu quisesse entrar, passávamos a ser dois...
Quase três décadas depois, Mário Soares convidou-o para a fundação do PS. Lourenço não aceitou, embora manifestando-se solidário. Mas não concordava com a parte do programa relativo à independência das colónias: com a independência sim, mas não com a forma muito esquemática como a questão estava apresentada, a realidade era muito mais complexa. Revela-me então que, ainda no Brasil, escreveu um livro de quase 300 páginas manuscritas, sobre essa problemática. Como muitos outros originais seus, nunca foi
publicado: antes do 25 de Abril, não era possível; depois, falou dele a Snu Abecassis, quando a Dom Quixote editou Os Militares e o Poder (1975), mas a futura mulher de Sá Carneiro disse-lhe que não valia a pena dá-lo a lume, «porque o problema já estava resolvido»...
O 25 de Abril e o fim do ‘silêncio’
Eduardo descreve, com pormenor e colorido, a sua primeira vinda a Portugal após a Revolução e como a certa altura deu com ele a pensar: «Estão em 1917 e não sabem.» Longe e perto, acompanhou com paixão tudo que aqui se passava, interveio muito e pensa que, em certos momentos, o que escreveu teve «alguma influência »: «Acabou por ser uma Revolução suavíssima, belíssima, nunca houve nada de semelhante na nossa História.»
Foi convidado para a pasta da Cultura, mas não aceitou. E um amigo chegou a mandar-lhe um telegrama a propósito de uma sua hipotética nomeação, que Annie lhe trouxe, «pendurado na ponta dos dedos e dizendo-me, irónica: 'Mon chère, te voilà ministre'»... Também foi sondado, pelo PRD, em meados da década de 80, para cabeça de lista para o Parlamento Europeu, mas recusou.
Foram anos muito intensos, em que, pela primeira vez, teve intervenção partidária, no PS e na UEDS. Mas isso já é conhecido, como o é a notável obra que, de algum modo fragmentariamente, foi construindo, como ninguém, pensando Portugal, as nossas relações com a Europa e os países lusófonos, em especial o Brasil, como ninguém escrevendo sobre – e iluminando – os nossos grandes autores. Algum reconhecimento público consistente só o começou a ter, porém, muito tarde. E nessa altura houve amigos, sobretudo Vergílio, que lhe falaram de «sobreexposição»:
– Se houve então, e agora pode voltar a haver, uma certa insolação, a verdade é que enquanto outros sempre estiveram na ribalta, eu passei aqui décadas a aspirar litros e litros, toneladas, de silêncio.
Mesmo ao nível das Universidades onde ensinou, os alunos, e a generalidade dos colegas, desconhecia Eduardo Lourenço: ele era apenas Monsieur Faria ou Lourenço de Faria, que dava meia dúzia de horas de aulas por semana e cuja obra ignoravam. Quando ganhou, em 1988, o Prémio Europeu de Ensaio, pelo conjunto da sua obra, um aluno que leu a notícia num jornal veio perguntar a Monsieur Faria quem era aquele... Eduardo Lourenço! Ninguém sabia.
Um livro inédito de poemas
O escritório de Eduardo é um reino em simultâneo maravilhoso e assustador, inquietante. É o esplendor do caos... Milhares de livros numa ordem que só ele sabe, nas estantes, e depois outros tantos pelo chão, em montes, misturados com jornais e revistas em profusão, recortes, folhetos, papéis de toda a espécie. Em cima da ampla secretária, o panorama é o mesmo. Para ali irá, decerto, uma das cartas que hoje, 9 de Maio, o correio lhe trouxe: duas páginas inteiras manuscritas, nas quais Dominique de Villepin, o ministro dos Negócios Estrangeiros de França a quem a guerra do Iraque deu projecção mundial, lhe manifesta grande admiração, designadamente pelos seus livros dedicados a Pessoa.
Por quanto tempo o destinatário saberá dessa carta? Não prevejo que por muito... O que não tem importância. Grave é o facto de já ter perdido numerosos textos e se temer que perca muitos mais. Inclusive o seu famoso Diário inédito, que escreve desde (ou pelo menos data
de) meados dos anos 40, de forma não regular, e de que, até agora, só vieram a lume muitos poucas páginas. Quando agora procura as caixas em que o tem guardado não as encontra: «Desapareceram, desapareceram, parece impossível. Mas onde é que eu as pus?»
CULTURA
No dia seguinte, lá ressuscitaram, e o nosso Escritor de Ideias teve a extrema gentileza de mostrar e ler ao repórter, velho amigo, muitas páginas suas – absolutamente admiráveis. E, mais, de lhe ler também poemas. Que, revelação absoluta, não foram alguma coisa de excepcional, passageiro, na sua vida. De tal modo que, em 1955, chegou a pensar em publicar um livro. Tenho aqui à minha frente o projecto da página de rosto, apenas com o nome do autor, a data e o título: O Dia e a Noite.
Também dos Diário(s) tenho aqui à frente os projectos de títulos e apresentação de um escritor que, como o seu amado Pessoa, podia ter heterónimos. E não terá sido essa a sua intenção inicial? De facto, na página de rosto de um primeiro volume que nunca chegou a sair lê-se (ver foto): O Livro da Alma/ ou/ A Educação Portuguesa/ de/ Tristão Bernardo – Diário Metafísico/ apresentado/ por Eduardo Lourenço/ 1952. Ou: Tristão/ Pallhaço do nada. («Tristão do Tristão e Isolda, de que gosto muito, e Bernardo não do Soares, ao tempo ainda quase desconhecido, mas do São Bernardo», revela o autor). Já em 1953, havia uma mudança no título, que passou a ser: Tristão ou/ o Livro da Alma – Diário existencial/ apresentado/ por Eduardo Lourenço. E em 1954 o título era Memorial Romântico.
Mas, agora, Lourenço garante-me:
– Se, se, algum dia o Diário for publicado, será com o título A Casa Perdida. A casa perdida de Deus, da Pátria e da própria família.
Há páginas escritas em folhas de cadernos, amarelecidas pelo tempo, há numerosas agendas, quase minúsculas, onde também escreve ou toma notas. Tudo guardado numa simples caixa de papelão, tipo caixa de sapatos. Que, pelos vistos, de vez em quando desaparece – e pode arder num incêndio ou ser destruída por qualquer acidente.
– Oh Eduardo, devia guardar os originais e as agendas numa caixa forte, digo--lhe eu.
— E quer uma caixa ainda mais forte do que esta?, responde-me de imediato, muito a sério.
É Eduardo Lourenço de corpo inteiro, no seu mundo desconhecido, secreto. Ele e o Outro, Príncipe(s) não da Baviera mas de uma Renascença que não se levasse a sério. Passeando-se, distraído só para o acessório, nas margens fluidas de uma certa genialidade. Tornando-nos melhores. E a Portugal também.
ENTREVISTA
“ O que eu queria mesmo era voar”
Lourenço afirma-se «cada vez mais, um cristão».
E só deseja «ser escritor»
Extractos, aqui em pergunta e resposta, da longa entrevista com o autor de O Labirinto da Saudade e outros livros fundamentais da cultura portuguesa
VISÃO: Como vai o azeite?
EDUARDO LOURENÇO: Que é que diz?
V: Então tem ali umas oliveiras – aqui não é o seu Vale de Lobos...?
EL: Ah!, eu nem para isso tenho jeito... O Alexandre Herculano, além de historiador e outras coisas, era lavrador na alma, tinha um grande sentido do concreto. Eu sou neto de lavrador, mas com o meu avô encerraram-se centenas de anos de ligação à terra. Eu pirei--me para o céu.... [risos]
V: Está aqui por necessidade de se distanciar ou só por força das circunstâncias?
EL: Nunca tive um projecto determinado de fazer o tipo de vida que acabou por ser a minha. Vim para aqui por uma série de contingências que acabaram por se transformar numa necessidade — e converter num destino.
V: Vive sozinho com a Annie na periferia de uma pequena cidade a mais de dois mil quilómetros do seu país. Solidão?...
EL: Mais isolamento do que solidão. A solidão é-me co-natural. Mas acabamos por ser também do lugar onde estamos e vivemos. Estou sempre aqui e lá, sempre à espera de notícias de Portugal — onde estou o mais presente possível para um ausente.
V: Às vezes, se calhar, até mais presente do que se estivesse lá...
EL: Provavelmente. Quem sai e está tantos anos fora do País é também estrangeiro, não estrangeirado...
V: ...que é uma coisa que o irrita...
EL: ... que me enerva que me chamem. Conheço Portugal todo, mas, em geral, superficialmente. Não conheço o Portugal andado, como era o caso do Torga, pelo menos em relação ao Norte, do Saramago e de outros que até fizeram disso objecto de criação. Eu só tenho um espaço particular, reservado, que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo ou o mundo estava em mim. Depois, nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei.
V: Mas então Coimbra, Lisboa?
EL: A ligação com a minha aldeia foi permanente e só deixou de o ser nos anos 60, quando comecei a ter problemas em vir a Portugal sem me chatearem. Com o 25 de Abril, foi como se Portugal todo se transformasse numa extensão da minha aldeia. Senti outra vez que tinha um sítio meu, que não me exilava ou forçava ao auto--exílio. A generalidade dos portugueses, com o 25 de Abril, ganhou a liberdade; eu ganhei também um País.
V: Voltando atrás...
EL: Coimbra, que então tinha ainda uma espécie de hegemonia cultural, era verdadeiramente o único mito cultural português, foi a terra mais importante, decisiva, para o meu percurso intelectual – e continua a ser uma presença muito forte na minha memória. Lisboa era o mundo: fascinou-me.
V: Teve uma forte formação religiosa, em Coimbra ainda era católico praticante?
EL: Nunca deixei verdadeiramente de o ser.
V: Católico? Praticante deixou.
EL: Mesmo praticante, posso voltar a sê-lo de um momento para o outro. A minha vida, nesse aspecto, deixou de ser ritualizada, como deve ser por quem leva a sério uma certa prática religiosa, para passar para um plano mais simbólico. Mas dos símbolos podem fazer parte actos que nos devolvem a sentimentos ou gestos que supúnhamos sem sentido e continuam mais vivos que a nossa fé morta.
V: Mas se lhe perguntar, agora, se é católico ou agnóstico...
EL: Essa é uma pergunta que nem sei se pode ser formulada; e que da minha parte não tem resposta. Penso é que há uma coisa inalterável: o meu enraizamento no cristianismo. A coisa mais importante, mais fundamental, que me aconteceu, foi ter nascido cristão [fala mais pausadamente, quase em surdina e com visível emoção]. Ser cristão é um destino. Com todas as consequências que isso tem e implica. Quando a pessoa ainda não tem consciência de si já banhou na água simbólica do baptismo – e isso é indelével. Sou, cada vez mais, um cristão.
V: Cada vez mais, como?
EL: Como inscrição cultural, essencial, na visão cristã do mundo, na sua radical universalidade. No papel conferido ao Outro na definição da humanidade.
V: Não é a sua forma de ser humanista?
EL: É a de um cristianismo problemático, de questionamento, que mais tarde foi, de algum modo, retomado em termos de existencialismo cristão. O meu ser cristão não tem apenas como referente a pertença a um tipo de religiosidade histórica muito marcada pela nossa tradição ibérica, conotada com um certo conservadorismo e até fanatismo, mas também uma vivência dele, mais próxima da mensagem evangélica original. A que não vive tanto do passado como do futuro e o modela. [Falamos depois de leituras neste domínio,
EL refere A Imitação de Cristo, livro de referência de Régio, confessa que Pascal está mais presente nele que Montaigne e filósofos a seu respeito muito citados, a propósito da Bíblia diz ser «o texto fundador da cultura a que pertencemos», daí passa para outro plano e afirma-se «herdeiro de um combate cultural e espiritual que começou entre nós com o advento do liberalismo ». Faz depois uma incursão pelos seus admirados Herculano Garrett, eu peço-lhe o favor de não «fazer um ensaio» a partir de cada pergunta que lhe coloco, mas nem Eduardo consegue suster a corrente impetuosa do infindável e criador rio caudaloso que é o pensamento de Lourenço. Fala de livros e escritores, sobretudo dos amigos mais próximos como Vergílio Ferreira, de pintura, de música, de política, de tudo]
V: Qual o principal segredo da diferença, que é nítida, das suas análises, em especial de textos literários?
EL: Faço de tudo uma espécie de leitura poética, de puzzle de ficção. Unamuno pensava que Hegel era um grande filósofo porque era um grande poeta. E Heidegger entendia que os filósofos são, a seu modo, poetas.
V: Em relação a Fernando Pessoa, que iluminou, reinventou, como ninguém...
EL: O Pessoa tornou-se-me num caso patológico de osmose, glosa, fixação, uma espécie de Deus inimigo íntimo com quem tem de se combater e de que nunca se sai. No Pessoa está tudo. Mas sempre tive uma grande repugnância em me servir dele como matéria «lucrativa», mesmo a nível universitário, talvez porque sempre fui, na Universidade, um outsider.
V: Em que sentido?
EL: Nunca investi nada na Universidade. Nunca fiz da carreira universitária um sentido de vida. A Universidade foi apenas, para mim, uma forma de ganhar a vida – ou de não morrer de fome. Cheguei a estar matriculado na Sorbonne para apresentar uma tese de doutoramento, que poderia ser sobre o Pessoa, mas nem sequer admiti essa hipótese.
V: Já me disse que era só um «comentador ou glosador de temas filosóficos ». Sem esse excesso de modéstia, é ou não é um «filósofo da cultura», como lhe chama Maria Manuel Baptista?
EL: Sou alguém que faz da cultura objecto de reflexão, que se preocupa com saber o que ela é – talvez um falso conceito, porque demasiado largo. Sem me comparar a ele, sou talvez alguma coisa semelhante ao que Ortega e Gasset foi em Espanha, uma espécie de «filósofo escritor », além de «espectador». Alguns também me consideram um «pensador». Mas agora com o Gabriel é uma chatice! Para ele, sobretudo...
V: Se lhe perguntassem como o classificar, num asterisco a acrescentar a um texto eu, publicado na Alemanha ou China, que responderia?
EL: A única coisa que verdadeiramente eu quero ser é escritor – o resto não me interessa nada. Poeta, ainda seria melhor. Como não pode ser, escritor... [risos]
V: Mas, que é escritor, e bom, é óbvio.
EL: Não é óbvio para toda a gente. Ainda agora organizaram uma Rota de Escritores da minha região e eu não estou lá. De facto, não sou poeta, por isso deixei de escrever versos: a pulsão poética passou para os textos ensaísticos. E não sou ficcionista, embora a ficção não esteja ausente de muitos desses textos.
V: Vai fazer 80 anos: embora não goste de balanços, não posso deixar de lhe perguntar qual é o que faz do seu «tempo de tempos»?
EL: [Pausa longa, suspiro fundo] O que a gente faz, ou o que eu fiz, é uma espécie de fuga para a frente. Para fugir de quê e para chegar onde? Para esquecer, a sério, que somos mortais. É uma fuga real, não uma morte romanticamente estilizada, a alguma coisa que está atrás de nós e nos espera. O que a gente faz é mobilar esse intervalo entre um princípio que não é da nossa responsabilidade e um fim que está sempre presente e é também uma ficção.
V: E quanto à «mobília»...
EL: Resumindo: passei a vida a sonhar. E a forma desse sonho foi ler. À margem do sonho e das leituras infindas, registei o eco dessa vivência, dessa distracção sublimada.
V: Só «registou»?
EL: Como alguém que se destinava a ser professor de Filosofia, procurei saber o que é a realidade das coisas, o que é a verdade, a vida, este mundo, todas essas interrogações a que chamamos a pulsão filosófica. Simplesmente, para mim a verdade nunca foi um «objecto», ou é o objecto da ficção suprema, sempre presente e sempre fora do nosso alcance.
V: Quando acha que esteve mais próximo de fazer o que queria fazer, de ressonhar, ou voltara sonhar, por conta própria...
EL: Por conta própria é tudo. Mas [pensa] um sonho filtrado pelo sonho dos outros, a cujo conjunto chamamos a cultura. A obra em que eu estou mais presente, embora através de outro, é no Fernando Pessoa Revisitado, escrito num impulso pulsional, em 23 dias. Nesse livro está tudo o que eu penso e sou, falando da forma mais distanciada e íntima de mim próprio. É o meu romance. Quem o leu bem foi o Carlos de Oliveira, que me disse: aquele, és tu.
V: Pensa muito na morte, na sua morte?
EL: Oitenta anos não passam em vão. Quando temos uma sensação quase física desse fantasma, desse terror suspenso, é na adolescência. Com a morte dos outros, que amamos (a nossa morte não tem sujeito), isso confirma-se, o impensável está ali, é o desastre completo, que com o tempo serve para acalmar, adoçar, essa obsessão, esse pânico diante da morte, passa a ser fonte de aceitação e sabedoria. A mais alta forma de caridade [fala com emoção] é aceitar a nossa morte porque os outros que nós amamos também morreram.
V: Mas tem medo da morte ou não?
EL: Quando estive perto dela, o que já aconteceu duas vezes, entrei num registo de grande serenidade, como se isso não me dissesse respeito. A realidade apaga as coisas.
V: Não pensa pedir que o vistam com um hábito de franciscano, como o Jaime Cortesão?
EL: Não, não. Até aos dez anos era muito espontâneo, extrovertido. Depois, fui-me tornando de uma timidez doentia. E todas essas coisas me impressionam muito. Mesmo entregas de prémios, homenagens, cenas assim, criam-me um enorme stress. Depois de uma delas, das primeiras, estive seis meses sem escrever uma linha. Foi como se tivesse assistido ao meu próprio enterro.
V: Notoriamente não se deixa institucionalizar, uma vez disse-me até que era muito «agarotado ». É um homem em que a infância não morreu?
EL: Sempre fui muito sensível ao espectáculo da petrificação humana, à pose da seriedade, aos que transportam a sua própria estátua. Que também atinge escritores e até poetas. Vivi a infância com tal intensidade, tal força, tal alegria, que, mesmo sem voluntarismo, de facto recuso deixá-la morrer.
V: Também não se «programa» nem se deixa programar...
EL: Como diz a Annie, eu escolho sempre o caminho mais fácil. Sou tão preguiçoso... Se o não fosse, aos 27 anos, o máximo 30, teria sido prof. de Coimbra, catedrático, ficaria lá naquele dolce farniente, anos e anos talvez a repetir-me. Com sorte, teria sido um bom professor, como outros o foram e são. Assim, tive esta vida de nómada, de cigano à força, que não foi uma opção mas uma necessidade. Que resultou do meu diletantismo absoluto: o diletantismo como forma de vida [risos]. Até tenho esses vários livros para publicar e não publico!
V: Mas há aí uma contradição, porque o que já escreveu mostra que não é preguiçoso, só desorganizado – e valoriza o trabalho dos outros desvalorizando o seu: é a grande excepção entre tanta «estratégia de glória».
EL: Sou é um amador de mitos. Quase toda a gente é herói para mim: escritores, actores, cantores, futebolistas. Salvo eu [risos]. Vivo na admiração desse mundo ideal, como se tivesse dez anos. Entrei nesse mundo maravilhoso, como no cinema, e não voltei a sair. Tudo para mim é cinema, espectáculo: até a História. E eu sou um «espectador», no sentido que o Ortega e Gasset lhe deu.
V: Isso lembra-me o Pessoa/Ricardo Reis: «Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo»...
EL: É. Mas eu, sendo tão espectador, meto-me: antes do 25 de Abril pela situação que o País vivia, com a ditadura; depois dele para contribuir para o que entendia ser urgente fazer. Não podia ficar à margem.
V: Afinal nunca foi, portanto, um espectador. Se tivesse ficado só catedrático é que o seria.
EL: Como disse há bocado, sou muito contraditório. Tenho as contradições de todos os Portugais possíveis. E sempre quis articular as contradições da nossa História e da nossa Cultura, percebendo como funcionam, nessa realidade labiríntica que recusa o preto e branco. Eu estou dentro dessas contradições e tento...
V: ... superá-las?
EL: Não, pensá-las, pensá-las. Isso é o ensaio à Montaigne, sem a pretensão de nele me inscrever. A história humana é um espectáculo mas também, se não uma tragédia, um drama, como a leitura juvenil do Hegel, um pensador trágico, me ajudou a compreender. Um drama no sentido mais romanesco do termo, que como tal vivo. Por isso gosto tanto de História.
V: Gosta de História, dedicou-se à Filosofia, desejava ser poeta, escritor de ficção, autor de teatro – tendo escrito, na cabeça, pelo menos uma peça –, a música proporciona-lhe hoje uma emoção ímpar. O que não queria ser é o que é?
EL: Isso é agir por defeito [risos]. Não me quero caluniar, mas sou muito consciente de que me falta a criatividade e originalidade de grandes figuras do passado e do presente. Tenho o sentimento dessa riqueza imensa e não me consigo situar, mesmo numa escala mínima, nessa família de gente que também quis atingir qualquer coisa. Eu só tenho existência... física, embora quisesse ter uma espécie de existência angélica. O que eu queria mesmo era voar, voar!
80 Anos
Por ENTREVISTA POR ADELINO GOMES E CARLOS CÂMARA LEME
Sexta-feira, 23 de Maio de 2003
Eduardo (Lourenço), o rei da nossa Baviera
Há muito que Eduardo Lourenço, em torno da literatura e da poesia, nos habituou a pensar Portugal. A aventura começou em 1949 com "Heterodoxia". O heterodoxo queria abrir uma fenda em duas "ortodoxias circulantes": o salazarismo e o estalinismo. Marcou o seu terreno e, para muitos, é uma voz única na paisagem da contemporaneidade portuguesa.
Aos 80 anos, que faz hoje, a reflexão mantém-se. Eduardo Lourenço não perdeu nem acutilância nem lucidez. E é desconcertante: quer quando fala de Salazar e do fascismo, do 25 de Abril, dos militares, da descolonização, da nossa história e da identidade, de Portugal (obviamente). Eduardo Lourenço é - e glosando o título de uma das suas obras mais emblemáticas - o rei da nossa Baviera.
"Uma revolução com flores não dá!"
PÚBLICO - Estamos a um ano de comemorar os 30 anos da queda da ditadura. O fenómeno do fascismo e, em particular, da figura de Salazar, não continua a pedir uma explicação?
EDUARDO LOURENÇO - Claro! A classe intelectual, e os portugueses em geral, foi sempre muito despreocupada sobre aquilo que se fez. Fazem e acabou-se! Temos uma grande noção do presente. E o que passou, passou. Compare-se com o fascismo italiano que acabou na tragédia que se sabe: há bibliotecas inteiras sobre Mussolini. Aqui nunca se passsa assim e, no entanto, foram 40 anos de um regime.
Porque uma coisa era a superestrutura de ordem política e ideológica; outra é a vida que continuou a funcionar, senão não tínhamos existência nenhuma. Quem estava na cadeia, que estava fora do sistema, tinha que lutar contra o sistema. Mas era um Portugal minoritário e concentrado no Partido Comunista Português. Só depois de 1945, com as eleições presidenciais, é que o país acordou para uma oposição que se manifestava durante um mês. Após o sobressalto das eleições voltava tudo ao mesmo. Até ao caso do Delgado, aí começa uma nova fase.
Mas como é que explica que Salazar tenha permanecido no poder mesmo depois de 1945, mesmo com o caso Delgado...
... o Salazar estava certo com este país! A democracia é que era excepção! Não era a regra. Desde a tomada do poder pelo Mussolini até ao fim da II Guerra Mundial, só a Inglaterra e parte da França é que eram países de democracia plena. E tinha um álibi supremo: a União Soviética. E Salazar jogou habilmente no novo contexto da Guerra Fria.
Foi um político hábil?
Muito hábil. Só não o foi na gestão da parte colonial. Nós estávamos lá para ver (risos). Ele chegou para o país e sobrava! Se não tivesse caído da cadeira a gente não sabe onde é que a gente estava (gargalhada).
Onde estava no 25 de Abril?
Tinha aulas nesse dia e cheguei à universidade e disseram-me: "Olhe, professor, parece que houve uma revolução lá no seu país."
E acreditou?
Disse com os meus botões: "Foi o Kaúlza" [de Arriaga]. Às onze horas vieram-me dizer: "Não. Foram militares, mas gente democrática."
O 25 de Abril, foi uma revolução?
(Silêncio) Pelos seus efeitos, na ordem política e ideológica, foi uma revolução. Mas uma revolução com flores não dá! O que teve de maravilhoso foi isso mesmo: foi uma coisa única. Oxalá que todas as revoluções fossem assim... Houve momentos revolucionários mas que já eram arcaicos. Nós podíamos ter ido para uma Cuba na Europa. Mas eu olhava para o mapa e dizia: "Só se os EUA quiserem." E parece que havia uma parte da Administração americana que queria dar o exemplo de que a revolução não funcionava - nem aqui nem em parte nenhuma, matando o bicho de uma vez.
"Nós fizemos um esforço em África absolutamente delirante"
Sobre o "labirinto da saudade", que é Portugal, não se enganou na avaliação que fazia dos militares? Não andou um pouco perdido sem perceber o que é que os militares queriam? Prefacia "Alvorada em Abril", de Otelo Saraiva de Carvalho...
... essa história é engraçada. Foi Otelo, que eu não conhecia como toda a gente, que me pediu, por telefone, o prefácio. Eu não tinha lido o livro.
Para mim o que é que ele significava? Pensava assim: "Era como se estivesse estado em Caxias e ele me tivesse tirado de lá." Foi assim que eu recebi o 25 de Abril e ainda o sinto assim! Fiz uma coisa de tipo genérico e só lhe perguntei uma coisa: se ele tratava mal o Ramalho Eanes. Otelo disse-me que não, que era um relato da revolução. Quando recebi o livro fiquei passado. Passei a noite a lê-lo. É extraordinário. As páginas finais são uma coisa espantosa. É uma coisa épica. Infelizmente, depois, ele não esteve à altura dos acontecimentos que vieram a seguir.
E a seguir aproximou-se do Grupo dos Nove. Depois aparece a figura de Ramalho Eanes, de óculos escuros à Pinochet, no 25 de Novembro. Mais tarde, aplaude o aparecimento do PRD. Politicamente, no seu percurso não é o tiro no pé?
Vamos por partes. Quando comecei a escrever no "Expresso" percebi que os militares condicionavam tudo e que era preciso "civilizá-los" o mais possível. Depois, o meu livro "Os Militares e o Poder", que sai em 1975, é muito anterior. Comecei a escrevê-lo depois da história do Delgado e destinava-se a uma intervenção utópica, e um pouco delirante, porque sabia que se ele viesse a lume então nunca cá mais punha os pés.
"Os Militares e o Poder" pretendia traçar a desestruturação dos três grandes obstáculos que faziam parte da nossa vida: a Igreja, o Exército e a economia. Para a economia não estava habilitado; com a Igreja sentia-me mais à vontade e os militares que eu conhecia bem - tinha andado no Colégio Militar e o meu pai também era militar. Pensava que as realidades mais opacas precisavam de ser pensadas.
Infelizmente se estivéssemos em democracia, o livrinho poderia ter tido outro eco. O regime de um lado era completamente opaco nesse capítulo e a oposição do outro era simplista - entregamos as colónias, acabou. Eu não queria nem uma coisa nem outra.
Subscreve a ideia de António José Saraiva - na altura muito contestada porque decorreu num debate com alguns dos militares de Abril, no Centro Nacional de Cultura - e que parece hoje ser consensual, segundo a qual nós saímos de uma maneira vergonhosa das colónias, com o rabo entre as pernas?
Ele telefonou-me quando isso aconteceu. Eu disse-lhe que dizia a mesma coisa só que de uma forma mais suave. Na Guiné, a coisa estava perdida. Em Moçambique e Angola não. Mas atenção: nós fizemos um esforço em África, em termos históricos, absolutamente delirante, tão ou só comparável à dos Estados Unidos, no Vietname. Do ponto de vista militar aquilo não estava perdido...
António José Saraiva dizia que Portugal era responsável por muito do que se estava a passar em Angola e Moçambique a seguir à independência. Timor, a essa luz, não foi uma forma de ajustar contas com a nossa consciência?
Claro e eu fui um deles. Foi a última pedrinha de nós, preservar Timor, e ficar com a consciência tranquila com o resto do que foi a descolonização. Mas temos que assumir, na totalidade, a nossa história.
"Agora estamos todos no mesmo barco"
Muita coisa se alterou nos últimos anos. Não só com o 25 de Abril mas também com a adesão à CEE. Hoje estamos confrontados com um novo desafio - a nossa eventual diluição na Europa. Preocupa-o?
Não, não! Porque a Europa já está diluída. Antes não estávamos à altura de um desafio concreto, agora estamos todos num mesmo barco. "Hélas!" Um barco naufragado chamado Europa e mais do que nunca depois desta guerra do Iraque. Porque, desta vez, a dificuldade da construção da Europa não vem de dentro, que é de há séculos, mas vem de uma outra força exterior que divide a Europa no seu interior.
Este jogo que está fazendo os EUA opondo a Europa de Leste, as democracias populares que se tornam americanas, era imprevisível. Porquê? Porque só agora nos demos conta que a Europa está ocupada desde 1945. E bem ocupada! Não é só a pulsão do imperialismo de um tipo novo da América. Foram as contradições da história europeia que convidaram os americanos para nos salvar duas vezes, num espaço de 25 anos, e eles quando chegaram à última, já estavam cá.
Nós não temos a percepção porque Portugal não foi ocupado, não precisa de ser ocupado. Vá a Itália: eu assisti à chegada do embaixador americano - é como um tipo que chega ao Iraque. É igual. Nós passámos por essa situação: no século XVIII, os embaixadores de Inglaterra e de França mandavam neste país.
Em suma: para as forças que temos, para o país que é, Portugal tem tido uma habilidade para a conservação do essencial, que é o máximo. A nossa História não é trágica, é muito protegida. Mesmo quando a Espanha esteve aqui, Portugal nunca perdeu a sua identidade real. Os espanhóis até pediam autorização para ir para a parte portuguesa! Portugal era a nação mais coerente do ponto de vista da Europa e tem uma espécie de identidade forjada a partir da sua própria fraqueza. Isso é que é verdadeiramente extraordinário - tivemos esta capacidade de fazer da fraqueza força.
Essa força ou fraqueza não estava implícita no título e no conteúdo - que alguns distraidamente chegaram a ler à letra - de "O Fascismo Nunca Existiu", saído em 1976?
O título está certo! Mas quando escrevi era, na verdade, irónico (risos).
"O que me preocupa é que aqui a Justiça não funciona"
À volta dessa galáxia que é Portugal um dia escreveu: "Um português que é só português não é português." Acha mesmo que há uma essencialidade portuguesa que nos distingue do espanhol, do inglês ou do francês?
É muito difícil de explicar... Essa frase é do filósofo alemão Fichte, que é considerado o pai do nacionalismo alemão. E é muito interessante que seja um filósofo como Fichte que o diga: "Um alemão que é só alemão não é alemão." Cuidado: isto não vai ter ao Hitler.
Na verdade, acho que o português é outra coisa. Claro que o discurso sobre a identidade é sempre muito difuso e está muito impregnado em "O Labirinto da Saudade" pelas teses de Ortega y Gasset: nós somos História, historicidade. Mas esse é que é o mistério: uma coisa é constatar que não há uma portugalidade em si, inscrita contra as pretensões do que era a ideologia conservadora do Estado Novo, da lusitanidade. Numa primeira fase eu sou muito hostil, e mesmo contra. Portugal é a sua história, Portugal foi coisas diversas e está sendo coisas diversas.
Porém, há uma coisa interessante: é a continuidade e, sobretudo, uma espécie de "coisa imóvel". É algo difícil de se apreender.
Não é nenhuma transcendência, é uma prática: simplesmente há sempre uma dialéctica entre mudança e permanência. Sempre. Sem parar. E, talvez no caso de Portugal, isso é capaz de ser mais acentuado, porque ficámos muito cedo no interior da Península; as nossas ideias mentais e simbólicas são idênticas à da Espanha. Oliveira Martins percebeu muito bem isso: até ao século XIV não é possível fazer uma história separada. Havia pequenos portugais e só um é que vingou - foi o nosso. E mais tarde, nós e a Espanha ficámos como uma aldeia em relação ao processo geral da Europa.
Só que há uma paradoxo: Portugal sendo tão aldeia, com uma cultura tão rústica como é a nossa, que teve tanta dificuldade em entrar na modernidade, tínhamos sempre um pé cá...
... no fundo é sua expressão "só fomos maiores fora de nós." É isso?
É. Só que agora, e esse é um dos nossos problemas, não temos nós. Agora estamos, realmente, confrontados com os outros. Porque com a nossa História é uma História de fuga para a frente e é bem sucedida para essa espécie de identidade em que nos implicamos. A coisa foi - é - fantástica.
Agora fala-se muito em que estamos na periferia da periferia. Mas no século XV estávamos na vanguarda. E depois passámos a estar no centro do Mundo. E mais: nunca tivemos, de uma maneira trágica, um inimigo com que nos tivéssemos de confrontar ou dialogar. Nós tínhamos, a partir da definição do mundo camoniano, o Islão; a coisa terminou em Alcácer Quibir, sem terminar porque vamos encontrá-lo depois na Índia. Mas aqui ficámos protegidos da única coisa que nos assombra: o relacionamento do que está ao nosso lado.
O que é que fizemos? Voltámos as costas, pelo menos na aparência, e passámos a empenharmo-nos na ordem política na aliança com a Inglaterra e na ordem económica com a França. Mas nunca tivemos o confronto.
Como vê a actual situação do país: os casos de pedofilia, corrupção dos autarcas, o ministro da Defesa, com o caso Moderna, a ideia de que a sociedade portuguesa, de repente, parece não se conhecer...
...são tudo sintomas de que algo não está a funcionar, numa democracia já consolidada e estabilizada como a nossa. Sente-se uma certa inexperiência deste Governo em matéria de gestão das coisas talvez porque tenha caído, literalmente, do céu.
Mas é preciso contextualizar as coisas: estes escândalos pátrios são uma gota de água comparado do que se passa em Itália. Reparem: ao nível mais alto é o próprio primeiro-ministro que põe em causa a própria justiça do seu país. Ele próprio condiciona a justiça. É um caso... Mas a Itália é sempre um caso, foi sempre aliás, e não vejo maneira de deixar de o ser.
Agora, o que me preocupa é que aqui a justiça não funciona: os casos são denunciados e depois dá tudo em águas de bacalhau. E criou-se um hábito péssimo: as pessoas são julgadas na televisão mesmo que tenham sido ilibadas. Desde o Presidente da República até ao Procurador Geral da República todos têm uma palavra a dizer. Não é possível que a televisão passe a ser um tribunal público, sem contradição, sem direito a resposta. É algo de inimaginável.
PÚBLICO, 23-5-2003
Imagens Que Sublinham as Entrelinhas do Texto
Por ÁLVARO VIEIRA
Sexta-feira, 23 de Maio de 2003
Tem algo de paradoxal a fotobiografia de Eduardo Lourenço que é apresentada hoje, às 18h30, na Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra: é uma fotobiografia que reserva o papel principal ao texto.
As cerca de 300 imagens reunidas na obra de Manuela Cruzeiro e Maria Manuel Baptista foram seleccionadas em função dos escritos de Eduardo Lourenço. O que não implica que as fotografias tenham um estatuto meramente acessório.
"A ideia foi reproduzir fotografias que alterassem o contexto e permitissem outra leitura dos textos" de Lourenço, explica Maria Manuel Baptista, do Departamento de Línguas e Cultura da Universidade de Aveiro. Muitas fotografias sublinham a ironia, sem a qual não é possível perceber os textos de Eduardo Lourenço. Ou o sentido lírico, de muitos textos de aparência puramente conceptual. "Não é uma fotobiografia 'voyeurista', no sentido de nos oferecer imagens sobre o homem por detrás da obra", acrescenta Manuela Cruzeiro, investigadora do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra.
É por isso que Maria Manuel Baptista não hesita em classificar o livro, editado pela Campo das Letras com o patrocínio de Coimbra 2003 Capital Nacional da Cultura e do Instituto de Estudos Ibéricos da Faculdade de Letras de Coimbra, como "uma fotobiografia intelectual".
Subdividida em capítulos como "Tempo da Guarda", "Tempo de Coimbra", "Tempo de Vence", a fotobiografia acompanha a ordem cronológica da errância geográfica que levou o ensaísta a Paris, Heidelberg, Montpellier, São Salvador da Baía, Grenoble e Nice, até se radicar em Vence, há quase 20 anos.
Mas a concepção do livro não traduz uma obsessão literalmente cronológica. Aqui, os "Tempos de Eduardo Lourenço" são, sobretudo, os contextos mentais. A lógica desta edição "não é o tempo da escrita, é o tempo escrito", diz Manuela Cruzeiro.
Este foi o princípio que presidiu também à relação cronológica de todos os textos assinados por Eduardo Lourenço. Maria Manuel Baptista e Manuela Cruzeiro - ambas de formação filosófica e autoras de teses de doutoramento e mestrado, respectivamente, sobre a obra do autor de "Heterodoxia" - garantem que "Tempos de Eduardo Lourenço: uma Fotobiografia" será a obra de referência para outros estudiosos lourencianos. Dizem ter consciência de que a datação de alguns escritos não coincide com a de outras cronologias publicadas, mas asseguram que são estas que laboram no equívoco: seja porque Eduardo Lourenço publicou ensaios décadas depois de os ter escrito, dado que estes se mantinham actuais; seja por ele ter "uma óptima memória semântica, mas uma péssima memória para datas" que o terá levado a enganar-se na datação dos seus próprios textos.
"Este é que será o meu verdadeiro diário", terá comentado Eduardo Lourenço sobre a fotobiografia, numa referência irónica ao diário que editores e jornalistas o pressionam a toda a hora para publicar.
As autoras acusam Eduardo Lourenço de lhes ter dado muito trabalho: descobriram-lhe mais de 900 textos, desde crónicas mundanas sobre a vida de Paris, a moda, críticas de cinema e até reflexões sobre o turismo, publicados nas revistas e em boletins os mais inesperados. Nem o autor se lembrava de muitos deles, garantem as biógrafas.
A grande ajuda com que contarem, ao longo de três anos, foi a de Adriano Faria, irmão de Lourenço e "o seu mais zeloso arquivista". Eduardo Lourenço terá acompanhado a elaboração do livro "mais à margem, sem grande participação directa". Com um misto de modéstia e pudor.
"Tempos de Eduardo Lourenço: uma Fotobiografia"
Maria Manuel Baptista e Manuela Cruzeiro
Campos das Letras
264 págs., 42 euros e 42 cêntimos.
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Eduardo Lourenço
Segunda-feira, 26 de Maio de 2003
Vaca sagrada da cultura portuguesa? Não me sinto, mas pelos vistos tomam-me!
Texto Adelino Gomes e Carlos Câmara Leme
Quem é o Eduardo Lourenço de Faria?
(Longo silêncio.) Se me conhecesse minimamente, como é sua obrigação, não me fazia essa pergunta porque sabe que ela não tem resposta. E, sobretudo, resposta minha. Em geral, nós somos o discurso dos outros. Nós, por nós próprios, não temos discurso. Não devemos ter. Mas mesmo que quiséssemos ter também não tínhamos. Agora, cada um, no seu relacionamento com o outro tem uma imagem. Culturalmente, no domínio da imagem pública, sou um ensaísta. E já estou crucificado nessa maravilhosa cruz.
Ensaísta ou humanista?
Humanista ainda é uma cruz mais difícil de transportar do que a de ensaísta. Na nossa tradição ocidental, humanista é aquilo a que mais tarde se chamou o intelectual, da primeira modernidade que é a do Renascimento.
Quando se olhar ao espelho no dia em que fizer 80 anos não se pergunta: quem é este Eduardo Lourenço de Faria?
A gente vê sempre qualquer coisa de atrasada realmente a nós próprios. Do que eu tenho medo é de que no espelho não veja nada. Não tenha imagem. Uma das minhas características é a de querer estar ao lado, de perceber que estou acompanhado por mim próprio. Fui um pouco um anjo da guarda de mim mesmo. Para me vigiar, para não cair na tentação de pensar que sou alguém que tem alguma importância.
Aquilo que vê de si é aquilo que os outros mostram que é - a sua imagem sozinha na capa do "JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias", por exemplo?
A minha primeira reacção é de gratidão a todos os que colaboraram nesse número. E, naturalmente, que me reconheço em alguns traços de praticamente todas as pessoas que escrevem. Mas sou só aquilo que escrevi e que me é inacessível a mim próprio.
E nessas imagens encontrou outro Eduardo Lourenço de Faria?
Para não ser tão evasivo: estou espantado que alguma coisa daquilo que eu pensava que pudesse fazer tivesse tido um princípio de realização. Quando era muito mais jovem, lembro-me de ter escrito nesse diário, que não é um diário, uma coisa: "Sou como a água, sou indizível, eu não tenho cor." Tinha um grande sentimento de inexistência, de relatividade, pouco apreensível para mim mesmo e, também, na imagem realmente dos outros. Finalmente, com o tempo a pessoa acaba por ter uma imagem e cola-se a nós, como a nossa verdade ou como a nossa máscara, ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Mas sinto-me menos frustrado do que me senti no passado, frustração empírica, não por falta de reconhecimento mas simplesmente por excesso de solidão, de estar lá fora, de estar noutro espaço. Até porque sou um comunicativo. Até aos 30 anos, enquanto estive em Portugal, passava o tempo nos cafés a não escrever os livros que devia escrever. E, para mim, ter ido lá para fora foi uma sorte e ter que, obrigatoriamente, estar confinado a gerir a minha vida, sem ninguém à minha volta.
Quando passa a ser o professor Eduardo Lourenço o que é que lhe diz o espelho?
Nunca tive para mim estatuto de professor Eduardo Lourenço. Fui um professor muito atípico - as pessoas só há pouco tempo é que me tratam assim. Essa é uma das coisas da cultura portuguesa, a complexidade chinesa nos tratamentos. Deixo de escrever cartas porque não sei como é que as hei-de tratar! Às vezes dizem-me "Professor doutor." Eu digo: "Professor sem ser doutor e doutor sem ser professor." Mas nunca fui as duas coisas ao mesmo tempo. Eu não vivo nessa categoria de professor. A sério. Por mais reticente que seja em relação a si próprio, a gente sempre se investe numa certa figura. Nunca apostei numa forma de carreira, de nenhuma espécie. Nesse capítulo tenho uma responsabilidade absoluta. O que é lamentável, sobretudo para quem vive comigo e para os benefícios que podia ter indo retirando dessa inscrição mais forte, institucional. Não, eu vivi como irresponsável.
É curioso que é no país onde não é professor que se consagra como professor. E, provavelmente, no país onde exerce o professorado é mais desconhecido e não é reconhecido como professor. Mas apenas como senhor Eduardo Lourenço.
Também porque na cultura francesa só em círculos universitários esse tipo de coisas tem importância...
... e em França a sua consagração é muito mais recente.
Nesse capítulo também não me culpabilizo, senão retrospectivamente. Podia ter muito mais cedo numa presença no interior da cultura francesa. E sempre tive grandes reticências a isso. Mas, também, como costumo dizer "não se levam laranjas para Setúbal".
A França era um país profissional da "inteligentsia" da cultura. Só muito mais tardiamente graças à minha mulher é que entrei no circuito. Por acaso, pediram-me um ensaio sobre Montaigne. Disse como os meus botões: há bibliotecas inteiras sobre Montaigne, não vou escrever uma linha. E estive assim dois meses. Acabei por escrever e foi publicado. Então a gente percebe uma coisa: às vezes o olhar exterior é interessante, porque cada cultura, com as suas tradições, acaba sempre no círculo do mesmo. De maneira que quando vem um paisano de fora esse olhar pode ser interessante para os próprios franceses que não fizeram outra coisa que estar a olhar para o seu próprio Montaigne. Não é que eu diga nada de especial sobre Montaigne.
O primeiro livro que teve algum eco em França foi "L'Europe Introuvable. Jalons pour une Mythologie Européenne", que saiu em 1991 [Métaillé, 1991]. Hoje não há dia que não se publique livros sobre a Europa, naquela altura não. A verdade é esta: nunca a tive a pretensão de ter qualquer tipo de existência minimamente interessante ou válida. A minha aposta era Portugal.
Sai em 1954 - ano em que casa com Annie Salomon - mas nunca saiu de Portugal. É ou não é verdade?
A pergunta formulada assim equivale à descrição que faço dos portugueses e de Portugal: é um país que nunca saiu dele. Sai sem sair. É a coisa mais típica que eu conheço nesse género na nossa maneira de ser. É como naquela famosa passagem da "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, vai encontrar na costa da Índia uma terra exactamente igual àquela que ele conhecia aqui. A China ali ao lado e os sujeitos estavam lá como se estivessem no Minho. É a mesma coisa com os que estão Vence que são de Espinho. E é a mesma coisa deste cavalheiro tendo ele a pretensão de se mover fora do circuito e do "ninho pátrio", como dizia Camões.
Porque é que nunca saiu?
Porque quando parti daqui - e tendo deixado já uma pequena reflexão sobre a nação como cultura portuguesa -, já tinha um problema com Portugal. Que não tinha nada de original e singular: era pura e simplesmente herdeiro de toda a tradição da Geração de 70, de António Sérgio, ou do grupo da "presença". E depois por motivos profissionais comecei por dar aulas de cultura portuguesa, nos leitorados. Isso ainda me enraizou mais na temática portuguesa com a nossa memória portuguesa. Lá fora ainda fiquei mais empregado de Portugal do que estivesse cá dentro.
É muito interessante porque chegou a dizer que lá fora encontrava mais facilmente forma daquilo que queria ser...
... até porque em Coimbra não acabei a tese dentro do prazo determinado, se calhar se o tivesse feito talvez nunca tivesse saído daqui... E a minha vida teria sido certamente outra... por dentro não sei. Isto para mim tem um peso cada vez mais importante: o nosso destino é feito de um rosário de contingências que, por sua vez, acabam por traçar o nosso destino. Essa de sair lá para fora, estar dois anos em Heidelberga, Alemanha, ter-me fixado e casado em França, constituiu o meu destino como pessoa.
Quanto à cultura portuguesa quis interrogar não de uma maneira especulativa, mas concreta, e numa pequena parte, a nossa memória. Sobretudo o que eu quis fazer sem querer fazer de uma maneira determinada, mas que pouco a pouco se foi precisando, foi uma espécie de compreender como é que funciona o imaginário português. O que é que nós somos. Nós somos aquilo que sonhamos, os mitos que construímos. Qual é a mitologia portuguesa? Em função de que horizonte é que a cultura portuguesa tem funcionado? O que é que ela tem de particular? Isso só se compreende examinando os vestígios disso que é a poesia, a ficção.
Essa compreensão, ou destino, constrói-o melhor fora de Portugal, isso é que é que curioso no seu percurso, não acha?
Provavelmente se tivesse ficado cá não teria tanta distância e tanta objectividade. Penso que foi, também, a minha maneira de não perder Portugal, de estar cá não estando. Nesse tempo o Portugal perdido tinha duas significações: uma expatriação ou uma fuga mais ou menos voluntária e outra a de um Portugal que, por outras razões, era muito difícil nós considerarmos quer em termos de cidadania e liberdade. Eu vivi este país como uma espécie de prisão como muitos portugueses viveram - não todos. Isso é uma mitologia nossa mas as pessoas estavam aqui muito tranquilas, muito contentes. Portugal também foi feliz naquela época! Não é por acaso que Portugal tem esta fixação no "Pátio das Cantigas". Aquilo é a sociedade salazarista em estado puro. Quando aquilo passa de novo na televisão, estamos em grande! Este Portugal não foi assim tão infeliz - era infeliz para quem não estava com o sistema.
Mas esse seu programa de trabalho - qual é a mitologia portuguesa?, em função de que horizonte é que a cultura portuguesa tem funcionado? - o que é queria mostrar?
O que eu queria fazer era a partir do Portugal da modernidade, do liberalismo até hoje, revisitar os discursos e a interpretação do nosso passado. Que, de uma maneira geral, tinha duas vertentes: uma que prolonga os valores, as referências desse Portugal com uma crença forte, onde não há heterodoxia - nunca houve. E quando há alguma tentativa é erradicada com a expulsão dos judeus (que não é uma heterodoxia) que era outra crença. Não há nenhum Montaigne que acaba nos Voltaires. E o outro tipo de religiosidade, representada pelo povo judaico, foi embora.
Passámos de um mesmo mundo que esteve em Fátima a 13 de Maio sem transição para um outro que nos vem de fora. Oliveira Martins viu isso muito bem e, por isso, é mais reivindicado mais pela direita do que pela esquerda. Ele aceita que é correcta e ideologicamente certo esse francesismo transposto, que vai dominar o século XIX. São estas reflexões que fiz em Providence, que não sei se chegarei a publicar, sobre Eros e Cristo, que é um percurso desde Almeida Garrett até Jorge de Sena.
Nelas interessa-me menos as suas relações de continuidade - como a imagem da carruagem dos comboios - mas como funciona o sistema, onde o Eros funciona como libertação e Cristo que funciona como mecanismo regularizador desse mesmo Eros.
Define-se como católico mas ao mesmo tempo não acredita em Deus. Disse que era "um místico sem fé" e que gostava de "estar num convento e ter como superior Álvaro de Campos"...
... nessa fase.
E agora o superior seria outro heterónimo?
Só Pessoa.
Aos 80 anos como é que está a sua relação com a morte?
Mais familiar, angustia-me menos a minha a morte, não a morte em geral.
E essa sua relação com a morte, é com a eternidade em que não acredita ou com a eternidade em que, apesar de tudo, julga que ainda pode haver?
"Nós fomos naturalmente eternos." É uma frase de Espinosa.
Isso é uma fuga à pergunta: e a morte do Eduardo Lourenço de Faria?
Eu gostava que aquilo que vem no Credo fosse verdadeiro: a Ressurreição, seria realmente a vitória total.
Mas para isso precisava que Deus existisse. E aí tem profundas dúvidas?
Não é uma questão de dúvidas. O problema é saber se nós existimos para Deus. O problema não é sobre a existência de Deus mas o contrário. A relação com Deus impensável e sempre nos está pensando. Deus é o limite do pensável. A esse título Deus é absolutamente incontornável. Nós não temos nenhum conceito que seja um englobante da experiência humana em geral a não ser que ela seja só simples reiteração do existente.
Há três anos sentiu-se mal no Convento da Arrábida e foi operado de urgência no Hospital de Santa Maria? A morte rondou por perto. O que é que sentiu?
Nada de particular. É engraçado. Nesses momentos, de grande gravidade, parece que a pessoa desmaia. Instala-se uma calma fantástica, de aceitação. Não há nada a fazer. A angústia é para as pessoas que estão de fora. A angústia é antes do penalty não é durante.
E Cristo não é algo com que se confronta?
Na educação que recebi na minha aldeia, Deus não é uma espécie de identidade abstracta. Cristo é o nosso acesso concreto a Deus.
Nunca se pôs a si próprio as palavras de Cristo na cruz: "Pai, Pai, porque me abandonaste?" Não é um mistério para si, como foi até ao fim da vida para Borges?
Sim, foi uma coisa que me marcou, mas já na faculdade. E soube que tinha sido algo que tinha tocado Lutero. Porquê? Porque essa é que é verdadeira morte de Deus - não é a de Nietszche nem da a Modernidade. A morte de Deus está nessa passagem e é a glosa de Lutero e de "A Paixão Segundo S. Mateus", de Bach. O impensável por definição.
Pedem-lhe textos sobre tudo e sobre nada: Descobrimentos, Eça, Pessoa, Camões, Iraque, América, Europa, Portugal - a lista é infindável e, às vezes, os temas de tão ridículos fica-se com a sensação que há da sua parte quase uma obrigação para responder aos desafios. Não se sente "a" vaca sagrada" da intelectualidade portuguesa?
Eu não me sinto mas pelos vistos tomam-me! Isso realmente é difícil para mim de assumir. Isso vem do facto da minha tragédia subjectiva: eu não saber dizer não.
Esse lado de "vaca sagrada" tem um outro lado irritante. Numa carta que para Jorge de Sena, escreve: "Tenho o dom raro de me tornar a suspeito a gregos e troianos que me perdoam mal os meus silêncios ou as minhas reticências ou as minhas adorações." Ou seja: hoje pode escrever tudo o que lhe dá na gana e ninguém lha atira uma pedra! E quando lhe atiram é de raspão, com paninhos quentes...
Às vezes atiram. Mas isso significa que esse tipo de coisas quer dizer que já estou fora do circuito.
Não parece: olhe aqui só o "JL" dá-lhe capa e 24 páginas. Espere pelas outras publicações: pelo PÚBLICO, "Diário de Notícias", "Expresso"...
... só faço 80 anos uma vez! Tenho uma relação com o tempo ontologicamente distraída. O tempo passa, acabou. Eu estou cansado de ter tanto tempo! Para mim talvez interessante seja que haja gerações mais novas que encontrem em mim alguma coisa de estimulante naquilo que escrevo. Isso é que é realmente a consolação das consolações.
Qual é o seu estatuto: a do intelectual? O "maître-à-penser" português? O António Sérgio dos nossos dias?
Tenho horror em etiquetar as pessoas. Sou um espectador interessado da vida...
... e interveniente! Já não é capaz de deixar passar as coisas sem dar opinião.
Obrigam-me a ter opinião!
O que é tem para fazer até ao fim? Qual é a sua agenda?
Precisava de ter outra vida. Tenho preguiçado tanto... Durante anos fiz uma "História das Ideias", em Espanha. Está tudo em francês. Mas não tenho paciência de pegar naquilo. Queria ter a possibilidade de publicar as lições que fiz em Providence, mas nada sem pressa. A minha mulher é que me castiga em relação ao tempo: "Esta coisa tem que ser feita." Eu não. Adiei eternamente o que tenho para fazer para não entrar na realidade. Só à força. A esse nível tenho sou o sabotador de mim próprio.
As coisas que faço são imperativas: se não fossem os pedidos que me fazem de fora e me sinto obrigado a responder, para não me envergonhar, porque prometi - eu não fazia nada. Eu nasci para não fazer nada! E é engraçado: nunca me aborreci. Se pudesse passava a vida a ouvir música.
Que música? Que compositores?
Bach, Mahler, Richard Strauss, Weber são muito. Mas a música é o máximo! O Orson Welles, no fim da vida, dizia que só via maus filmes. A justificação é fabulosa: "Porque nunca me desiludem." A grande música é o contrário e que pode aplicar-se à humanidade inteira: é aquilo que dá o sentimento do que é Deus.
Comove-se com a música?
Muito. A música é como um mar de Deus.
Publicará, ou deixará publicar, organizado, o seu diário?
Não, ninguém mete a mão naquilo até porque está numa desorganização enorme. Perco e encontro os caderninhos a uma velocidade... O Vergílio Ferreira, a meu respeito, dizia que eu não arriscava. E é verdade. Há sempre um tipo de risco que eu não fui capaz de tomar como, por exemplo, a "Conta-Corrente", que é uma coisa única na literatura portuguesa àquele nível.
A partir desse diário, que tem páginas de ficção pura, porque é que nunca escreveu um romance?
Quem é que não gostava de escrever? O romance tornou-se um mito cultural por excelência de uma cultura à qual pertencemos.
Tentou ao menos?
Não, risquei algumas ideias. Mas não tenho o sentido do concreto, dos objectos, das coisas, das plantas...
... mas há passagens do seu diário que são um autêntico romance. Lembra-se daquela mulher que sai do mar...
... isso era preciso que as musas se renovassem com uma frequência para dar 200 páginas (enorme gargalhada). Há um tempo para tudo. Veja-se o caso dos poetas: parece que há uma idade, entre os 17 e os 25 anos, para escrever a poesia. Se a pessoa não fez naquela altura não o faz aos 50. O romance talvez seja coisa uma coisa mais tardia. Na minha juventude, em 1943, quando o Carlos Oliveira publica "Casa da Duna" aquilo era um espanto. Não se estava à espera que saísse dali um autor. Para mim, de resto, um autor era um tipo que já tinha morrido. E agora, quando o José Carlos de Vascocelos foi a Vence, encontrei mais uns poemas. Ele disse-me: "Então porque não os publica?" Não, se não publiquei quando tinha idade para isso, agora essa hipótese está completamente afastada de todo. E no caso da poesia portuguesa há uma coisa extraordinária: há muitos e bons. Antigamente, era ao contrário: havia muitos e a maioria eram maus!
O seu Paris-Texas afinal de contas aonde é que é: Rio-Seco, Vence ou o mundo?
(Silêncio) Paris-Texas é um mito. É onde estou, onde acabei de estar. Durante muito tempo pensei que a França, Vence, sempre a vivia como uma coisa provisória - no dia seguinte, no ano seguinte sairia. Pensei que no 25 de Abril poderia vir para aqui. Não vim. Um dia, com 70, 75 anos a atravessar o sul da França dei a pensar comigo: "É espantoso, todos estes anos fora. Afinal, eu conheço melhor isto do que a minha pátria, a minha terra." Somos onde estamos, o que respiramos. A gente acaba por se tornar outro, quer queira quer não. Sou filho desse mundo que a princípio não me estava destinado. E mesmo esse diário se um dia for publicado terá um título - "A Casa Perdida".
A entrevista estava quase a chegar ao fim. Eduardo Lourenço nasceu com o início do século XX e já o viu morrer. A PÚBLICA propôs-lhe um desafio: que figuras tinham marcado o século XX. O autor de "Labirinto da Saudade", mais uma vez, não foi capaz de dizer que não... |
Qual foi a maior figura portuguesa do século XX?
(longo silêncio). Salazar, é incontornável até pelo tempo que ocupou. Mais do que um consulado foi um reinado. O país entrou nalguma modernidade, sobretudo nos primeiros anos. Depois não, como aconteceu aqui ao lado.
E internacional?
Roosevelt.
O grande artista nacional?
Almada Negreiros
Internacional.
Picasso.
O grande pensador português
Apesar de tudo, António Sérgio.
Internacional
Heidegger.
O grande escritor nacional.
Fernando Pessoa.
Internacional
Proust.
O grande livro nacional
"O Livro do Desassossego".
Internacional
"À Procura do Tempo Perdido".
O grande filme português
"A Caça", de Manoel de Oliveira.
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS
Eduardo ou a maravilhosa imperfeição
Quando havia razões para optimismo, ele surpreendeu-nos ao falar de uma Europa desencantada
VISÃO 29 de Maio de 2003
Eduardo Lourenço está de parabéns. A sua presença constante na reflexão sobre os acontecimentos, a literatura e a vida, sobre Portugal e a Europa tem constituído uma oportunidade para ultrapassarmos um atávico conformismo, uma tendência para nos ficarmos pela superfície das coisas e uma sistemática ilusão sobre os nossos males irremediáveis e sobre a fatalidade da história. Ainda que muitos se mantenham distraídos, o certo é que o ensaísta continua a interrogar-nos, com avanço sobre os acontecimentos e sobre o modo como poderemos responder aos misteriosos e exigentes estímulos perante os quais estamos confrontados. Em lugar de uma visão do País imaginário, encruzilhada de sonhos e de má-língua, Lourenço procura ser o camponês do Danúbio, com os pés assentes na terra – a dizer que tudo depende do que somos e do que queremos ser.
Trata-se de alertar contra a loucura de D. Quixote, uma das causas da decadência dos povos peninsulares, e do seu pequeno émulo D. Sebastião. Há dez anos, quando muitos julgariam que havia razões para optimismo, com a Europa a dar a sensação de uma caminhada irreversível e imparável, Eduardo Lourenço surpreendeu-nos ao falar de uma Europa desencantada.
A Europa era, de algum modo, vítima do seu próprio sucesso. Acabara a guerra fria, o império soviético desmoronara-se e havia novas expectativas e novas perplexidades a ditarem a sua lei. A fragilidade europeia estava à vista, provindo quer da dificuldade interna de superar contradições antigas quer de uma campanha externa persistente no sentido de não deixar o velho continente ser aquilo que desejaria ser.
Hoje percebemos por que motivo E. Lourenço nos mostrou esse incómodo cartão amarelo. Afinal, não poderíamos esquecer que haveria um momento em que os egoísmos regressariam contra os ideais e contra os que consideram não haver vacinas contra a barbárie, salvo estarmos humanamente de sobreaviso. Por excesso de memória, a Europa é uma realidade indefinida e indefinível, difícil de se encontrar. «Só se podem sentir desencantados aqueles que sabendo a Europa a que pertencem frágil na cena do mundo, por incapacidade de se constituir com um mínimo de coerência política, constatam que quarenta anos de sonho europeu não fizeram da Europa um mito para a consciência do cidadão comum da Comunidade Europeia», escrevia Eduardo Lourenço em 1993.
Agora, se uns pensam que estamos condenados colectivamente a uma existência medíocre, há razões para desejarmos uma autonomia estratégica centrada na defesa dos valores e interesses comuns e na compreensão de que será mau para o mundo uma Europa dividida ou entretida com as vaidades nacionais, tendo do outro lado do Atlântico os Estados Unidos embalados na ilusão pueril de que poderão contrariar um movimento inexorável e imperial de decadência cultivando a cizânia e o método da sobranceria, contra a velha ideia de Kennedy da «parceria entre iguais».
Com o fim do antigo mundo bipolar, tornámo-nos nómadas de uma história difícil de decifrar, em que os instrumentos se confundem permanentemente com os fins. Vem à memória a Cacânia de Musil ou o sonambulismo de Broch. Viveremos um novo «apocalipse alegre»? A globalização, os meios de comunicação de massa e as sociedades em rede tornam essa sombra inquietante, porque se projecta globalmente. Os aprendizes de feiticeiro atiçam os fundamentalismos e o terror, sob pretexto de os combater… As nações fecham-se, em lugar de buscar novos modos de partilhar vontades e destinos… Como diria o nosso ensaísta (Portugal como Destino, 1999): «Povo missionário de um planeta que se missiona sozinho, confinado ao modesto canto de onde saímos para ver e saber que há um só mundo, Portugal está agora em situação de se aceitar tal como foi e é, apenas um povo entre os povos. Que deu a volta ao mundo para tomar a medida da sua maravilhosa imperfeição.» Longa vida, querido Eduardo!
Páginas Inéditas do Diário
S. Pedro – Julho 1945 – Em minha casa, cada qual arrasta a sua ternura familiar numa solidão perfeita. E começo a dar-me conta que ninguém virá em nosso socorro. Um pudor total consome-nos os gestos antes de nascerem. Por isso, demonstramos um estilo irónico, uma maneira de fazer de conta que a ternura não existe, que vai até à agressividade. Por maior que seja a minha aplicação, meu pai nunca me deu a entender que está satisfeito comigo. Emprega circunlóquios divertidos de uma brevidade cortante para significar no máximo que não está descontente. E pelo meu lado um gesto tão natural como de beijar o meu pai ou a minha mãe, não vai nunca sem uma tentativa premeditada de o passar em claro.
Não sei como isto começou. Creio que os meus pais não puderam nunca vencer a reserva camponesa do mundo da sua infância. Ou então que não chegaram a ter tempo, tão dura a vida se lhes tornou pelo número de filhos, para a criação desse estilo de intimidade familiar, como é por exemplo o caso dos Axxx, aqui mesmo na nossa aldeia. Mas a verdade é que passei o tempo a estender braços inúteis para o silêncio deles, silêncio certamente consumido pelo mesmo amor por mim mas incapaz de sonhar o desastre em que minha alma se converteu. Temo que a melancolia da incomunicabilidade se tornou o sinal distintivo da minha vida e que a solidão familiar que me habita como esse anel de fogo se torne inextinguível.
Às vezes imagino que tudo foi jogado de antemão na nossa infância. Que a partir duma certa hora, e essa é a descoberta da nossa radical solidão, o resto é já repetição. O que acontece é haver vidas que não chegam a estar sós. Mas agora que conheço a mistura exaltante de fins e amargura que a solidão nos concede, eu creio bem que não lamento o deserto familiar onde ela nasceu. A solidão é uma preferência.
Talvez nós não tenhamos finalmente senão aquela pele que secretamente desejávamos ter. Ou que seja apenas um lugar comum mal examinado pensar que merecíamos um destino diferente daquele que encarnou em nós. Tudo parecia disposto em minha casa para não tornar possível este escândalo que eu sei ser. E contudo, examinando-me bem parece que tudo concorreu igualmente para que eu seja esse mesmo escândalo.
Desde há anos a minha solidão familiar não é apenas o reflexo do silêncio dos meus pais. É a sombra que a minha vida equívoca projecta na vida dos que me são queridos. Sou eu que os defendo de mim. Porque eu suporto bem o ar rarefeito da culpa e do afastamento da fé em que presentemente vivo. Mas não suporto – e resta-me saber se por vergonha minha se por amor deles – a ideia dum reflexo nas suas vidas.
Aos dezasseis anos era uma afirmação pretensiosa a de ter perdido a Fé. Chego a achar isso tão ridículo que não tive ainda a coragem de o confessar a ninguém. Mas é um facto. A corrente centenária de uma vocação familiar partiu-se misteriosamente nesta miséria que leva o meu nome. Na última Páscoa levei a cabo toda uma comédia para falhar pela primeira vez um acto que cumprido como desejaria minha mãe, seria o sacrilégio mais raro. Foi o último acto duma existência hipócrita, envenenado por um amor monstruoso incapaz de ferir no rosto.
Meu pai está longe e como todos os homens acarreta uma solidão pessoal que lhe vela a dos outros. Mas minha mãe que me observa e me conhece como ninguém mais, suspeita sem poder acreditar a minha frieza religiosa. Infelizmente considera-a sem nenhuma espécie de simpatia. O seu amor por mim é tão cego que não pode crer a sério que o seu filho não creia em Deus. O que é espantoso é que ao mesmo tempo que endurece uma tal fé em mim torna-se funda ainda a consciência da minha amargura e por amor dela não só desejo que uma graça volte de novo como chego a crer que não me tenha abandonado de todo. Neste corpo a corpo com a misteriosa fé de minha mãe em mim parece residir hoje o essencial do doloroso debate da minha alma onde o rosto familiar de Jesus perdeu os traços de Deus. Ou o Deus impensável perdeu os traços do Jesus acessível.
JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – Ano XXIII, n.º 851, 14 a 27 de Maio de 2003
S/d, presumivelmente em 1950, dado que a mãe morreu em 1948.
Não enterramos os mortos. Sejamos mais humildes, são os mortos que se enterram em nós. Uma certa noite, o sentimento nauseante de desamparo em que chegaríamos a procurar um certo conforto porque ele nos fazia único e era um argumento implacável contra esse pedido de contos que alguém parece apostar em exigir, abandona-nos como uma sombra. E na manhã seguinte regressamos à velha pele do Adão sem mortos, à superficialidade incolor das horas quotidianas.
Há dois anos que a minha mãe morreu. Há um ano que o meu pai morreu. E na obscura trivialidade das impressões epidérmicas instalou-se de repente, sem eu dar conta, alguma coisa que está para a sensibilidade como o vazio divino para os místicos. Aceitei hoje os meus mortos. O anjo enjoou-se de lutar comigo e abandonou-me.
JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – Ano XXIII, n.º 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Por COIMBRA 13.09.53
Tudo quanto toquei me formou e deformou. Como um búzio desejei guardar o mar dentro de mim. De todas as experiências, a que me marcou mais fundo foi a da literatura. Nunca fui leitor de um só livro. Isto não é um elogio. É uma verificação e uma melancolia. Seria impossível para mim mesmo estabelecer qualquer hierarquia entre as influências sofridas. Foram inumeráveis, constantes e contraditórias. Durante muitos anos pensei que isso me incapacitasse para chegar a ver claro, e por mim mesmo, o fundo das questões que importam na vida. Tive medo que se cumprisse o vaticínio da cristã fervorosa e simples que era minha mãe: "leste tanto que treleste". Nem ela sabia até que ponto a sua lucidez materna acertava no alvo. Creio que, apesar de tudo, no fundo do seu coração, não o acreditava. Eu debatia-me numa torrente onde nenhum amor me podia socorrer. Apesar disso nunca perdi a esperança de encontrar uma saída para a confusão e o tumulto desse mundo escrito que pouco a pouco trocara pelo mundo real.
Seria cego se pensasse que encontrei por fim essa saída. Todavia já não me sinto perdido como me sentia. De uma forma misteriosa para mim mesmo o caos de todos estes anos lidos foi-se organizando e agora o tumulto das coisas, das ideias, dos acontecimentos, das opiniões e dos valores, em vez de me arrastar após si, permanece em frente do meu espírito. Posso tocá-lo, compará-lo, colocá-lo aqui e ali, pondo à distância. Em suma, pareço um pouco mais o dono dele e posso apascentá-lo como o incomparável Caeiro ao rebanho dos seus pensamentos.
O que se passou ao longo destes anos da minha educação foi talvez mais simples do que eu imaginara. Falei de influências e nada mais exacto. A verdade é um pouco diferente. Fui durante muitos anos, na infância e na adolescência, uma argila moldável mas nunca me assemelhei à cera. O fogo endureceu-me, não me dissolveu. O meu inimigo mortal, cedo o suspeitei, foi o amor. Ele me destruiu antes que a vida, com o seu tormento misericordioso, me tocasse. Sem os livros onde se ama e se é amado por procuração, o meu destino teria sido o da estátua de sal, com o deserto de amor à minha volta. Com os livros foi o de um labirinto atapetado de olhares familiares que, como nos sonhos, piedosamente me assassinam.
Grenoble, 1961
Domingo, 16 de Julho. A rádio debita uma das mais escandalosas palavras do evangelho: a do intendente, do gerente desonesto. Nietzsche devia cair de joelhos diante desta provocação. Lutero que ele não amava (ou invejava, em Nietzsche é a mesma coisa) compreendeu o paradoxo desta parábola. Não é na epístola aos Romanos que o mistério da Graça é mais luminoso e denso. É neste conto popular onde se louva o capataz desonesto por ter sabido a tempo fazer amigos com o dinheiro do seu patrão e senhor. É outra versão da parábola dos talentos, do operário da undécima hora, do filho pródigo, só mais "escandalosa" na forma. O Mestre, e só ele, é o juiz ou anti-juiz da nossa finita justiça que ele inverte ou destrói para que a verdadeira floresça, mesmo em nós, capatazes desonestos dos dons que nos foram confiados. Ao serviço dos Outros para quem eles se destinam os nossos dons mesmo desonestamente administrados criam a verdade que neles existe. Com dinheiro que não é nosso - e nenhum o é - dá-lo aos outros é o único uso dele. Este desvio nos será perdoado, mesmo se feito na aflição, com a corda na garganta, depois de ter passado a vida a gastar connosco o que não é nosso. Aliás, a dívida de credores, a miséria dos outros que nós tardiamente tentamos remediar para nos conciliar os seus favores, que outra coisa é que original má administração nossa? A vinha do Senhor é uma só. Pela escada dos outros e de todos entramos no único céu que nós merecemos. A tardia justiça do gerente desonesto é uma parcela do Bem comum restituído, mas é "bem" e por isso na parábola se diz que agradou ao Senhor. É curioso como a mitologia popular soube dar corpo a esta verdade escandalosa, através dos Fra Diavolo e dos Rafles, bandidos generosos e distribuidores de uma riqueza mal administrada. Como na Parábola, os leitores, senão Deus mesmo, lhe perdoam.
Vence. Verão de 73.
Pouco a pouco tornaram-se mais jovens do que eu. Custa-me às vezes recordá-los como pais. Esta súbita juventude deles vai mudando por dentro a cor de uma tristeza que supunha e é sem cura.
Pressinto o dia em que a corrente se inverterá e que serão eles que se entristeceram por mim. É como se viajássemos em ascensores paralelos, em sentido inverso e nos cruzássemos com uma doçura silenciosa, como nos sonhos. Por um pouco as nossas mãos podiam tocar-se de novo. Os nossos rostos parecem impressos nos vidros foscos da cabine. Nós sabemos que nos olhamos de dois tempos diferentes que se dizem adeus num silêncio que já vinha a caminho antes de eu nascer. Próximos, intocáveis, não jovens, mas mais jovens do que eu, disparado numa carreira parada que os deixa atrás de mim, sempre com quarenta e poucos anos, praticamente sem morte.
PÚBLICA, 26 de Maio de 2003
Vence – 16 Março 92 - Quase nunca vivemos realmente grandes momentos de verdadeiro cinema, instante efémeros de pura mágoa. Por uma razão o não estão nos filmes. Lembro-me de três minutos sublimes de Ingrid Bergman diante da câmara no instante em que se submete ao seu exame de actriz, inocente e bela como um sonho. Como se olho de Deus expusesse em plena luz o anjo de onde a copiou e que a heroína de Casablanca nunca mais será.
Todos os seus filmes por esse três minutos.
JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – Ano XXIII, n.º 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Vence – 16-5-92 - Começamos a existir quando se repara na nossa ausência. Em geral, tarde. Em Portugal, nunca.
JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – Ano XXIII, n.º 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Vence – 28-9-92 - Nos grandes momentos da nossa vida – nos graves, sobretudo, está-se só. É costume, romanticamente, depluar essa solidão. Mas ela é uma bênção. Sem ela não saberíamos nunca quem éramos. A nossa solidão é o nosso bilhete de identidade tirado nos arquivos de Deus. O pior é imaginar que nenhum Deus teve a caridade de nos passar tão sublime bilhete.
JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias – Ano XXIII, n.º 851, 14 a 27 de Maio de 2003
Vence, Dezembro 1995
É natural e tornou-se mesmo um "cliché" considerar o cinema como uma fábrica de sonhos e seria excesso de originalidade negar uma tão universal opinião. Mas a natureza onírica do cinema ou da sua função é de algum modo oposta ao onirismo se de onirismo se pode falar, conatural à literatura. No homem como espectador, no homem como cinema o sonho é-lhe exterior, está diante dele como um duplo do real, oferece-lhe sem custo uma vida literalmente sobrenatural que só as antigas fantasmagorias das visões transcendentes exprimiam. Se em algum lado Deus - o Deus a que se vinculava a representação de um sobrenatural de que a visão de Dante é o paradigma sublime - realmente morreu, foi no cinema, disneylandia acessível ao infantilismo imanente ao imaginário moderno. Não morreu na literatura nem naquela que ostensivamente proclama a sua morte ou glosa como se Deus fosse uma cópia imperfeita do Molly de Becket e sua interminável agonia. Na aparência nada pode ser comparado ao efeito de "verdade", à consubstanciação na imagem e da vida ou antes, na cena que nos inventava uma nova espécie de humanidade. Aquela que com o cinema e pelo cinema sarava, sem o saber ou sentir, as agressões pouco oníricas da realidade. Talvez porque o cinema não seja já esse ópio sublimante da vida mas nostalgia dele, cinema que recicla a sua própria memória como se fosse literatura, a humanidade jovem consome, sem mediação, a droga dura através da qual não repudia apenas a sociedade que a cerca, mas se recusa a entrar na vida como anti-sonho.
Vence 22.02.000
Devemos falar de nós como se estivéssemos mortos. Para ter a sorte de algum dia parecermos vivos. Ao menos por comparação com essa morte que nunca contemplaremos. Se a contemplássemos saberíamos então o que é "estar morto". Mas mesmo então não saberíamos o que é ser morto.
Macau, sem data
Em toda a parte onde estivemos queremos sair ficando. É lusitanamente canónico. Mais ainda daqueles sítios onde nem fomos ultimados a fazer as malas. Nunca ou raras vezes fomos de torna-viagem. A viagem fez-se porto e nele fundeámos. Em Macau de maneira diferente de todos os outros pedaços do que para nós chegou a ser um todo mesmo em forma de arquipélago. Agora só o será na memória. Diversa segundo os tempos e as estações.
Entramos na idade da Internet. Próxima etapa: falar directamente com Deus. O que nós fazemos desde que falamos.
Lido hoje: o bisneto de Estaline, o humanista perfeito, quer fazer um filme sobre seu pai que o imortal ex-pai dos povos não quis resgatar das mãos dos nazis trocando-o por Von Paulus. Não se troca um soldado por um general terá dito o Marechal Estaline. Como um vulgar General Moscardo.
Gosto de todos os lugares onde me senti só: Hamburgo, Bruxelas, Baia. Para me compensar de não ter morrido na Antártida como Scott, o meu primeiro herói abandonado de Deus, dos homens, enterrado vivo num deserto de gelo do tamanho do mundo. Mas a solidão só redime quem a buscou.
22-7-00
Há algo mais doloroso do que aceitar que os jovens nos embalsamem. John Mc Enroe - um velho (de quarenta anos...) e um génio do ténis - infligiu essa dor a dois jovens jogadores da Copa Davis seus treinadores. Não é raro em outros desportos nas no ténis deve ser único. E na literatura, sem exemplo.
PÚBLICA, 26 de Maio de 2003
Bilhete de Identificação
1923
Eduardo Lourenço de Faria nasce a 23 de Maio, em S. Pedro de Rio Seco, concelho de Almeida, distrito da Guarda.
1944
Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas ao mesmo tempo que inicia colaboração, na revista "Vértice", com um poema: "Aceitação".
1949
Publica "Heterodoxia I", com apenas 26 anos.
1954
Casa com Annie Salomon, em Dinnard, na Bretanha.
1960
Leitor de português, a convite do Governo francês, na Universidade de Grenoble.
1966
Adopta o seu filho Gil.
1973
Sai "Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente" (Inova).
1975
Recusa - a convite de Vítor Alves - ser ministro da Cultura ao mesmo tempo que fixa residência em Vence.
1978
Sai a primeira edição do seu livro mais conhecido: "O Labirinto da Saudade - Psicanálise Mítica do Destino Português" (Dom Quixote)
1984
Número especial da revista "Prelo", Imprensa Nacional-Casa da Moeda (IN-CM) onde são publicados fragmentos do seu diário inédito. "Vence, 23 Maio 73. 50 anos. No silêncio mais completo. (...) 50 anos: espelho que volto com lentidão para mim e onde não vejo ninguém. Só eu me sei o Ulisses de tão desastrosa aventura."
1985
Integra a Comissão Nacional da candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintasilgo. Na segunda volta, apoia Mário Soares contra Freitas do Amaral.
1986
Vem a lume na IN-CM, "Fernando, Rei da Nossa Baviera".
1988
É distinguido com Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon, pelo conjunto da sua obra.
1989
Professor jubilado na Universidade de Nice. A convite do então primeiro-ministro Cavaco Silva, torna-se Conselheiro Cultural da Embaixada de Roma.
1992
Recebe a Ordem do Infante D. Henrique (Grande Oficial).
1996
É distinguido com o Prémio Camões.
1998
Com "O Esplendor do Caos" a Gradiva começa a reeditar toda sua obra.
2002
A França condecora-o com a Legião de Honra, no grau de Cavaleiro.
2003
A 23 de Maio celebra 80 anos com uma homenagem em Coimbra, onde é apresentado "Tempos de Eduardo Lourenço - Fotobiografia" (Campo das Letras).