10-05-2015
O mito da correcção jurídica dos processos da Inquisição
NOTAS PRÉVIAS
1 - Como faço sempre, considero a Inquisição apenas como a instituição que perseguia os cristãos novos, ignorando o resto. Sem eles, não existiria Inquisição.
2 - Para simplificar, cito o Regimento de 1640 com três números romanos: o primeiro indica o livro, o 2.º, o título e o terceiro o parágrafo.
Ouve-se dizer por todo o lado, mesmo a detractores da Inquisição, que os processos da Inquisição eram bem elaborados nos aspectos formal e jurídico. É uma ilusão perigosa, porque pode levar a aceitá-los como “justos”. Na realidade, o que aconteceu foi que esse “aperfeiçoamento” formal se tornou necessário para que a Inquisição durasse 285 anos.
De facto, no início da Inquisição encontramos condenações baseadas em meros indícios, de que se concluía que os cristãos novos eram “judeus” no coração e por isso hereges e passíveis de ser castigados até mesmo com o patíbulo. Como é evidente, tais afirmações não têm qualquer amostra de base jurídica. Era nessa altura que se dizia nos assentos que os réus judaizavam (ou eram judaizantes), terminologia que não podia definir a heresia e que foi rapidamente abandonada. Como tenho dito, foi retomada de modo muito desajeitado pelos historiadores do séc. XX.
Entretanto, com o passar do tempo, houve necessidade de fundamentar melhor as condenações, baseando-as em denúncias de declarações de judaísmo em forma. Que estas fossem verdadeiras ou falsas, era coisa que pouco interessava, ficavam escritas no processo e isso era quanto bastava.
Entretanto, os próprios Regimentos, por detrás de uma certa lógica jurídica, têm perversidades conducentes não à realização de uma qualquer justiça, mas sim à sistemática condenação dos réus. Estão cheios de “truques” simulando a imparcialidade do processo, mas esta não resiste a um exame um pouco mais aprofundado.
Dos quatro Regimentos da Inquisição (1552, 1613, 1640 e 1774), deixarei de lado o primeiro e o último. O de 1552 tem já o desenho essencial do funcionamento, mas o processo ainda evoluiu bastante depois dessa data, nomeadamente com a instituição do Conselho Geral em 1570. Quanto ao de 1774, representou apenas uma manobra do Marquês de Pombal para pôr a Inquisição ao serviço da Corte e dos desígnios políticos do poder.
O Regimento de 1613 é quase completo na substância, enquanto o de 1640 mais perfeito na forma: ao fim e ao cabo, limitou-se a prescrever quase o mesmo de um modo mais organizado.
A falácia maior – Os testemunhos dos parentes mais chegados têm maior fiabilidade.
A ideia peregrina de que são mais verdadeiras as denúncias feitas por parentes mais chegados – filhos, pais, irmãos – vem já do primeiro Regimento de 1552, no Capítulo X:
É grande sinal de o penitente fazer boa e verdadeira confissão, descobrir outros culpados dos mesmos errores, especialmente sendo pessoas chegadas e conjuntas em sangue e a que tenham particular afeição, além das outras coisas que se requerem para se ter a confissão por boa e verdadeira.
No Regimento de 1640 está escondida e pressuposta em IV,IV,II:
Com que prova se procederá a prisão
IV. Declaramos que, para os Inquisidores decretarem que alguma pessoa seja presa, é necessário preceder tal prova, que razoadamente pareça bastante para se proceder por ela a alguma condenação, e não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada; salvo se for marido, ou mulher, ou sua parenta dentro do primeiro grau de consanguinidade contado por Direito Canónico.
Se para prender uma pessoa basta o testemunho de uma só pessoa desde que seja parente chegado, é porque realmente se considera que esse testemunho é mais valioso, tem bases para ser verdadeiro. Incluem-se também os irmãos, por se referir a contagem dos graus segundo o Direito Canónico, pois os irmãos são do 2.º grau de parentesco, em face da contagem usada no Direito Civil, mas do 1.º grau segundo o direito canónico.
O sistema funcionou com perfeição na Inquisição. Presa uma pessoa, era quase certo que seriam também presos todos os parentes chegados, pais, filhos e irmãos, pois seriam compelidos a testemunhar uns contra os outros. Isso era facilitado pela sessão da genealogia, onde eram declarados os pais, os avós, os tios, os irmãos e os respectivos descendentes.
Os pobres réus tinham também tendência para denunciar a família chegada, à uma porque sabiam que era isso que os Inquisidores queriam deles e também porque esperavam que os denunciados lhes perdoariam aquela fraqueza.
Era pois um jogo entre Inquisidores e réus, os primeiros a querer matéria de acusação e os segundos a livrar-se da condenação da maneira que lhes era possível.
Outra vantagem para a Inquisição para valorar as denúncias dos parentes mais chegados era a seguinte:
Como a única defesa com alguma possibilidade de êxito (mas muito diminuta) eram as contraditas, os réus tentavam dizer que também os parentes próximos que os tinham denunciado eram inimigos capitais; mas os Inquisidores recusavam qualquer valor à alegação, porque diziam ser impossível que houvesse tal ódio entre pais e filhos ou entre irmãos.
Fernando Morales Penso (Pr. n.º 6307) foi preso em 25 de Abril de 1682. Ficou negativo, mas quando lhe disseram que ia ser relaxado, passou às confissões e denunciou pai, mãe, as meias irmãs, e mais parentes chegados. Foram todos presos. Foi condenado a degredo para o Brasil, mas no navio, escreveu esta carta ao Padre José Ferreira, um Jesuíta amigo dele:
Rev.mo P.e Mestre e Senhor meu,
Pelo muito, que com bem grande dor do meu coração, sinto gravada a minha alma, como quem vê entregue a vida às ondas, com tantos riscos da sua vida, me é precisamente necessário para descargo da minha consciência dizer a V. Paternidade que desde a hora em que recebi o Baptismo até o presente tempo, jamais deixei de ser verdadeiro católico, nem pela imaginação me passou nunca deixar a Lei de nosso Senhor Jesus Cristo em que fui muito bem educado; e assim declaro a V. Paternidade que tudo quanto no S.to Ofício depus nas minhas confissões, de mim e contra meus próximos foi falso; e confessei o que não havia feito com temor da morte, e desejo de salvar a vida, e assim rogo a V. Paternidade o faça presente em meu nome na mesa do S.to Ofício, enquanto não chego a Roma donde prostrado aos pés do Sumo Pontífice lho não digo bocalmente. Deus guarde a V. Paternidade muitos anos. Da Nau Diligente, em 29 de Outubro de 1683.
A carta foi junta ao processo n.º 6307, do Fernando Morales Penso (fls. 178); impressionou muito os Inquisidores, que já tinham prendido pela 2.ª vez o pai, José Fernandes Penso. Este manteve-se firme e negou a acusação do filho. Foi posto a tormento e foi degradado para Castro Marim por três anos, quando já tinha 75 de idade.
Idade para ser preso pela Inquisição
A idade mínima para ser preso era no Regimento de 1552 (Capítulo 16.º) de 14 anos para os rapazes e de 12 anos para as meninas. Estas eram as idades mínimas para que tivessem a discrição, isto é, o discernimento. O Regimento de 1613 manteve os mesmos limites mínimos (título III, n.º IX). Mas o Regimento de 1640, quis alargar o campo para prender gente e disse que, mantendo embora as mesmas idades como tempo da discrição, poderiam ter de abjurar a partir dos 10 anos e meio os rapazes e as meninas de nove e meio, se fossem capaces doli (III,I, XII); o Regimento só concedia que estes (até à idade da discrição) abjurassem em privado.
Esta questão da idade da “discrição” é complexa, pois o Papa Pio X estabeleceu que as crianças de ambos os sexos deveriam aprender o catecismo e confessar-se e comungar aos 7 anos, o que é de facto uma idade demasiado baixa para fazer a introspecção das matérias da Religião.
Nos Regimentos há um certo absurdo em considerar a maioridade apenas aos 25 anos e prender crianças de 10 anos para as punir.
O Processo
O processo da Inquisição tem uma contradição insanável: o réu é acusado de ser herege; nega e apresenta testemunhas da sua prática religiosa. Porém, é considerado negativo e de nada lhe serve a defesa apresentada. É por isso que a defesa directa (chamo-lhe assim, por oposição às contraditas e coarctadas, que são uma defesa indirecta), por mais válida que fosse nunca foi aceite em processo nenhum. Aliás, os Inquisidores pouco ou nada ligavam à defesa a seguir ao libelo. Sem qualquer pejo, deixavam de interrogar muitas das testemunhas indicadas e, de vez em quando, juntavam por iniciativa própria uma testemunha que acusava em vez de defender o réu.
As duas freiras de Beja, que foram relaxadas (Processos n.ºs 345 e 2493, de Évora) eram católicas devotas tanto ou mais que todas as freiras cristãs-velhas, mas foram dadas como negativas e relaxadas, porque não quiseram usar do único modo que tinham para se defenderem que seria acusar aqueles que as tinham acusado a elas.
Os Inquisidores utilizavam uma aritmética rigorosa: o Réu foi acusado por A, B, C e D, tinha de adivinhar quem o tinha acusado e denunciar A, B, C e D, sob pena de ser considerado diminuto, se faltasse algum. Diz o Regimento em II, XI, I que se farão sessões especiais, advertindo o réu das “faltas, encontros, repugnâncias e diminuições de suas confissões”, onde por “encontros” se deverão entender contradições, e por “repugnâncias”, inverosimilhanças.
Falando da defesa, há que referir os procuradores. Em princípio, a Inquisição não dava liberdade de escolher livremente os procuradores, tinha de ser um dos causídicos de que dispunha a instituição. Eram poucos e bastante fracos. Também não podiam tomar grandes liberdades. Veja-se o caso de Francisco Rodrigues Mogadouro (Processo n.º 1747, de Lisboa): o Procurador disse que ele não estava bom do juízo e os Inquisidores disseram logo que ele estava enganado, e que o réu estava em juízo perfeito.
Se o réu não quisesse nenhum dos procuradores existentes, teria de se consultar o Conselho Geral (II, VIII, II). Nos processos de réus mais desprovidos ou de adolescentes, nem se lhes oferecia procurador, do que se queixam as moças de Leiria (ex., proc. n.º 8361, de Lisboa), querendo dizer que tinham piores condições para se defenderem (como se a defesa fosse possível!).
Há uma expressão arcaica no Regimento de 1640, cujo significado é imperioso saber: “lançar o Réu da defesa” por exemplo em II, VIII, XI, “E se o réu confitente, por seu procurador, disser que não tem defesa (…) pronunciarão os Inquisidores que o lançam da defesa com que pudera vir (…)” significa que se o réu disser que não tem defesa, ou se findar o prazo para a apresentar, ficará extinta a possibilidade de a apresentar, pois esgotou-se a oportunidade de o fazer. No processo n.º 11550, da Inquisição de Lisboa, de Isaac de Castro, o réu diz que não apresenta ainda defesa, porque quer pedir à Mesa certos elementos para a redigir e é logo “lançado” da defesa pelos Inquisidores.
Como apareciam as testemunhas para os processos
Depois de o promotor de justiça conseguir duas testemunhas para o réu ser preso (e muitas vezes apenas uma), era dada ordem de prisão, imediatamente cumprida; bastava esperar alguns meses para caírem no processo muitas mais denúncias. As celas, construídas em madeira não impediam conversas de um cárcere para outros e praticamente sabia-se quem estava preso, sobretudo se da mesma terra. Denunciar os companheiros era vantajoso para os Inquisidores que juntavam denúncias ao processo e para os denunciantes que esperavam ganhar a benevolência dos inquisidores por ter feito as denúncias.
De vez em quando, se houvesse falta de denúncias, retinha-se o preso à espera delas. No processo n.º 10099, de Henrique Pais, há uma nota da Inquisição de Coimbra, comunicando à de Lisboa que brevemente seriam presas parentas próximas do Réu, que certamente iriam “dizer” dele. Um mês depois, outra nota dizendo que o assunto não estava esquecido e que enviariam as culpas, logo que as tivessem. Como de facto fizeram e o réu foi relaxado.
A família de Tomás Rodrigues (Pr. n.º 7588), foi presa com um pretexto qualquer, aliás falso. À falta de outras testemunhas, a Inquisição prendeu depois uma prima dele, Luísa Lopes e os filhos desta, que acusaram profusamente a Tomás, a esposa deste e os três filhos sacerdotes. Ele foi relaxado, a esposa faleceu no cárcere assim como dois filhos que endoideceram e o terceiro conseguiu salvar a vida à justa, acusando tudo e todos.
Era corrente, para conseguir denúncias, prender as potenciais testemunhas.
Note-se também que reperguntar as testemunhas, o que estava previsto no Regimento em II, XI, III, nunca teve um mínimo de seriedade. O primeiro depoimento era lido à testemunha que, evidentemente, o confirmava.
Também para provar a sanidade mental do réu, punha-se a testemunhar o alcaide e os guardas do cárcere que evidentemente diziam o que os Inquisidores queriam que eles dissessem: que tinha juízo perfeito e não tinha nenhuma lesão no entendimento. É que, se se provasse a doidice, o processo não poderia prosseguir, o réu teria de ser tratado - II, XVII,I e seguintes.
Publicação da prova da justiça
Juntamente com admissão de testemunhos singulares, a grande arma da Inquisição Portuguesa foi o modo como se dava conhecimento ao réu das denúncias contra ele. Refere com toda a clareza o Regimento em II, IX, I – as provas dir-se-ão, “calando os nomes delas, e o dia, mês, e ano, em que testemunharam, fazendo computação do tempo, em que a testemunha diz que o réu cometeu o delito, até àquele, em que se faz a publicação, não declarando o lugar, onde o delito se cometeu, mas dizendo, que foi em certa parte”. O réu ficava naturalmente desnorteado, pois quereria saber quem o tinha acusado e assim não o conseguia, a não ser em casos muito excepcionais, em que conseguia adivinhar.
O parágrafo II, IX, III do Regimento manda mentir ao réu no caso de culpas cometidas no cárcere (as mais frequentes seriam os jejuns). Mandava que se dissesse aos réus que as culpas tinham sido cometidas cinco a seis meses antes da sua prisão, para que o réu não desconfiasse que tinha sido vigiado. Isto é, determinava que se mentisse ao réu.
Como grande concessão, admite o Regimento em I, VI, XXII que o réu pelo seu procurador peça para ser informado do lugar onde lhe é dada cada uma das culpas, mas logo a seguir estabelece o modo como a informação deve ser dada de modo muito vago. Se o lugar é uma cidade, diz-se o nome da cidade, mas não se especifica o local dentro desta. Se é um lugar adjacente a uma localidade dir-se-á a distância desta, sem indicar a direcção, mas apenas “ao redor de”.
A defesa após a publicação
Após a publicação da prova da justiça, já não era possível contestar as culpas apontadas, mas apenas desvalorizar os testemunhos, ou invocando um alibi (coarctadas) ou apontando contraditas, isto é, razões que desvalorizam o depoimento da testemunha, em geral, ódios capitais.
No Regimento, a palavra “contradita” não tem o sentido geral que lhe dá o dicionário de “Alegação apresentada por uma das partes directamente, ou por seu advogado contra a outra / Contestação / Impugnação”, mas sim o sentido jurídico, hoje previsto no art.º 642.º do Código de Processo Civil – 1. “A parte contra quem for produzida a testemunha pode contraditá-la, alegando qualquer circunstância que possa abalar a credibilidade do depoimento, quer por afectar a razão da ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer.” Isto é: a denúncia perde validade, porque a testemunha tinha ao réu um ódio de morte e por isso é certamente falsidade.
Tanto o Regimento como os Inquisidores davam muita importância às contraditas, o que enganava os réus que ficavam a pensar que serviriam para muita coisa. A verdade é que em geral as contraditas ou eram totalmente rejeitadas, ou se lhes atribuía um valor diminuto para retirar credibilidade ao testemunho.
O processo inquisitorial tem muitas vezes excesso de formalidades numa afirmação hipócrita de rigor para ocultar a total inexistência de possibilidades de defesa do réu. É este o caso muitas vezes das contraditas em que se permitem dezenas e dezenas de contraditas, que envolvem a audição de muitas testemunhas ou na sede da Inquisição ou na província por meio dos Comissários.
Assim, o Regimento em II, X, IX, permite a todo o tempo a apresentação de novas contraditas.
Nalguns casos, porém, as contraditas são usadas para dar a liberdade aos réus, mas só após a purga por meio do tormento.
Ao contrário do que acontece na defesa, as testemunhas das contraditas não são indicadas na arguição destas, mas mais tarde o Réu é chamado à Mesa para as indicar (Regimento, II, X, II). Tem de nomear cristãos velhos, que não sejam seus parentes dentro do 4.º grau (aqui, segundo o direito civil – é primo direito ou 2.º tio). Por cada artigo, o réu pode nomear seis testemunhas (II,X,II), mas só se perguntavam três (II,X, VII) à escolha dos Inquisidores ou Comissários.
O despacho de recebimento das contraditas está previsto em II, X, IV do Regimento. Só são recebidas (aceites) as contraditas que respeitam às testemunhas que denunciaram o réu; este tem de adivinhar quem foram. Este despacho não lhe é notificado para que o réu não adivinhe quem testemunhou contra ele (II, X, VI).
Só são ouvidas as testemunhas que correspondem aos artigos de contraditas que foram aceites.
Coarctadas são a invocação de um alibi: o réu não estava no local da culpa no tempo em que esta foi dada como praticada. A coarctada era por vezes difícil de invocar, pela falta de rigor com que o réu era informado do tempo e do lugar da culpa presumida (afinal era tudo falso).
Curador dos menores
Uma estranha norma do Regimento de 1640, a seguir a II, V, VI, não numerada, diz: “
“Quem hão de ser os Curadores dos menores.
Será ordinariamente dado por curador aos presos menores o Alcaide dos cárceres, e aos apresentados o Porteiro da casa do despacho, ou algum outro Oficial do Santo Oficio: porém se parecer aos Inquisidores que convém dar a alguns menores Curador Letrado, o poderão fazer, e sempre será um dos Procuradores dos presos.”
Esta norma ou procedimento tinha um lado mau e um lado bom. Era mau que fossem os carcereiros a defender os interesses dos menores; mas era bom, porque sem dúvida os podiam aconselhar a confessar para salvarem a vida. A Recomendação XII do Breve do Papa Inocêncio XI, de 22 de Agosto de 1681 proibiu esta prática. E de facto daí em diante passaram a indicar em geral procuradores como curadores dos menores. Provavelmente as duas primas relaxadas nos processos 998 e 8271, da Inquisição de Lisboa não o teriam sido se fosse seu curador o Alcaide, teriam começado a confessar muito mais cedo.
Relapsos arrependidos
O Manual dos Inquisidores de Nicolau Eymerico determinava:
“Cap. XIII (…). De los relapsos arrepentidos (…) Cuando la recaída del relapso está plenamente probada debe este ser relajado al brazo seglar, por más que prometa enmendarse, y dé muestras de arrepentimiento, sine audientia quacumque. (…) Y efectivamente sobra con que el reo haya engañado ya una vez á la iglesia con su falsa conversión, para no exponerse á segundo engaño.”
Ou seja, o relapso na heresia era condenado à morte, sem apelo nem agravo. O Regimento adopta esta terrível doutrina. Somente em relação aos apresentados relapsos é que diz em III, I, IX que se os apresentados relapsos não estão delatados, pode aceitar-se a confissão se se prova que é verdadeira a confissão e o arrependimento. Mas se estão delatados, devem ser relaxados.
No séc. XVIII, quando se começaram a repetir as prisões, sempre que aparecia uma denúncia não considerada em anterior julgamento, dando origem a centenas de segundos processos numerados com -1 pelos Arquivos, deixou de se aplicar esta norma. Afinal sabia-se muito bem na Inquisição que tanto eram falsas as primeiras denúncias como as segundas. Seria um horror se tivessem sido condenados à morte todos os "relapsos" dessa época.
As iniciativas dos Inquisidores para condenar os cristãos novos, à margem do Regimento
Embora o Regimento estivesse convenientemente preparado para condenar os cristãos novos, os Inquisidores não deixavam de tomar iniciativas para que a tarefa não tivesse falhas.
Uma das principais foi abandonar a determinação da fracção de sangue judeu que tinha cada cristão novo. Era cada vez mais complicado o cálculo, e então decidiram adoptar a fórmula “tem parte de cristão novo” segundo fama pública e constante. É claro que a fracção de sangue era tão pequena que já não tinha para o próprio réu o mínimo significado, mas a Inquisição tinha de o perseguir para continuar a existir. Ora a assimilação na sociedade dos judeus acontece, segundo os próprios e segundo a doutrina racial de Hitler, com o casamento com o não judeu.
As casas de vigia nos cárceres
A prática de jejuns judaicos nos cárceres era para a Inquisição a prova infalível do judaísmo dos cristãos novos. Por isso, queriam ver se os presos os faziam, em especial os jejuns de segunda e quinta feira. Foi assim que criaram as casas de vigia, cárceres com dois buracos onde se colocavam dois guardas ou familiares para uma vigilância permanente, 24 horas por dia. Em geral, era o alcaide que informava a Mesa das suas suspeitas de que determinado preso estava a fazer jejuns judaicos. O preso era então transferido para um cárcere de vigia, onde ficava sozinho. Outras vezes, eram os próprios Inquisidores que tomavam a iniciativa de o lá colocar.
Os presos que foram vigiados a fazer jejuns foram praticamente todos relaxados e foram muito poucos os que conseguiram dar conta de que estavam a ser vigiados.
Paragem do processo
Muitas vezes deixava-se o processo parado. Iam caindo mais denúncias e ficava-se à espera que o preso se dispusesse a confessar. Mas muitos presos não faziam ideia nenhuma daquilo que os esperava e por isso ficavam muito surpreendidos quando depois eram notificados de que estavam relaxados como negativos. A paragem do processo era uma terrível violência sobre o preso, apesar de ter a aparência de inocente.
Transformar os presos em “bufos” dos seus companheiros.
Foi um sistema muito utilizado. Colocavam-se no cárcere presos que se sabia seriam voluntariosos para denunciar o que se passava e dizia no cárcere. Os presos mais desbocados eram assim apanhados a dizer mal da Inquisição, dos Inquisidores, ou, pior ainda, a dizer alguma blasfémia, que seria logo peça da acusação. Foi o caso de Fr. Valentim da Luz (Processo n.º 8352, da Inquisição de Lisboa).
Violência na Inquisição
Para além da violência exercida no tormento, muitos inquisidores usavam dela habitualmente com os presos. Era típico da instituição humilhar os presos e os que ousavam reagir ou defender-se, muitas vezes pagavam com o corpo. Pior ainda: alguns inquisidores mandavam açoitar repetidamente os presos que eles viam sofrer especialmente a violência. Francisco Rodrigues Mogadouro (Proc. n.º 1747, da Inquisição de Lisboa) pedia chorando ao procurador que fizesse um requerimento para que não lhe dessem mais açoites. Miguel Henriques da Fonseca (Pr. n.º 9485, da Inquisição de Lisboa), por não querer jurar sobre o Evangelho nem ajoelhar-se foi mandado açoitar pelo Inquisidor Bento de Beja de Noronha.
Pedro Nunes Pereira (Processo n.º 8298, da Inquisição de Lisboa), neto do Doutor Pedro Nunes, preso desde 6 de Julho de 1623, começou a partir coisas no cárcere no dia 26 de Abril de 1630, certamente desesperado pela longa prisão. Denunciado pelo alcaide e por um guarda, foi chamado à Mesa, onde os Inquisidores o repreenderam e lhe mandaram lançar um “gato”[1] por duas horas.
Nos primeiros tempos da Inquisição, havia ainda outra violência que era “lançar ferros” aos presos, que significava colocar grilhões que o preso trazia sempre, mesmo para dormir. Era uma forma muito bárbara de humilhar o preso. Aconteceu a Lopo Nunes, médico (Proc. n.º 2179, da Inquisição de Lisboa), que esteve uns três anos agrilhoado.
A norma que mandava não aplicar o potro às mulheres (II,XIV,VI) foi desrespeitada muitas vezes. Note-se na mesma norma a preocupação que a Inquisição tinha em evitar que os penitenciados fossem ao auto da fé com sinais de terem ido ao tormento.
Considerar hereges os cristãos novos apanhados a fugir do País
Muitas as famílias que foram presas quando tentavam fugir do País. Se iam a fugir, era porque queriam viver como judeus, dizia a Inquisição. É falso, mas infelizmente é ideia feita, mesmo entre historiadores. Não querem reconhecer que os cristãos novos eram perseguidos por o serem, não por serem hereges. Por isso, tinham motivos bem fortes para fugirem do País.
Depois de presos, ou “confessavam” a heresia, ou lhes arranjavam denúncias, nem que fossem dos que estavam já presos nos cárceres. Não podiam ser condenados por irem a fugir, seria demasiado estúpido. Ou então iam repetidamente ao tormento até confessarem por desespero: foi o caso do médico Lopo Nunes – Processo n.º 2179, já acima referido.
Mandar relaxar presos que nitidamente tinham endoidecido nos cárceres
Há muitos processos em que se constata que o preso perdeu a razão. No entanto, os Inquisidores fazem um “inquérito” em que põem o alcaide e os guardas a dizer que não senhor, os presos estão sãos do juízo e não têm nenhuma lesão no entendimento. Assim são relaxados, quando, segundo o Regimento, deveriam ir ser tratados. Um dos casos mais flagrantes é o de Diogo Rodrigues Henriques (Processo n.º 11262, da Inquisição de Lisboa), que, ao fim de 11 anos de cárcere, estava completamente “passado”, o que é referido pelo seu procurador. Os Inquisidores dizem que ele se finge louco sem o ser.
Solicitar aos presos mais confissões, depois de findos os processos, antes de serem libertados
São muitos os processos em que aparecem confissões já depois da abjuração, nitidamente fora do processo normal. Era a eterna preocupação da Inquisição de ter nomes para prender, para não deixar que a instituição ficasse sem ter que fazer. Estes depoimentos aparecem sobretudo nos finais do séc. XVII e início do séc. XVIII.
Não dar importância nenhuma à contestação por negação, por mais válida que esta fosse
A prova da contestação por negação era sempre ignorada. O preso dizia que não era verdade que fosse herege e provava por testemunhas. Não interessava. Ficava negativo, arriscava-se a ser relaxado.
Decidir sem indicar qualquer fundamento, o que era prática do Conselho Geral.
A Mesa em seguia geralmente uma certa lógica, baseada nas denúncias, nas confissões, na arguição de contraditas. Mas as decisões do Conselho Geral não tinham por base qualquer fundamento, decidiam sem fundamentar e muitas vezes de modo diferente do que tinha feito a Mesa.
Contribuição extraordinária para as despesas do Fisco
Quando os condenados eram ricos e não eram espoliados de tudo quanto tinham, a Inquisição condenava-os a pagar uma elevada quantia para as despesas do Santo Ofício, "sem exceder a terça parte de seus bens". Está no Regimento de 1640 em III, II, IX. Possívelmente era usada para extorquir dinheiro que às vezes já estaria no estrangeiro.
A colaboração dos Bispos (o “Ordinário”) na decisão dos processos
Nos termos do Regimento, o Bispo da zona do réu devia participar no despacho final do processo. A norma faria supor que os Bispos também participariam ou se fariam representar nos despachos do Conselho Geral. Mas isso nunca aconteceu. Apenas se faziam representar nos Assentos da Mesa. Ora, o Assento da Mesa só era sentença final nos processos que não iam à apreciação do Conselho Geral, isto é, os menos importantes. Este facto reduz a colaboração dos Bispos nos processos a bem pouco.
Aliás, os Bispos delegavam a sua presença na Mesa da Inquisição em várias pessoas, e depois começaram a delegar nos próprios inquisidores. A participação dos Bispos nas decisões tornou-se assim um mero pro forma.
A Inquisição e a confissão sacramental
Há muitas semelhanças (e algumas diferenças) entre a confissão perante os Inquisidores e a confissão sacramental, quanto mais não seja no nome. Mas no caso, ambas exigiam ao herege que confessasse os seus comportamentos que eram tidos por heréticos. No entanto, como sublinhou Fr. António de Sousa, a confissão ao inquisidor não era sacramental.
O Regimento de 1552 refere-se à confissão-sacramento logo no início:
Cap. 6.º (…) mandando em virtude de obediência e sob pena de excomunhão que todos os que souberem algumas coisas contra alguma ou algumas pessoas de qualquer estado e qualidade que sejam, tenham feito ou dito contra a nossa santa fé católica e santo ofício da inquisição o venham notificar e denunciar ao Inquisidor ou Inquisidores dentro do tempo que lhes for assinado, o qual tempo lhe assinarão e darão por três termos e canónicas admoestações em forma.
E que o que assim souberem tocando à santa Inquisição não o digam nem descubram a alguma pessoa de qualquer qualidade que seja, salvo a seus confessores, sendo tais, pessoas que lhes possam bem aconselhar, o que são nisso obrigados a fazer e os confessores lhes mandarão que o venham logo denunciar aos Inquisidores e no mesmo édito irá inserto que os que tiverem livros proibidos, e suspeitos os entreguem, e os que o souberem o venham denunciar (…)
Diz Giuseppe Marcocci [2] que a finalidade do sacramento da confissão era não só confessar os próprios pecados, mas também denunciar os hereges. A absolvição era negada aos hereges que confessavam a heresia; era-lhes ordenado que se apresentassem à Inquisição.
Quando o confessado denunciava algum herege ao confessor, este ordenava-lhe que fosse denunciá-lo à inquisição e, pelo menos inicialmente, negava-lhe a absolvição até que tivesse feito a denúncia. Mas alguns confessores contentavam-se com a promessa do confessado de ir fazer a denúncia à Inquisição.
A confissão sacramental foi profusamente utilizada pela Inquisição para prender gente. Um exemplo flagrante foi o de Ana de Milão (Proc. n.º 14449, da Inq. de Lisboa) presa por denúncias das criadas, suscitadas por instigação dos confessores.
No meio disto, onde ficava o sigilo da confissão? Diz Marcocci [3] : “Numerosi erano i casi intermedi in cui, senza arrischiare a rompere il sigillo, i confessori forzavano al massimo i limiti del segreto confessionale per fornire informazioni agli inquisitori”. Naturalmente os confessores ficavam em pulgas para transmitir à Inquisição o que tinham sabido. Um truque considerado legítimo era pedirem a quem se confessava autorização para romper o sigilo. É assim que mais de duas dúzias de processos do Brasil no 2.º quartel do séc. XVIII têm a sua origem nas denúncias do Padre Gonçalo de Gouveia Serpa que diz Fulano, Sicrano e Beltrano “me revelaram em confissão e deram faculdade para dar parte aos senhores Inquisidores do Santo Ofício que todas as pessoas abaixo conteúdas são de Nação Hebreia e judaízam na forma seguinte (…)” (Pr. n.º 6284, de Branca de Figueiroa, da Inquisição de Lisboa, fls. 4).
Mas, pouco a pouco, foi-se divulgando entre os padres a ideia que era lícito violar o segredo da confissão para denunciar hereges.
[1] Não consegui encontrar em lado nenhum a definição do que seja um “gato”. No entanto, como instrumento de tortura, aparece já no Capítulo 18 das Adições e Declarações de 1554 ao Regimento de 1552 (Liv. 330). Segundo me parece, a partir do significado de “gato” como gancho para pendurar, deveria ser um aparelho que permitia pendurar os presos de modo a que não se pudessem mexer. Aquele Capítulo 18, proíbe o alcaide e os guardas de aplicar castigos sem autorização dos Inquisidores.
[3] Idem, pag. 25