10-6-2015
Ainda sobre Damião de Góis
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A biografia de Damião de Góis continua a estar cheia de sombras, provindas
sobretudo do processo que lhe foi movido pela Inquisição e que, sem dúvida, lhe
apressou a chegada da morte.
Outra falha também grave é o aproveitamento que alguns historiadores fazem das
suas declarações no processo. Ora estas não podem ser fiáveis pois o que
ele quer é defender-se e não propriamente dizer apenas o que é verdade.
É possível que as minhas ideias vão chocar quem me lê, mas acho ter boas razões.
Damião de Góis esteve na Corte desde os 10 ou 11 anos até aos 20 ou 21. Ali terá
aprendido sobretudo música, pois André de Resende chama-o “Músico” no primeiro
poema que lhe dedicou. Possivelmente deverá ter aprendido algum Latim, embora
ele dissesse que só o começou a estudar em 1529.
Morto D. Manuel em 1521, foi ele enviado, talvez em 1523, para Antuérpia como
escrivão da feitoria, de que era feitor João Brandão. Este foi substituído em
1525 por Rui Fernandes de Almada, que já era ali escrivão quando lá chegou
Damião de Góis. Com Rui Fernandes de Almada vivia um seu sobrinho dele, Martim
Ferreira, chamado em Latim Martinus Ferraria ou Martianus Ferraria,
que André de Resende diz ter sido “poeta” e “soldado”.
Nunca faltou dinheiro aos que trabalhavam na feitoria. Rui Fernandes de Almada
vivia bem. Mesmo sem funções definidas, o sobrinho referido viu André de Resende
dedicar-lhe obras de mérito como Vincentius Levita et Martyr e Epistola
de vita aulica, sem esquecer dois pequenos poemas que vêm no final desta
última. Estas dedicatórias eram muito caras pois implicavam também pagar as
despesas da impressão da obra. Aliás foram escritas numa época em que André de
Resende passava por graves dificuldades financeiras, pois fora expulso do
Convento onde estava alojado em Lovaina, depois de insultar o Superior no poema Erasmi
Encomium. O tal sobrinho era muito vivaço: ofereceu um pote de fruta
cristalizada a Erasmo e, por isso, é mencionado nas cartas 2511, 2530, 2552,
2559, 2585 e 2593 de Erasmo, embora nunca tenha sido recebido por ele; perdeu-se
a carta que ele dirigiu a Erasmo com o pote.
Damião de Góis abandonou praticamente o trabalho na Feitoria no final de 1531.
Pelo que fez depois, vemos que saiu de lá muito, muito rico. E certamente não
enriqueceu apenas com o salário que lhe era pago. Podemos assim concluir que ele
meteu a mão na bolsa da Feitoria. Aliás, ao contrário do que já se escreveu,
nenhuma missão diplomática lhe foi confiada.
O sinal mais evidente da riqueza dele é que desde então até ao seu regresso
definitivo a Portugal em 1545, não exerceu mais nenhuma actividade económica.
Pelo contrário, fez despesas de montante significativo. Recebia lições
particulares de Cornélio Grapheus e pagou muitas despesas de tipografia a
Rogério Réscio. André de Resende dedicou-lhe cinco poemas, mais tarde publicados
nos Aliquot Opuscula; estes poemas seriam bem pagos, até pelas
necessidades que tinha André de Resende. Pouco mais tarde também lhe dedicaram
livros, Sigismundo Gelénio (História Natural de Plínio) e Justo Velsio (De
insomniis), dos quais ele certamente pagou ou ajudou a pagar a impressão.
Foi estudar para Pádua e arrendou uma casa com dois estudantes (Splinter van
Hargen seu futuro cunhado e Joachim Polites ou Burgher )e nela tinha criados.
Disse a Erasmo que tencionava contratar um professor, Lazaro Buonamici, para lhe
vir dar lições em casa. Erasmo considerou a ideia extremamente petulante e
disse-lhe com diplomacia: “Não sei se ficará bem onerar Lázaro, longevo e de
grande reputação, com lições particulares”. (tradução do Prof. Amadeu
Torres) (Carta B-XXXVII – n.º 2987, de 11-1-1535).
Em casa de Erasmo, tomou a iniciativa de gratificar um empregado dele com 12
bázios, uma quantia apreciável: “In cena addidi illi 12 batzones, tantundem
dederat Damianus” - Na ceia, acrescentei-lhe 12 bázios; outro tanto lhe dera
Damião (tradução minha, diferente da do Prof. Torres). (Carta B-XXXVIII – 2997,
de 21-2-1535) [1]
Já em Itália, Damião de Góis passeou pelo País, esteve por largos períodos em
Veneza e fez viagens à Alemanha. Certamente gratificou os companheiros que lhe
dedicaram poemas. Mandou imprimir três livros: Eclesiastes (Veneza
– Stenão Sábio – 1538), Catão Maior ou da Velhice (Veneza – Steuano Sábio –
1538) e Aliquot Opuscula (Lovaina - Rutgero Rescio - 1544).
Quando Erasmo faleceu, escreveu ao testamenteiro Bonifácio Amerbach,
oferecendo-se para financiar a impressão das obras de Erasmo. Desistiu quando
viu que Amerbach só aceitaria o dinheiro, mas nunca o deixaria dirigir a edição.
Aliás Amerbach publicou o livro comemorativo do óbito com a lista das obras, sem
nada lhe dizer.
Entretanto, Damião de Góis foi comprando muitas obras de arte, que depois trouxe
para Portugal.
Tudo isto representa muito dinheiro e não é seguro que a esposa levasse para o
casamento um dote muito elevado.
Aliás, em 16-8-1534, ao recomendá-lo ao Cardeal Pedro Bembo, escreveu Erasmo:
(Damianus)"Est enim assuetus vitae lautiori, tametsi sobrius est"-
"Está acostumado a vida um tanto lauta, apesar de ser sóbrio"(tradução do Prof.
Amadeu Torres). Prefiro esta: "Está acostumado a vida sumptuosa, apesar de ser
sóbrio" (Carta B-XXX - 2958,de 16-8-1534).
A vinda a Portugal em meados de 1533
Por volta de Julho de 1533, Damião de Góis foi mandado vir a Portugal, tendo-lhe
sido dito que seria convidado para ocupar o cargo de Tesoureiro da Casa da
Índia, que era o Banco de Portugal da época. Passou por Paris onde encontrou Fr.
Roque de Almeida e veio para Lisboa. Não deverá sequer ter falado com o Rei. A
certa altura, deu conta que a chamada era uma ratoeira, e fugiu a sete pés em
direcção a Santiago de Castela.
Esta versão dos acontecimentos (que não coincide com as declarações no processo)
resulta em parte do prefácio ao seu livro Cato Maior, ou da Velhice, onde
escreveu : “Visto que em dezasseis anos (da força e flor da minha idade),
quatro meses somente quis minha sorte estar nesses Reinos, e corte, lugar de
minha honra e criação, o que menuziando a fortuna, logo me daí rechaçou. “
Mais tarde, quando já tinha decidido partir para Itália, escreveu a Erasmo uma
carta que não chegou até nós. Sobre o assunto refere Erasmo na
carta B-XXV-2944, de 11 de Junho de 1534, dirigida a Schets: “Litteras quas
Damiani causa miseras accepi" - Recebi a carta, que enviáreis por causa de
Damião. Ego semper putavi illum cum bona gratia suorum reliquisse
patriam. Suasi tamen ut obtemperet amicorum consiliis, quod facturus est. - Eu
sempre supus que ele tivesse deixado a pátria com boa graça dos seus.
Aconselhei-o, no entanto, a obedecer aos conselhos dos amigos, o que aliás vai
fazer”(Tradução do Prof. Amadeu Torres) [2].
Não chegou até nós a carta aqui mencionada.
Não há dúvida que o cargo na Casa da Índia era uma balela qualquer, um pretexto
para que ele viesse realmente a Portugal. E entendo eu sem presumir muito que
queriam que ele prestasse contas do que tinha tirado na caixa da Feitoria.
Vejamos agora o que ele declarou no processo. Não acredito que o Rei o tenha
recebido, muito menos que o Rei quisesse convidar Erasmo para ensinar em
Portugal. Quem falasse em Erasmo em Portugal, era logo tomado por herege.
Aliás, Erasmo nesta altura já estava velho e doente, não teria forças para vir
para Portugal.
São estas as declarações de Damião de Góis no processo em que falou no assunto:
fls. 50 v.
"(…) e estando ali (em Lovaina), foi chamado por sua Alteza e se veio a este
Reino onde sempre viveu muito catolicamente fazendo tudo o que fazem os bons
cristãos; e el-Rei nosso senhor que está em glória o quisera fazer tesoureiro da
casa da Índia e para isso o mandou chamar a Lovaina e ele se escusou disso o
melhor que pôde e por sua Alteza o não haver por escuso, por se despedir dele,
lhe pediu licença para ir a Santiago e ele lha deu e de lá lhe escreveu uma
carta que se ia estudar e se foi ter onde estava Erasmo que foi no ano de trinta
e quatro e ali esteve e pousou com ele por espaço de quatro meses, pouco mais ou
menos (…)”
fls. 99
“Depois
que vim a Portugal no ano de 1533, chamado para o ofício de tesoureiro da Casa
da Índia, El-Rei que santa glória haja, e os Infantes seus irmãos, e outros
senhores do Reino, me perguntaram com muito gosto, e mui particularmente pelo
discurso de minhas peregrinações, falando-me em Lutero e nas coisas da Alemanha,
Reis e príncipes dela, e por El-Rei que santa glória haja saber que vira eu já
Erasmo Roterodamo e que éramos amigos me perguntou por algumas vezes se o
poderia eu fazer vir a este Reino para se dele servir e isto à tenção de o ter
em Coimbra, onde já tinha ordenado de fazer os estudos que fez, ao que lhe
respondi o que disso me parecia (…)”
fls. 99 v.
“Depois
de eu vir a este Reino no ano de 1533, como já tenho dito, por me El-Rei que
santa glória haja não querer escusar do ofício de Tesoureiro da Casa da Índia,
de que a Rainha nossa Senhora e o Cardeal são boas testemunhas, eu me fui desta
cidade de Lisboa de Romaria a Santiago de Galiza, donde escrevi uma carta ao
dito Senhor, que sua Alteza tomou bem (…)”
Damião de Góis cai nas mãos dos franceses
Por volta do início de 1539, Damião de Góis casou-se com a irmã de seu amigo e
companheiro de Pádua, Joana Van Hargen, que não teria ainda 18 anos. O casamento
foi festejado com uma poesia do poeta Alard d’Amsterdam (1491 – 1544).
Nasceram-lhe três filhos na Holanda, Manuel, Ambrósio e António. O
primeiro casou na Flandres com Francisca Duval e ainda hoje há lá descendentes.
Entretanto, continuava a frequentar a Universidade de Lovaina e não tinha
qualquer vontade de regressar a Portugal.
O destino trocou-lhe as voltas. Em Julho de 1542, tropas francesas sob o comando
de Martin van Rossen invadiram Lovaina. Os estudantes buscaram armas para se
defenderem, mas depressa se viu que era preciso negociar e pagar aos franceses
para se retirarem. Em nome da Academia, foi Damião de Góis e o Pretor
conferenciar com os franceses; nessa altura, houve uma escaramuça com as tropas
francesas e os franceses recuaram levando Damião de Góis e o Pretor,
prisioneiros. Foi muito complicado negociar a libertação de Góis e teve de
haver intervenção diplomática do Rei D. João III, tal como refere seu cunhado na
carta B-XCV, dirigida em 3-3-1543 ao Cardeal Cristoforo Madruzzo. Por
isso, quando o Rei lhe ordenou que regressasse a Portugal, Damião de Góis já não
pôde dizer que não e reentrou no País em 1545, como também declarou no processo:
”(…) o qual Senhor (o Rei), no ano de 1545 e assim a Rainha Nossa
Senhora me mandaram chamar por suas cartas, escrevendo-me que me viesse logo a
este Reino com minha mulher, casa e filhos, porque era para se de mim servirem:
o que logo fiz com muita diligência, vindo eu pela posta e minha mulher por
jornadas, e minha casa e filhos por mar, no que despendi mais de mil e
quinhentos cruzados: (…)”. A diligência é que não foi muita, porque ele
ainda tentou convencer o Rei a deixá-lo ficar na Flandres.
Quem mandou instaurar o processo de inquisição contra Damião de Góis
Damião de Góis foi condenado pela Inquisição como luterano. Mas todos dizem que
Damião de Góis foi acusado por aqueles que lhe queriam mal. As denúncias
principais, do P.e Simão Rodrigues, da Companhia de Jesus, eram de 25 anos
atrás. Quem as mandou buscar, quem deu ordem à Inquisição para arranjar
testemunhos contra ele, tinha-lhe raiva por qualquer outro motivo. Já se
disse que foram os fidalgos afrontados com o tratamento que ele lhes dera na
Crónica de D. Manuel I, ou o próprio Cardeal D. Henrique, por se ver maltratado
na mesma Crónica (mas o Paço mandou emendá-la).
Tenho uma opinião diferente. Em 20 de Janeiro de 1568, ao perfazer 14 anos (!),
D. Sebastião atingiu a maioridade para ser Rei. Damião de Góis dirigia a
Torre do Tombo, com uma idade já muito respeitável para aquele tempo. D.
Sebastião esvaziou o Paço da Alcáçova por querer ir para lá morar. Mas era ali
que se encontrava o Arquivo da Torre do Tombo. D. Sebastião mandou entregar a
Góis 60 caixas com documentos e pediu-lhe que fizesse uma relação completa dos
documentos contidos em cada uma, com referências para poderem ser encontrados
com facilidade. Poucos dias depois, pedia-lhe mais documentos, ou cópias deles,
ou ainda cópias autenticadas por Notário. O inventário das caixas tardava,
mas do Paço continuavam a pedir-lhe mais documentos. A certa altura, o Rei deixa
de lhe escrever e manda-lhe pedir documentos por Miguel de Moura. Também o manda
entregar documentos a certas pessoas.
D. Sebastião teve fama de colérico. Acho muitíssimo provável que, a certa
altura, os atrasos de Damião de Góis tenham provocado a ira do Rei. Os
elementos do Conselho Geral do Santo Ofício integravam o Conselho de Estado e
então é muito provável que se lembrassem das denúncias do Padre Simão Rodrigues
25 anos antes.
Outra razão para este ponto de vista é que já fora o Rei a decidir o relaxe do
“luterano” Manuel Travaços em 28 de Janeiro de 1571 noprocesso
n.º 10259, da Inquisição de Lisboa. De facto, constata-se no processo
que a decisão foi de alguém acima do Cardeal D. Henrique Inquisidor-Geral. Só
podia ser o Rei. O Inquisidor Simão de Sá Pereira pôs-se de fora,
retractando-se da sua anterior opinião no sentido do relaxe, quando viu o
caminho que as coisas tomavam.
D. Sebastião odiava ainda mais os luteranos do que os mouros; e tolerava os
cristãos novos porque estes tinham dinheiro para lhe emprestar.
Já vi escrito que D. Sebastião quis ir morar no Paço de Alcáçova, para ser o
primeiro a avistar os barcos dos luteranos quando viessem invadir Portugal.
Deve, por isso, ter ficado muito exaltado quando lhe disseram que o seu
Arquivista-mor tinha ou tivera laivos de luterano, ao mesmo tempo descontente
pelo modo como ele desempenhava a função.
Esta seria a ligação entre os dois processos, tal como escreveu o Cónego Isaías
da Rosa Pereira, mas a conexão não seria no âmbito inquisitorial, mas sim na
vontade do Rei menino.
[1] “Au
cours du repas du soir, j’ajoutai 12 batzer, et Damien lui en avait donné tout
autant",
tradução francesa da edição belga da Correspondance, abaixo citada.
[2] "J'ai
reçu la lettre que tu m'as envoyée concernant Damien. J'ai toujours pensé qu'il
avait quitté sa famille en bons termes avec les siens. Je lui ai néanmoins
conseillé de suivre les avis de ses amis ce qu'il se propose de faire",
idem.
TEXTOS CONSULTADOS
Damião de Góis, Correspondência Latina, Portugaliae Monumenta Neolatina, vol.
IX, estabelecimento do texto latino, introdução, tradução, notas e comentário de
Amadeu Torres, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009, ISBN
978-989-26-0006-2
Desidério Erasmo (1469-1536), Opus Epistolarum Des. Erasmi, denuo recognitum et
auctum per P. S. Allen, Oxonii, in Typographeo Clarendoniano, imp. 1992, 12
vols.
Online: www.archive.org
(Edição inicial, 1906 e ss.)
La Correspondance d'Érasme, traduction intégrale
en 12 volumes, sous la diréction d’Aloïs
Gerlo et Paul Floriers, Presses Académiques Européennes, Bruxelles, 1967
–
1984
Guilherme João Carlos Henriques (da Carnota), Inéditos Goesianos, 2 vols. Arruda
Editora, 2002, fac-simile da edição de 1896, ISBN 972-97540-2-0, 972-97540-3-9