10-5-2013

 

 

Três renegados, ex-cativos em Argel, na Inquisição, em 1698

 

 

Por volta do mês de Fevereiro de 1698, navegando ao sul de Espanha, o navio italiano “Santa Rosa”, encontrou uma pequena embarcação de nacionalidade hamburguesa e, concluindo que tinha sido capturada por piratas mouros, tomou-a por sua vez e prendeu os onze tripulantes, seis mouros, dois europeus e três renegados, conhecidos pelo modo especial de se vestirem como mouros. O navio rumou então a Lisboa e o comandante  entregou os três renegados, que se verificou serem:

José Cardoso, português, analfabeto, de 42 anos

Guilherme Absen, inglês, de 18 anos

Cesare Baldi, italiano, de 18 anos

O comandante do navio italiano entregou-os às autoridades e o Secretário de Estado, Mendo de Foios Pereira mandou-os entregar à Inquisição, e por Assento da Mesa de 20-3-1698 (proc. n.º 1295, img. 9) foram para os cárceres da penitência, enquanto se instruía o seu processo.

A Inquisição solicitou (ao comandante, como é natural) que alguém prestasse esclarecimentos sobre a situação dos três renegados e apareceram no dia 23 de Março a prestar declarações três marinheiros italianos que tiveram o cuidado de não dizerem o sobrenome do comandante, que disseram ignorar, dando apenas o nome próprio de Stefano (Estêvão).

As declarações das testemunhas foram registadas no processo de José Cardoso (n.º 1295) e depois tanscritas para os outros dois:

1 - Giacomo Fava (img. 17) disse ser solteiro, natural da vila de Varazze, do Estado de Génova e marinheiro do navio Santa Rosa, de 20 anos. Esteve cativo em Argel quatro anos, tendo sido capturado por um Corsário daquela cidade numa setia de Catalunha, junto à vila de Gibraltar. Porém, sempre viveu como católico enquanto esteve cativo. Há alguns meses, o seu patrão mandou-o embarcar como marinheiro num navio de mouros que andava a corso; há cerca de dois meses, esse navio capturou uma charrua de flamengos e ele foi mandado para integrar a guarnição da charrua para a conduzir para Argel. Apareceu-lhes depois o navio Santa Rosa que capturou o barco e a tripulação e foi assim que ele ficou livre do cativeiro.  Disse desconhecer os nomes cristãos dos renegados, não sabia mais que os nomes mouriscos: o português chamava-se Mustafá Gancho, o italiano, Mahamet, e o inglês, Ibraim. O italiano ainda era cativo, mas os outros dois eram já livres.

Disse que os renegados participavam com os mouros na oração de quinta-feira à tarde e respondiam a quem presidia com palavras que ele desconhece.

Quando o navio Santa Rosa os capturou, disseram os três que, estando agora em poder de cristãos, queriam tornar à Lei de Cristo em que foram criados.

Para testemunhar acerca do renegado português, indicou um ex-cativo que viera de Argel no resgate de 1696, de nome Pedro Sardinha, com quem falara em Lisboa, residente à Bica Pequena, que vai de S. Paulo para o Bairro Alto e morava em casa de um clérigo da Ilha Terceira, seu parente.

Aos costumes, disse que não tinha boa vontade ao renegado português, por ser mau homem, soberbo e desbocado, e tratar mal os cristãos cativos, chamando-lhes perros e outros nomes afrontosos, e mandando dar pancadas, como fez a um cristão cativo no Navio por leve causa e também a ele testemunha em uma ocasião o tratou mal de palavras, ameaçando-o que o havia de espancar e matar.

2 - Agostino Agnese (img. 26), casado, natural da cidade de Génova e marinheiro do navio Santa Rosa, de 26 anos de idade.  Também ele integrou a equipa que do Santa Rosa saiu numa lancha para ir capturar a charrua hamburguesa em poder dos mouros e encontraram 11 homens a bordo, sendo 6 mouros, dois cativos cristãos, um genovês e outro veneziano, e os três renegados entregues em Lisboa.

Fez a seguir um testemunho praticamente idêntico ao anterior.

3 - Antonio Puista (img. 32), casado, natural da cidade de Génova e marinheiro do navio Santa Rosa, de 27 anos de idade.  Também o seu testemunho foi quase igual ao do primeiro. Acrescentou que os renegados, quando se viram prisioneiros, arrancaram a guedelha ou trança de cabelo que como Mouros traziam no alto da cabeça, de tal modo que no navio tinham algum sangue no alto da cabeça; queriam assim não ser reconhecidos como Mouros.

Vêm a seguir os testemunhos de 12 ex-cativos portugueses em Argel que ali tinham conhecido o Mustafá Gancho:

 

Nome

Naturalidade

Idade

Cativeiro

Regresso

Resgate

 

 

 

 

 

 

Pedro Sardinha

Funchal-Ilha da Madeira

38

Perto de 6 anos

Há 18 meses

Última redenção

Jerónimo Rodrigues

Castro Marim

52

18 anos

Há 6 anos

Dinheiro de esmolas

Padre Manuel Gomes Vieira

Angra do Heroísmo

36

2,5 anos

Há 6,5 anos

Não. Fugiu com outros 19.

João Lopes Cardoso

S. Martinho de Mouros

51

5,5 anos

Há 20 meses

Ultima redenção 

João de Sousa de Almeida, Pintor

Porto

48

22 anos

Há 20 meses

Última redenção 

Salvador Pereira

Cascais

47

5,5 anos

Há 20 meses

Última redenção

Rodrigo João, pescador

Lisboa

30

5,5 anos

Há 2 anos

À sua custa

Marcos Machado, calafate

Porto

43

18 anos

Há 6 anos

Redenção de Espanha [1]

António Carvalho, calafate

Vila do Conde

28

18 anos

Há 6 anos

Redenção de Espanha [1]

Manuel da Costa Cantanilha

Alagoa - Ilha de S. Miguel

40

10 anos

Há 7 anos

Dinheiro de esmolas

João Ferreira, calafate

Lordelo - Porto

45

19 anos e 8 meses

Há 2,5 anos

Não refere

Domingos Manuel, calafate

S. Salvador da Maneira-Porto

53

22 anos

Há 20 meses

Última redenção 

 

[1] Resgate pelos Religiosos de N.ª Sr.ª das Mercês, do Reino de Castela (Mercedários)

 

A história dos cativos portugueses no Norte de África é um assunto que se revela muito interessante. O seu número é bastante elevado, pois volta e meia eram assaltados os nossos barcos, até mesmo os que faziam um trânsito natural entre o Continente, a Madeira e os Açores e entre as ilhas deste Arquipélago. Mas também as embarcações que iam e vinham do Brasil e da África sofriam os ataques dos piratas árabes que “andavam a corso”.  E até os barquitos dos pescadores eram assaltados.

Procurando o que se escreveu sobre o assunto, encontrei as teses da Doutora Edite Maria da Conceição Martins Alberto (ver Bibliografia), mas ela limitou-se a estudar os resgates oficiais organizados pela Ordem da SS.ma Trindade, o que parece ser curto.  Como se vê dos exemplos do quadro supra, havia resgates feitos pelos Mercedários (Ordem de N.ª Sr.ª das Mercês) de Espanha e também resgates feitos pela própria família dos cativos. Acho que um bom estudo deveria incluir também as fugas dos cativos.

Pesquisando a base de dados da Torre do Tombo, encontram-se 745 processos da Inq. de Lisboa a partir da palavra “Islamismo” e 348, a partir da palavra “cativo”, o que abre muitas possibilidades, estando online todos os processos.

Diz a Doutora Edite Alberto que nos catorze resgates gerais (ou redenções) foram libertados cerca de 2 500 cativos.  No quadro supra, a “ultima redenção” é o resgate geral de 1696 e os mencionados no processo como testemunhas são referidos na lista respectiva sob os n.ºs:

      46 – Salvador Pereira

      66 – Domingos Manuel do Vale

      99 - António de Sousa, que, segundo parece, afinal era João de Sousa, pintor

      113 –  Pedro Sardinha

      144 – João Lopes Cardoso

 

 

José Cardoso, português, conhecido em Argel por Mustafá Gancho – Pr. n.º 1295

 

Segundo declarou na Inquisição de Lisboa, nasceu por volta de 1656, no lugar e freguesia da Ribeira dos Flamengos, na Ilha do Faial, nos Açores. Não frequentou escola nenhuma e ficou analfabeto. Por volta dos 18 anos, embarcou como tripulante num navio que ia levar ao Maranhão vários casais da Ilha do Faial. Era Capitão do navio Manuel do Vale, do Continente, não sabe de que terra. No regresso, à altura da costa de Portugal, foi capturado por um corsário de Argel. Foi vendido como escravo a um Turco chamado Mustafá. Estava, pois, cativo há 23 anos.

Era muito maltratado pelo seu patrão, que lhe dava muita pancada, o tratava mal e lhe dava pouco de comer. Após 9 anos de cativeiro, decidiu-se a renegar a fé cristã, para ser tratado melhor. Declarou em árabe “Alá é grande!” por 3 vezes, acrescentando “E Maomé é o seu Profeta.” Raparam-lhe o cabelo e foi depois cortado (circuncidado).

Cinco anos depois, o seu patrão deu-lhe a liberdade pelo contentamento que teve de lhe nascer um filho (img. 154). Foi então que embarcou como marinheiro em navios que andavam a corso. Foi marinheiro, artilheiro, cabo de guarda, guardião do navio. Agora era sotto-arrais, ou seja lugar tenente do comandante do navio.

Há cerca de dois meses e pouco, o navio em que andava capturou na Costa de Málaga uma charrua de Hamburgo e o comandante encarregou 11 homens de a conduzirem para Argel. Eram 6 mouros, 3 renegados e dois cativos. Encontraram depois o navio italiano Santa Rosa, que os capturou, rumou a Lisboa e entregou às autoridades os três renegados.

As testemunhas ouvidas pela Inquisição tinham conhecido em Argel o Mustafá Gancho, desconhecendo (diziam eles) o nome de cristão.  Disseram todos que ele tinha maus instintos e se gabava de andar a corso para prender cristãos. Pedro Sardinha disse até que ele dizia que uma vez fora capturado pelos Maiorquinos, se resgatara como Mouro e voltara a ir para Argel.

Dizia ele que agora era Mouro refinado e que já nada tinha de Cristão; isto disseram quase todas as testemunhas.

Jerónimo Rodrigues disse também que ele tinha fama de cometer o pecado de sodomia.

Rodrigo João disse que o encontrou um dia em que ele lhe disse que estava a cumprir o chamado jejum do Ramadão, donde concluiu que ele era Mouro não só no exterior, mas também no seu coração.

Interrogado a 8 de Abril de 1698, José Cardoso disse que apenas simulara renegar a fé cristã, pois se mantivera sempre cristão no seu coração. Renegara para ter melhor tratamento da parte de seu patrão.

Disse que uma vez encontrara em Argel um Sacerdote cativo chamado Inácio Luis. Quis-se confessar a ele, mas este disse “que lhe não podia dar remédio à sua culpa, por ser a absolvição dela reservada a Sua Santidade ou ao Santo Ofício, vendo-se então ele confitente destituído do remédio que procurava”.

Disse que só conheceu os dois outros renegados há dois meses no navio em que andavam a corso. Com ele vinham na charrua hamburguesa dois cativos, um Grego chamado Estácio, carpinteiro, que ficou em Cádiz e outro, italiano, de quem não sabe o nome, que está no navio Santa Rosa.

Negou que alguma vez tivesse cometido o pecado de sodomia.

José Cardoso mostrou-se humilde e arrependido e a Inquisição até nem foi muito severa com ele.

Foram vistos na Mesa do S.to Ofício da Inquisição de Lisboa em 21 de Outubro de 1698, estes autos, culpas e confissões de Joseph Cardoso (…) e pareceu a todos os votos que, visto confessar o Réu que, sendo cristão baptizado e suficientemente instruído nos mistérios da fé e doutrina da Igreja Católica, renegara em Argel, e se passara à seita dos Mouros, não só por acções  e palavras exteriores, mas ainda interiormente em seu coração, admitindo-a por boa, esperando salvar-se nela e fazendo por observância da mesma, os ritos e cerimónias que declara em sua confissão, tomando o nome de Mustafá, tratando-se e dando-se a conhecer por mouro renegado, embarcando-se por muitas vezes a corso contra cristãos, mostrando complacência e vaidade de que o tivessem por observante da dita seita de Mafoma, na qual diz que viveu o tempo de treze anos, e em que persistiu até que o trouxeram para os cárceres desta Inquisição; ele cometeu o crime de heresia e apostasia; porém, que  visto confessar suas culpas com mostras e sinais de arrependimento, pedindo delas perdão e misericórdia, e assentar na crença de seus erros e maometismo com mais verosimilidade, e especificação quando à declaração do apartamento da fé no ânimo interno, do que se mostra da informação da justiça por que foi preso, de que só constam actos e palavras exteriores, ele seja recebido ao grémio e união da Santa Madre Igreja com cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores, e que com o dito hábito na forma costumada vá ao Auto público da fé (…); e que se não devia fazer caso da denunciação de sodomia contida no testemunho de Jerónimo Rodrigues, fls. 20 a 24, porque, além de não depor em forma que resulte contra o Réu indício suficiente que o obrigue a ser processado, pela dita culpa, se pode também considerar (ainda nos termos que a mesma se verificasse), haver sido o tal crime transitório, cometido em Reino estranho e no tempo que vivia com a liberdade da seita dos Mouros, para que se não atendesse a ser por ele castigado sem haver prova muito exuberante (…)"

Esta decisão foi confirmada pelo Assento do Conselho Geral de 24 de Outubro de 1698. Foi ao auto da fé de 9 de Novembro de 1698.

Conta de custas: 2$560 réis.

O processo não tem Termo de segredo, nem Termo de ida.

 

 

Guilherme Absen, de 18 anos, inglês, anglicano, conhecido por Ibraim depois de renegado – Proc. n.º 11698

 

Nasceu em Hammersmith (o processo diz Amsmit), nos arredores de Londres. Ficou com seus pais até à idade de 8 anos, frequentando uma escola, para aprender a ler e contar e o catecismo. Depois, embarcou como moço de bordo num navio sueco. Passou depois para um navio inglês em que veio para Cádis. Aqui assentou praça numa setia de castelhanos que saiu a corso contra os franceses. Na ilha de Maiorca, passou para um navio de maiorquinos que depois naufragou e deu à costa em Argel. Foi capturado pelos Mouros e vendido como escravo. Comprou-o um Mouro a quem serviu ano e meio. Depois este vendeu-o a um Turco, a quem serviu 4,5 anos. Era muito maltratado, com muito trabalho, muita pancada e pouco alimento. Há dois anos, disse ao Turco que queria renegar; foi circuncidado e ficou a chamar-se Ibraim. Há um ano, morreu o Turco e deixou-o livre.

Desamparado, decidiu entrar como marinheiro num navio mouro que andava a corso, há dois meses.  Foi assim que ficou na companhia  de José Cardoso, conhecido a bordo pelo nome mouro de Mustafá Gancho. Com ele e mais um italiano, foi capturado pelo navio italiano Santa Rosa que entregou os três renegados em Lisboa.

Foi interrogado e disse que fora baptizado na Igreja Anglicana. Não queria abandonar a sua Igreja nem converter-se à religião católica.

Tem muito interesse a decisão da Inquisição no processo. O réu era estrangeiro e não católico, como é que a Inquisição poderia ter poderes para o julgar? Isso mesmo disse o Deputado Nuno da Silva Teles no seu voto (de vencido, claro).

Assento da Mesa:

Foram vistos da Mesa do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa em 3 de Setembro de 1698 estes autos, culpas e confissão de Guilherme Absen (…) e pareceu a todos os votos (excepto ao Deputado Nuno da Silva Teles) que, visto o Réu confessar que foi nascido e criado na seita dos Protestantes, e que é baptizado, e crê em Cristo Senhor nosso e que, sendo cativo em terra de Mouros, renegara a dita seita, da qual tinha bastante notícia e instrução e se passou à maldita seita de Mafoma, (…) em renegar, o réu apostatou directamente do sacramento do Baptismo, e de crer em Cristo Senhor nosso, como crêem os Católicos e Protestantes; pois são verdades que os mesmos hereges professam, e nelas convêm connosco e se não distingue, dos cristãos Católicos Romanos; mas que, visto confessar, que tudo o referido obrara e fizera somente no exterior, porquanto em seu coração, nunca se apartara da crença da seita dos protestantes, (…)  o Réu vá ao auto público da fé na forma costumada e nele ouça sua sentença, e faça abjuração de leve, suspeito daqueles que, sendo protestantes, apostatam das verdades da fé, em que convêm com os católicos romanos e tenha cárcere a arbítrio dos Inquisidores, e pague as custas; porém que na sentença se não faça menção de que seja absoluto da excomunhão, em que poderia ter incorrido; porque como tem dito na sessão a fls. 41, que se não quer reduzir à nossa santa fé católica, mas antes perseverar na dita seita dos Protestantes, em que o criaram seus Pais; e haverá bastante motivo para se reparar, que, tendo o Réu incorrido nas censuras da Igreja por ser herege, e depois disso, por mostrar se fizera apóstata passando à seita dos Mouros; o absolvem da segunda, ficando no mesmo tempo pela persistência dos seus erros ainda incorrendo na primeira; (…) E ao Deputado Nuno da Silva Teles, pareceu que no Santo Ofício se não devia proceder contra este Réu, pelo delito por que é processado, porque separando-se tão verdadeiramente da nossa Santa Fé Católica na Religião Anglicana, em que foi criado, como na seita de Mafoma, a que se passou, e não se castigando no Santo Ofício os professores da Igreja Anglicana, chamados Protestantes, nem os sectários de Mafoma, quando persistem nas suas ideias, também se não devem castigar quando passam de umas a outras, pois não estão sujeitos ao conhecimento e castigo do Santo Ofício, quando persistem na [crença] em que são criados; tanto mais que não se devendo proceder na Inquisição contra os transgressores da Igreja Anglicana, não há razão em que se haja de fundar a jurisdição dos Ministros do Santo Ofício para castigarem o apartamento dela, ainda naquelas matérias, e não se conforme a Igreja Anglicana com a Católica Romana, pois havendo de punir-se os transgressores da Lei, tanto devia ser em um como em outro caso, pois em ambos falta à observância da Lei, que professam; do mesmo modo, tem por sem duvida que se dos Ingleses existentes e tolerados neste Reino,  se passasse algum da Religião dos Protestantes à dos Presbiterianos, Anabaptistas, Quequeus ou Dulcinos, seitas entre si muito diferentes, e com diversíssimos erros, mas comuns todas aos naturais de Inglaterra, é certo que não conheceria desse caso o Santo Ofício, sem embargo de que os que passam de cada uma dessas religiões a outras, caem em erros que não há em ambas e se desviam das suas religiões em matérias que são contrárias à Igreja católica romana, e isto porque uns e outros hereges são tolerados não só neste Reino, mas em toda a parte onde se observa a Religião Católica, na forma em que a professamos os que somos filhos da Igreja Romana e, por estes fundamentos, sendo esta questão controversa entre os A.A.; é maior o número dos que seguem a resolução negativa de que os Ministros do Santo Ofício não podem castigar aos judeus e infiéis que se passam a diferentes religiões, com não só pela autoridade intrínseca da razão, mas também pela extrínseca do número e qualidade dos D.D. tem esta opinião por mais provável, e de se castigar publicamente este réu considera dois inconvenientes; o primeiro que sendo sempre pela maior parte o número dos inquéritos, persuadir-se-ão os que souberem que no Santo Ofício se castigam os que se desviam da heresia dos protestantes, que esta se fomenta e bastava esta consideração para que na dúvida que fez a controvérsia dos A.A., se não houvesse de seguir esta parte;  o 2.º e talvez maior, que de se castigar na conjuntura do presente tempo, um Inglês que nunca foi Católico Romano, e delinquiu fora dos domínios de Portugal, poderão seguir-se consequências danosas ao Santo Ofício, e poderá ser que à Nação e Estado que ao depois se não remedeiem facilmente; e deve ser esta consideração muito poderosa para que em uma matéria de tanta dúvida e opiniões encontradas, se não siga a que pode ter consequências de tanta ponderação; e a todos pareceu que, não só pela novidade do caso, mas também pela qualidade da culpa, seja, antes de executar este assento, levado ao Conselho Geral na forma do Regimento (…)”

O Conselho Geral em 9 de Setembro de 1698, confirmou o Assento da Mesa: “Foram vistos na Mesa do Conselho Geral e presença de Sua Ilustríssima, estes autos, culpas e confissões de Guilherme Absen (…) e assentou-se que ele ouça sua sentença na Mesa perante os Inquisidores, mais Ministros e oficiais, faça abjuração de levi, suspeito daqueles que sendo protestantes, apóstatas das verdades da fé, em que convêm com os Católicos Romanos, e tenha cárcere a arbítrio dos Inquisidores.”

Foi lida a sentença na Mesa da Inquisição em 12 de Setembro de 1698.

Na mesma data, o documento com a abjuração, o termo de segredo e o termo de ida.

Conta de custas: 1$798 réis.

 

 

Cesare Baldi, de 18 anos, italiano, católico, conhecido por Maometh depois de renegado – Proc. n.º 11721.

 

É natural de Livorno em Itália; foi baptizado. Foi para a escola, onde aprendia a ler, escrever e contar e também a doutrina cristã.

Há 10 anos numa quinta-feira que era feriado foi brincar para a praia com uns colegas e de um navio que saía para ir andar a corso contra os Mouros, convidaram-no para bordo, dizendo que depois o trariam de volta. Mas tal não aconteceu.

O navio foi para a Córsega, depois para a Grécia, onde aprisionaram alguma mercadoria de Turcos. Voltaram para Itália e estando a cinco milhas da Córsega, foram acometidos por dois navios de Mouros, Corsários de Tunes, que os cativaram e levaram para a mesma cidade onde ficou escravo do Rei.

Era empregado em trabalhos muito duros, davam-lhe pancadas e pouco alimento, Assim, decidiu-se a renegar a fé cristã e fazer-se Mouro, esperando um tratamento melhor. Ao fim de dois anos mandaram-no declarar “Alá é grande”! por 3 vezes e depois: “e Maomé é o seu profeta”. A seguir, circuncidaram-no, com o que esteve muito doente durante um mês.

No seu coração continuou católico. Ao fim de quatro anos depois de renegado, foi capturado pelos soldados de Argel e vendido a um Turco que o fez embarcar num navio que saiu a corso. Dava o soldo a seu senhor e só ficava com pouco para o seu sustento

Não conhecia os companheiros até que há dois meses embarcaram os três no navio corsário,

Também no Assento da Mesa deste Réu, houve votos de discordância de dois Deputados:

"Foram vistos na Mesa do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa em 16 de Setembro de 1698 estes autos, culpas e confissões de Cesare Baldi (…) e pareceu a todos os votos (excepto aos Deputados Nuno da Silva Telles e Nuno da Cunha de Ataíde) (…) que [o Réu]  obrigado das vexações que alega se deliberara em dizer que queria ser Mouro, e haver feito sua confissão com mostras e sinais de arrependimento, reconhecendo o mal que fizera em se fingir, ainda só exteriormente Mouro, de que pediu perdão e misericórdia, se devia receber a dita sua confissão na forma em que a fez; porém, visto ser público que o Réu foi aprisionado pelos Genoveses do navio Santa Rosa, andando em companhia de Mouros a corso contra cristãos, e conhecido como renegado e como tal delatado no Santo Ofício de ordem de Sua Majestade; (…) vá ao Auto público da fé na forma costumada, e nele ouça sua sentença e faça abjuração de leve suspeito na fé, e seja absoluto da excomunhão ad cautelam, e tenha cárcere a arbítrio dos Inquisidores, penitências espirituais e instrução ordinária.

E ao dito Deputado Nuno da Silva Telles, pareceu que, suposta a pouca idade em que o Réu foi cativo, e passou ao poder dos Mouros e dever inferir-se dela que não tinha ainda  a instrução da fé que basta para se reputar por suficiente, e ser verosímil que não se apartou da fé no coração, mas somente ore tenui, em ordem a se livrar do mau tratamento da sua escravidão, como confessa, pois, logo que foi apresado pelo cristãos protestou que era Católico Romano, o que não faria tão fácil e prontamente; e, tanto que se viu em liberdade se, tam in ore quam in Corte, se houvesse passado à seita de Mafoma.  E, atendendo também, a que, sendo o Réu estrangeiro, e não havendo delinquido nos domínios de Portugal, podia entrar em dúvida, estava obrigado a algumas das penas do Regimento, ainda que estivesse na exclusiva decisão dele, de que não está pelas circunstâncias referidas, em consideração delas, deve de abjurar de leve na Mesa e ter instrução ordinária.

E ao dito Deputado Nuno da Cunha de Ataíde, pareceu que, visto constar pela confissão do Réu ( a que se deve dar crédito por não haver coisa alguma contra ele), ter oito anos de idade quando o cativaram os Mouros, tempo em que não podia ter instrução da fé católica a que os D.D. chamam suficiente, nem evidente conhecimento da verdade dela, ele fosse somente absoluto ad cautelam da excomunhão em que podia ter incorrido e instruído nos mistérios da fé, e advertido se aparte de pessoas suspeitas na fé, por ser este o estilo que em semelhantes  Réus se tinha praticado; e a todos pareceu que pague as custas e que, antes de se executar este assento, seja com os autos levado ao Conselho Geral na forma do Regimento (…) "

 

O Conselho Geral em 19-9-1698 confirmou o Assento da Mesa, e a sentença foi lida nesta em 20 de Setembro de 1698.

Seguem-se a abjuração de levi, o termo de segredo e o termo de ida e penitências.

Confessou-se e comungou no dia 23 de Setembro de 1698.

Conta de custas: 1$703 réis.

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

Jerónimo de São José, Historia Chronologica da Esclarecida Ordem da SS.Trindade, 2 tomos I, Lisboa, Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789 – 1794

Online: http://purl.pt/16563/2/

 

Isabel Branquinho, Aproximação ao Convento do Mosteiro da Santa Trindade de Santarém (1208-1500), in Lusitânia Sacra, in 2ª série, 13-14 (2001-2002). pag. 139-159

Online: http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4423/1/LS_S2_13-14_IsabelBranquinho.pdf

 

Edite Maria da Conceição Martins Alberto, Um negócio piedoso: o resgate de cativos em Portugal na época moderna, Tese de doutoramento em História, Universidade do Minho, 2010

Online: http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/13440/1/TESE%20COMPLETA.pdf

 

Edite Maria da Conceição Martins Alberto, Corsários argelinos na costa atlântica – o resgate de cativos de 1618, in O espaço atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, Congresso Internacional, Universidade Nova, 2 a 5 de Novembro de 2005.

Online: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/edite_alberto.pdf

 

Edite Martins Alberto, A Quinta da Trindade: história da Ordem da Santíssima Trindade no Seixal, edição da Câmara Municipal do Seixal, 1999.

 

Isabel Drumond Braga,  O Resgate de Cativos enquanto obra de assistência: o caso de 1778, in Cultura, Religião e Quotidiano. Lisboa: Hugin, 2005.