10-5-2012

 

Páginas sobre a INQUISIÇÃO em Portugal, neste site              

 

 

OS PROCESSOS DA INQUISIÇÃO

 

 

Notas prévias:

 

1 – No meu estudo da Inquisição, apenas a considero como a instituição que perseguia os cristãos novos. Dizem os entendidos que isso representou 80 % da sua actividade, mas eu acho que deve ser algo mais. Mas o que não há dúvidas é que a Inquisição teria desaparecido bem mais cedo se tivesse acabado a perseguição aos cristãos novos ou que supostamente assim eram considerados. Entretanto, a noção de cristãos novo alargou-se ao longo do tempo: no início identificavam-se os antepassados judeus e indicava-se a fracção de sangue judeu que o cristão novo tinha. Mas, como isso era cada vez mais difícil, passou a dizer-se que os réus tinham parte de cristão novo, ou até mesmo que tinham fama de serem cristãos novos.

2 – Como veremos, é característica fundamental do processo inquisitorial não ter defesa possível, o reu só é libertado se confessar. Ainda hoje, temos resquícios do processo inquisitorial. Antes da Revolução de Abril e até hoje no interior do PSD (Partido Social-Democrata, onde se aninha toda a extrema direita!), quem não gostava de Salazar e não ia à missa era comunista; era uma acusação sem defesa possível.

3 – No estudo dos Regimentos, convém conhecer os vários tipos de contagem dos graus de parentesco. Nas linhas laterais em V (vê) invertido, o direito civil conta todos os graus dos dois ramos, com excepção do progenitor comum. O direito canónico da época (e até 1983), também exclui o progenitor comum, mas só contava os graus do ramo mais comprido. Por isso um irmão germano era do 2.º grau para o direito civil e do 1.º para o direito canónico. Esta classificação é importante, porque a inquisição valorizava mais os depoimentos dos parentes chegados e para isso ia buscar a contagem dos graus ao direito canónico.

 

 

Alguém dizia há tempos que a Inquisição não deve ser estudada pelos processos, mas sim por outro tipo de documentos. E de facto, é isso mesmo que têm feito muitos historiadores. Mas não há dúvida nenhuma que, se queremos saber o que fazia a Inquisição, são mesmo os processos que temos de estudar.

Outra premissa a considerar é que os processos da Inquisição são diferentes de quaisquer outros, desde logo pela impossibilidade de qualquer tipo de defesa. Esta é uma característica essencial de todo o processo inquisitorial, só tem acusação e condenação, o resto é só para enganar.

A Inquisição deve ser estudada partindo de dois axiomas: a Inquisição era uma instituição absurda e perversa.

A Inquisição era uma instituição absurda porque queria uma coisa impossível: adivinhar o pensamento e a crença das pessoas. Isso é impossível, o pensamento é livre por natureza,  a liberdade de pensamento é um princípio de direito natural.

A Inquisição era uma instituição perversa, porque estava totalmente orientada para a condenação dos réus. Por um lado, queria apanhar-lhe os bens e, por outro, exercer o poder, humilhar e torturar.

Que queria a Inquisição? Certamente não era fazer dos cristãos novos católicos fervorosos, tais os maus tratos que lhes infligia. Não. A verdadeira finalidade da Inquisição era exercer o poder na sociedade portuguesa. Escreveu a Prof. Ana Maria Homem Leal de Faria: “Como estado dentro do Estado, a Inquisição servia-se do Papa para combater o rei e vice-versa, quando as decisões pontifícias não eram de molde a garantir-lhe uma total autonomia.” (Uma "teima": do confronto de poderes ao malogro da reforma do Tribunal do Santo Ofício - a suspensão da Inquisição Portuguesa (1674-1681), in Inquisição portuguesa: tempo, razão e circunstância, Coordenação de Luis Filipe Barreto, José Augusto Mourão, Paulo de Assunção, Ana Cristina da Costa Gomes, José Eduardo Franco, ... [et al.], Editora Prefácio, Lisboa – S. Paulo, 2007, ISBN 978-989-8022-20).

A Inquisição queria o poder. Mas o poder por natureza é efémero e eles queriam manter a Inquisição a funcionar. O poder para o ser verdadeiramente tem de durar. Já dizia Salazar, que de poder bem entendia:

"E como é da essência mesma do poder procurar manter-se, haverá sempre um número mais ou menos grande de princípios que o poder não deixará discutir, isto é, a propósito dos quais a liberdade não existe."[Como se Levanta um Estado (1937)]

A Inquisição queria ter um poder que durasse e de facto durou 285 anos! Para isso, era preciso ter uma ocupação, algo a fazer, uma missão a desempenhar. A missão era perseguir os cristãos novos. Se eles não existissem ou se os expulsassem todos do País, a Inquisição ficaria sem ter que fazer.

Os cristãos novos não eram suicidas. Queriam era viver em paz e sossego e fazer os seus negócios para ganhar dinheiro. Mandar os seus filhos estudar na Universidade para terem uma profissão, embora lhes fossem vetados todos os cargos públicos. Para viverem em paz, baptizavam os filhos, ensinavam-lhes as orações do catecismo, mandavam-nos confessar e comungar e todos o faziam pelo menos uma vez por ano para figurarem no rol da desobriga.

Não tinham qualquer interesse em discutir religião, antes pelo contrário, não falavam disso. António Nunes Ribeiro Sanches só soube alguma doutrina judaica, quando aos 25 anos foi para Benavente e Lisboa e conversou sobre o assunto com Teresa Eugénia da Veiga, cunhada de seu tio, o Dr. Diogo Nunes Ribeiro.

Por tudo isso, não andavam a propagandear o judaísmo, não tinham sinagogas, não organizavam reuniões religiosas, não falavam uns com os outros na sua crença, nada disso.

No entanto, alguns dos nossos historiadores continuam a falar de judaísmo e até de recrudescimento do judaísmo… após a criação da Inquisição.

Definindo judaísmo diz-nos o Dicionário de José Pedro Machado que é “a religião, a estirpe, as tradições, o pensamento e as aspirações dos judeus”.

Ora, os cristãos novos não se comportavam como judeus.

É evidente que os cristãos novos eram identificados pelo estatuto da limpeza de sangue, mas tinham todo o interesse em não o mostrar na vida de todos os dias. Bem sabiam o que iriam sofrer se fossem presos pela Inquisição.

Os cristãos novos que interessavam à Inquisição eram os que tinham bens, pertenciam a uma classe média que tinha em sua casa empregados, criadas e escravos que eram cristãos velhos. Por isso, não iriam certamente praticar cerimónias ou ritos judaicos, parar de fazer qualquer coisa aos sábados, ou abster-se de comer certas carnes ou peixes, para não correrem o risco de serem acusados.

Mas a Inquisição, inventado o judaísmo, tinha necessidade de prender e condenar os réus por esse crime, para lhes apanhar os bens.  Que fez então? Obrigou-os a confessar a crença judaica, instituindo uma bola de neve de denúncias. Uma única denúncia de pessoa de família e o réu é preso. Nega. Defende-se. De nada lhe vale. Tem de confessar e de denunciar. Como tem amor à vida, acaba por o fazer.

Por vezes, apareciam réus que, em pânico, denunciavam dezenas ou centenas de familiares, amigos e conhecidos, dando que fazer à Inquisição para muito tempo.

Uma prova de que as coisas eram assim é a artificialidade das confissões que passam a ser estandardizadas, logo no final do Sec. XVI:  “tinha crença na Lei de Moisés que era boa para a salvação da sua alma. E por sua observância, guardava os sábados de trabalho, vestindo neles camisas lavadas. E jejuava às segundas e quintas-feiras, sem comer nem beber, senão à noite, depois de saída a estrela. E fazia o jejum do dia grande que vem no mês de Setembro. E não comia carne de porco, lebre, coelho nem peixe de pele. E rezava o Padre Nosso ao deus do céu, sem dizer Amen Jesus no fim.”

Era este ciclo de confissões-denúncias que levava famílias inteiras à barra da Inquisição.

O esquema era facilitado por os cristãos novos não serem propriamente “amados” pelos cristãos velhos. Havia uma forte vaga de anti-semitismo que apoiava a actuação da Inquisição. Os cristãos novos procuravam actividades rentáveis, punham os filhos nas universidades, faziam negócios com o ultramar, licitavam grandes negócios com o Governo.

À margem da Inquisição, havia ainda os auxiliares, os comissários e os familiares, cargos exercidos gratuitamente com quem a Inquisição repartia o poder que tinha. 

O Prof. Romero Magalhães  no artigo “E assim se abriu judaísmo no Algarve”, define o judaísmo como a actividade da Inquisição que consistia em prender cristãos novos e acusá-los não daquilo que tinham feito, mas daquilo de que eram acusados em testemunhos arrancados a outros. Ou seja, o judaísmo como uma invenção da Inquisição. Esta, sim, é uma definição correcta.

À mesma conclusão se chega considerando que o alvo da Inquisição eram todos os cristãos novos, todos podiam ser incriminados de "judaísmo". Assim o judaísmo como prática deixava na mesma de existir, não aumentava nem diminuía, era igual à qualidade de cristãos novos.

Outra palavra usada por alguns historiadores é “judaizante”, sem nada acrescentarem. É sabido que os adjectivos não têm definição: a medida do adjectivo está na cabeça de quem diz ou escreve a palavra. Diz José Pedro Machado: “Judaizante – que se dedica estritamente às práticas judaicas”. Ora, é inadmissível que se diga que Fulano era judaizante, sem mais. É preciso dizer o que é que ele fazia para ser considerado como tal; ou então era judaizante porque assim foi considerado pela Inquisição.

A Inquisição foi uma instituição que cultivou o prazer de ter poder, aproveitando-se do ambiente de anti-semitismo que se vivia na época, estando os cristãos novos isolados pelo estatuto da limpeza de sangue. Para isso, a Inquisição escondia-se atrás da defesa da Fé, o que não era mais do que um pretexto.

 

 

COMO LER UM PROCESSO DA INQUISIÇÃO

 

Antes de começar a estudar processos da Inquisição, é preciso estudar o Regimento que vigorava na altura. É essencial conhecer as regras a que os Inquisidores tinham de obedecer. E é preciso ler e perceber. Para isso, é preciso conhecer os termos, por exemplo, saber o que é uma contradita e uma coarctada. Contradita (art.º 521.º do Cod. Proc. Civil) é a alegação de qualquer circunstância capaz de abalar a credibilidade do depoimento, quer por afectar a ciência invocada pela testemunha, quer por diminuir a fé que ela possa merecer. Coarctada é a invocação de um alibi.

Iremos descrever as peças de um processo da Inquisição, com base no Regimento de 1640, que, porém, não é muito diferente do de 1613, o primeiro que foi impresso.

Precede o processo uma ordem de prisão da Mesa que a é emitida após um pedido do promotor que deve indicar os testemunhos de que dispõe. A regra de que seriam necessárias duas testemunhas (II, IV, IV), tem logo a seguir muitas excepções, em face das quais se podia prender com um só testemunho.

Como é evidente, se o réu se tiver apresentado, não haverá mandado de prisão e o processo inicia-se com a sua confissão, que ele fará ao Inquisidor; ou também a poderá trazer já escrita; nessa altura será então identificado (Tit. II do Liv. II).

Em geral, o processo inicia-se com o mandado de prisão assinado pelos Inquisidores. É dirigido a qualquer oficial ou familiar do Santo Ofício. Pelos vistos, prender alguém para o Santo Ofício dava um certo prestígio naquela altura. O mandado pode ser com ou sem sequestro de bens, conforme a culpa.

Preso o Réu, segue-se o auto de entrega nos cárceres da Inquisição e depois a “Planta do cárcere”, a identificação do local da cadeia onde ele ficou preso.

Seguem-se as culpas do Réu, os testemunhos contra ele, já existentes nas três inquisições do País, Lisboa, Coimbra e Évora. Em muitos casos são precedidos de uma folha com um índice das culpas, com indicação do denunciante, data do depoimento e, por vezes, a indicação da página no respectivo processo. Todos estes elementos eram confidenciais e nada disto era dito ao réu. Estas indicações são muito úteis porque, mais para diante, os elencos das culpas não mencionam o nome dos denunciantes. Por vezes, estes estão anotados ao lado no exemplar do processo da lista das culpas. Aparece a seguir o traslado entregue ao réu, que ele é obrigado a devolver e fica no processo, seguido da defesa do procurador, se for caso disso.

Por vezes, pode ser útil procurar o processo que tem as denúncias originais, ou para tirar dúvidas de leitura, ou para procurar uma versão com melhor letra e mais legível.

Se o preso for menor de vinte e cinco anos, ser-lhe-á atribuído um curador, que o acompanhará em todo o processo; é lavrado um termo com o juramento do Curador nomeado (II, V, IV). Um normativo absurdo entre os artigos VI e VII de (II, V) dizia que normalmente deveria ser curador e Alcaide dos cárceres. A “norma” tem aspecto de espúria, porque não está numerada. Mais tarde o Breve do papa de Inocêncio XI, de 22 de Agosto de 1681 proibiu este procedimento.

A seguir, faz-se o inventário dos bens do réu. Se a prisão foi feita com sequestro dos bens, far-se-á uma cópia do inventário para ser enviada ao Juiz do Fisco, para ele pôr os bens em segurança.

 

GENEALOGIA

A primeira sessão é a de genealogia, cujos termos estão descritos com muito pormenor no Regimento  (II, VI, II). A ordem seguida é, identificação do réu, dos pais, avós paternos, avós maternos, tios paternos e seus descendentes, tios maternos e seus descendentes, irmãos e seus descendentes, cônjuge do réu e descendentes deste. Perguntava-se sempre a “qualidade de sangue” do réu e de todos os familiares.

Como é evidente, a sessão de genealogia dos processos da Inquisição interessa muito a quem cultiva o estudo das árvores genealógicas das famílias. Para compreender bem os procedimentos da Inquisição, é também muito útil, identificar os elementos da família que foram presos antes ou depois, anotando os respectivos números dos processos.

Tem também interesse verificar se o réu disse toda a verdade na genealogia; os inquisidores ficavam aborrecidos quando verificavam mentiras ou omissões.

No final, e nos termos do Regimento, obrigavam o réu a ajoelhar-se e a recitar o Pai Nosso, Ave Maria, Credo, Salve Rainha, Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Igreja, anotando se sabia bem essas orações de cor.

O réu é admoestado para confessar as suas culpas, se disser que as não tem.

 

IN GENERE

Como o nome indica, o réu é perguntado genericamente sobre as características da seita por que está denunciado, pelas crenças e cerimónias da mesma seita (II, VI, IV). Em todas as sessões, o réu tem de jurar pelo Evangelho, dizer a verdade e guardar segredo. 

 

IN SPECIE

O réu é perguntado sobre a matéria de facto constante das denúncias que lhe dizem respeito (II, VI, VI). O inquisidor deve omitir as circunstâncias do caso que podem permitir ao réu identificar o denunciante.

 

Nesta altura, se os inquisidores considerarem que o réu já fez uma confissão completa das suas culpas, passar-se-á à sessão da “Crença” (II, XI, VI). Se nada confessou, diz-se que está negativo, se confessou apenas parcialmente, que é confitente diminuto.

 

CRENÇA

Nesta sessão, o réu devia confessar em detalhe todas as suas convicções desviantes do ensino da Igreja Católica, e quem lhas tinha ensinado; as cerimónias em que participou; se, apesar de tudo, frequentava as igrejas e os sacramentos; o que dizia aos seus confessores; quando tempo durou a sua crença desviante, e o que o levou finalmente a afastar-se dela.

Como é lógico, esta sessão não se fazia com os réus negativos e convictos.

 

CONFISSÃO

Em qualquer altura, os Inquisidores devem ouvir os Réus que estão dispostos a confessar, mesmo antes da sessão de Genealogia. A norma que isto refere é II, VII, I: Porquanto as confissões dos culpados no crime de heresia são o único meio, com que podem merecer, que com eles se use de misericórdia, e o principal fundamento, que tem o Santo Ofício, para proceder contra as pessoas, de que nelas se denuncia”. Quer dizer: a única maneira de os réus serem poupados aos castigos é confessarem. Se não o fizerem, se ficarem negativos (na linguagem do S.to Ofício) serão certamente condenados.

 

LIBELO

Se o réu for negativo ou confitente diminuto (isto é, se a sua confissão não for considerada completa), segue-se o libelo acusatório do promotor (II, VI, VIII), feito a partir das respostas do réu e dos ditos das testemunhas. Se o réu for confitente diminuto, o libelo tem uma forma especial (II, VI, XVI).

 

Entregue o libelo pelo procurador, é chamado o réu à Mesa e é-lhe lido. Ser-lhe-á perguntado se tem defesa e se quer defender-se. Dizem-lhe os Advogados que há disponíveis e que ele deve dar procuração a todos e a cada um em particular; e dizem-lhe quem será o seu defensor que o Regimento chama procurador (II, VIII, II). Pode o réu, porém, rejeitar um ou todos os advogados; nesta última hipótese, o caso é exposto ao Conselho Geral.

Escolhido o Procurador, este presta juramento (II, VIII, V). É dada ao réu cópia do libelo e a seguir, vai reunir com o seu procurador.

Através do seu Procurador, o réu pode pedir que lhe seja dito por escrito o tempo e o lugar do delito ou delitos de que está acusado (II, VIII, VII). Também pode pedir que um notário lhe leia as suas confissões (II, VIII, VIII).

Reunindo com o réu, o Procurador escreve os artigos da defesa que ambos entendem, indica testemunhas para serem ouvidas e entrega tudo na Mesa junto com o traslado do libelo que tinha recebido. As testemunhas não podem ser mais de quatro por cada artigo.

De um modo geral, as defesas dos procuradores são deficientes, apressadas, escritas com má letra e por isso difíceis de ler. Em geral também, há bastante mais testemunhas de defesa indicadas do que as que são depois ouvidas. Possivelmente, algumas recusavam-se a depor, mas esse facto não é indicado nos processos. Nalguns processos, aparecem nesta fase testemunhas que não haviam sido indicadas e que atacam o réu, apesar de virem misturadas com as de defesa.

São então ouvidas as testemunhas de defesa.

Se o réu alegar que é cristão velho, vindo acusado de culpas de judaísmo, deve ser enviada deprecada (chamava-se então comissão) aos locais do nascimento e da morada dele, para serem colhidos testemunhos (II, VIII, X).

Muito importante é a norma de II, VIII, XI: se o réu dizer que não tem defesa, “será lançado da com que pudera vir”. Esta é uma locução arcaica para dizer que o réu perdeu a ocasião de se defender, já não o poderá fazer depois disto.

Esta defesa nunca produz qualquer efeito. O réu estava já classificado como negativo e negativo continua depois de contestar por negação aquilo de que é acusado. Muitas vezes, não é ouvida a maior parte das testemunhas que o réu indicou.

 

PUBLICAÇÃO DA PROVA DA JUSTIÇA

 

Depois do alegado pela defesa e do depoimento das respectivas testemunhas (mas nunca se aproveita nada do que ali se diz), o promotor requer que se faça a publicação da prova da justiça.

Cada testemunho, um artigo da publicação. No original do processo, é costume anotar ao lado o nome do denunciante, a data do depoimento e por vezes, o n.º das folhas onde figura no respectivo processo.

Uma norma requintada (II, IX, III) manda que, no caso de culpas cometidas no cárcere, se indique como início do procedimento “cinco ou seis meses antes da data da prisão”, para que o réu nunca suspeite que a culpa foi cometida no cárcere. Este era um caso muito delicado para os cristãos novos, que faziam jejuns no cárcere e eram imediatamente acusados disso no processo, porque estavam a ser vigiados. Os processos dizem que o réu fez um “jejum judaico”, que foi observado por vigilantes que espreitava, através de buracos em celas apropriadas durante 24 horas por dia. O réu é chamado à mesa e são-lhe lidas as suas culpas. Pergunta-se-lhe se tem defesa com que vir ou contraditas.  Contraditas são os factos que invalidam o depoimento da testemunha. Por exemplo, o facto de o réu e a testemunha serem inimigos por qualquer motivo desvalorizava o crédito da testemunha.

É dado ao procurador o traslado das culpas que ele examina com o réu. Este podia pedir também que fossem reperguntadas as testemunhas. Nesse caso, era notificado para “formar interrogatórios”, isto é, dizer as perguntas que haveriam de ser feitas às testemunhas. Ao mesmo tempo, indicaria também as testemunhas das contraditas que alegou. Pode indicar até três testemunhas por cada contradita (II, X, VII). O procurador redige todos os pedidos e entrega-os na Mesa, devolvendo o traslado das culpas que é junto ao processo, que fica com estas peças em duplicado.

O réu podia também alegar a coarctada: esta é a invocação de um alibi, o modo de defesa pelo qual o réu negativo pretendia livrar-se, provando a sua presença em lugar diverso daquele em que se pretendia tivesse praticado a culpa de que o acusavam.

Todos os elementos da defesa tinham de ser recebidos pelos inquisidores. Ora nem o réu nem o procurador conheciam a identificação das testemunhas; por isso, o mais provável era que muitas das contraditas e coarctadas alegadas não respeitassem aos factos constantes do processo. Logo, essas eram rejeitadas.

Começava então a tarefa de reperguntar os denunciantes e de ouvir as testemunhas indicadas para as contraditas e coarctadas.

Note-se que toda a sequência da “publicação da prova da justiça” indicada até aqui recomeçava de novo sempre que chegavam ao processo novas culpas da justiça, depoimentos entretanto feitos noutros processos.

Depois de toda a sequência anterior, o escrivão faz o processo concluso (e deveria indicar a data em que o faz, mas por vezes esquece-se). O processo vai ao visto dos inquisidores e deputados ou a despacho final.

 

VISTO DA MESA OU DESPACHO FINAL

 

É esta a peça mais importante de qualquer processo, tendo porém em conta que há processos com mais do que um Visto, dois, três, quatro, etc. As decisões são votadas pelos inquisidores, pelos deputados e pelo representante do Bispo. É narrado o decurso de todo o processo e indicado o castigo aplicado ou cuja aplicação se sugere. É que muitos processos (II, XII. XIV) têm de subir ao Conselho Geral: o dos réus a ser absolvidos, os que serão relaxados à justiça secular (condenados à morte), os que já estão pronunciados com prisão pelo Conselho, os falsários.

 

TORMENTO

 

Por vezes, nesta fase, decide-se que o réu seja posto a tormento; tal figura em sentença (II, IX, I) e esta é de facto no processo a única verdadeira sentença, porque como veremos, a sentença final não é sentença nenhuma. O réu é disso notificado, sendo admoestado para confessar (II, XIV ,II). Os instrumentos do tormento mais usados eram a polé e o potro. Este tinha ao todo oito cordas que amarravam o réu, duas por cada membro; meio-tormento eram quatro cordas, uma por cada membro. Podia sofrer um ou mais tratos (apertos) e podiam ser espertos (rápidos) ou corridos (lentos). Estava presente o médico que julgava da capacidade para o réu aguentar o tormento.

O Regimento proibia o potro para as mulheres (II, XIV, VI), mas a norma muitas vezes não era observada (ver processo n.º 8413).

O n.º V diz muito barbaramente: “e sendo o réu começado a atar, irá o Notário fazer-lhe um protesto em  nome dos Senhores Inquisidores e mais Ministros que foram no despacho de seu processo, que, se ele no tormento morrer, quebrar algum membro ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se expõem àquele perigo, que pode evitar, confessando suas culpas e não será dos Ministros do Santo Ofício, que, fazendo justiça, segundo os merecimentos da causa, o julgam a tormento”.

Note-se que, em qualquer altura, o réu pode suspender quer o tormento, quer qualquer acção prevista, incluindo a execução, para fazer confissões. Mas, claro, os inquisidores tinham liberdade de avaliar a veracidade e a valia dessas confissões, pois, volta e meia, não as recebiam, isto é, não as consideravam válidas.

Importante é também notar que, após o tormento, o réu ficava impossibilitado de assinar fosse o que fosse (as maleitas derivadas do tormento duravam vários anos e as cicatrizes essas ficavam para sempre). Isso pode explicar como terminam certos processos.

O n.º VI referido manda anotar no processo a que dia e hora começou e quando acabou o tormento; mas tal indicação não aparece em muitos processos.

Se o réu confessasse no tormento, tinha de ratificar a confissão no dia seguinte ou depois, no que se chamava a ratificação ad bonum (II, XIV, IX).

A função principal do tormento era obrigar o réu a confessar. Mas por vezes o tormento tinha outras finalidades, por exemplo a de “purgar” as faltas dos réus, permitindo a sua libertação. Esta função está mal explicada no Regimento, tem apenas uma referência em II, XIII, XIII, onde se diz que, ainda que a falta seja purgada no tormento, o réu tem sempre de fazer a abjuração. Por isso é falso o que já alguém disse que os réus que não confessassem no tormento, eram absolvidos. A função purgatória do tormento deve ser estudada com base nos manuais dos Inquisidores da época.

 

CONSELHO GERAL

 

Se o processo subisse ao Conselho Geral, este despachava geralmente em termos mais lacónicos do que a Mesa da Inquisição. Não era forçoso que seguisse as recomendações da Mesa. Por exemplo, no processo de Francisco de Sá e Mesquita (Pr. n.º 11 300 da Inq. de Lisboa), ninguém na mesa votou por que o réu fosse relaxado como falsário e foi a essa a sorte que teve no Conselho Geral.

Note-se que no Conselho Geral não havia representante do Bispo.

No título XV do Liv. II, estão previstas duas notificações aos réus condenados por crimes de heresia nos números I e V. A primeira devia ser feita normalmente quinze dias antes do auto da fé e a segunda dois dias antes. Aos relapsos, aos confitentes e aos negativos, não se lhes fazia a primeira notificação.

A segunda notificação era feita apenas aos relaxados à justiça secular. Ao fazer a notificação, atavam-se-lhe as mãos. “Relaxar à justiça secular” era entregar o preso aos desembargadores que lavravam a sentença de morte. Os inquisidores não queriam sujar as mãos. Faziam-no com uma fórmula cheia de hipocrisia: “ e por herege e apóstata da nossa Santa Fé Católica, convicta, ficta, falsa, simulada, confitente diminuta, e pertinaz, a condenam e relaxam à Justiça secular, a quem pedem com muita instância se haja com ela benigna e piedosamente, e não proceda a pena de morte e efusão de sangue".”

 

Estas notificações são algo estranhas, porque não está prevista a assinatura do réu: é o Notário que certifica que os notificou.

Não são raros os casos em que o réu apenas nessa altura dá conta que está condenado à morte.

 

SENTENÇA

 

Vem a seguir no auto a sentença que havia de ser lida no auto de fé, assinada pelos dois inquisidores. Apesar do nome não é sentença nenhuma, porque a definição é o acto pelo qual se decide a causa principal do processo. Ora a decisão sobre o réu  está no assento da Mesa ou no assento do Conselho Geral, quando o processo ia à apreciação deste. A sentença dos processos da Inquisição é uma peça de propaganda, que nem sequer era secreta, porque era lida no auto da fé.  As "sentenças" têm muitas vezes inexactidões, exageros e hipérboles para impressionar o povo ouvinte. Em geral vêm escritas com boa caligrafia, mas têm muito menos valor como documento do que os Vistos da Mesa. É que por vezes os redactores apelavam à imaginação para narrar os pormenores da heresia do réu, as cerimónias, as convicções. E também estandardizavam a redacção das sentenças. Por exemplo, é comum deitar abaixo toda a defesa do réu, escrevendo apenas “e não provou coisa relevante”.  Uma vez que o destino do réu era decidido nos Assentos da Inquisição ou do Conselho Geral, a "sentença" no processo da Inquisição não é uma sentença, não tem valor jurídico.

No final da sentença deveria anotar-se a celebração do auto de fé, onde foi, data e hora, e quem esteve presente; mas tal não aparece nalguns processos.

Se o réu foi morto no auto de fé, acaba aqui o processo. Segue-se apenas a conta de custas.

Nos casos em que, apesar de tudo fica vivo, está a abjuração em forma ou de levi ou de vehementi conforme a gravidade das culpas. A seguir o termo de segredo.

Ainda o termo de ida e de penitências e por vezes a anotação do padre que confessou e deu a comunhão ao réu.

E, por fim, as contas de custas, algo misteriosas, porque dão a nítida sensação de que os montantes são bastante mais elevados para os réus que têm meios de fortuna.

Nalguns processos, vêm os réus pedir a comutação de penas mais dolorosas como o degredo para África ou para o Brasil ou ainda para as galés, geralmente alegando motivos de saúde. Quando a comutação ou dispensa é concedida, é exigida geralmente uma fiança prestada por alguém.

 

AS PENAS

Quais as penas aplicadas nos processos da Inquisição para além da pena de morte?

Mais ou menos por ordem de gravidade, eram:

1)      Cárcere perpétuo. Apesar do nome, o cárcere não era perpétuo (mas em certos casos, podia sê-lo). Em geral, davam liberdade ao preso, com a condição de se não ausentar da localidade.

2)      Cárcere a arbítrio. Praticamente como o anterior. Podiam sempre mandar prender o réu em qualquer altura.

3)      Degredo para o Brasil, São Tomé, Angola ou para uma localidade do Continente, por X anos.

4)      Degredo para as galés por X anos. Como não havia galés, iam fazer trabalhos pesados para cadeia penitenciária de Lisboa.

5)      Açoites em público.

 

PENA PECUNIÁRIA -  Artigo II, III, IX: Aos réus que abjurarem, poderá ser aplicada uma pena pecuniária de qualquer montante, desde que não exceda a terça parte dos seus bens. Como e evidente a Inquisição aplicava esta pena com frequência aos abastados que passavam pelos cárceres.

 

COMO CONSULTAR MAIS RAPIDAMENTE OS PROCESSOS

 

Como se disse acima, as peças mais importantes são os vistos da Mesa da Inquisição e os assentos do Conselho Geral. A genealogia tem interesse para cruzar a informação com os processos dos familiares do réu.

As culpas têm um interesse relativo, já que os conteúdos, no que respeita aos cristãos novos, pouco variam. Quando muito deverá atentar-se nas culpas que são indicadas em testemunhos que são aferidos com um crédito diferente do ordinário, isto é, ou mais elevado ou diminuto.

A defesa e as contraditas também de pouco servem, a menos que o Visto diga que conseguiram diminuir o crédito das testemunhas.

 

ESTATÍSTICAS

 

São erradas estas duas maneiras de estudar a Inquisição:

- a primeira é fazer estatísticas, pois cada caso é um caso que merece estudo individual.

- a outra é a de andar à procura de curiosidades mais ou menos folclóricas. Nos Anais da Academia Portuguesa de História II Série vol. 41, de 2003, pag. 144 o Autor anota que “no processo de Maria de Melo Rosa (Pr. n.º 998, da Inq. de Lisboa) é referenciada a Procissão das Curreleiras”, mas sem nenhuma menção ao facto de ela ter sido uma jovem barbaramente assassinada pela Inquisição aos vinte e poucos anos.

 

 

 

 A Inquisição em Portugal neste site: www.arlindo-correia.com/100612.html

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1613

Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/1/19/p56

 

Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640

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Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Edições Colibri – CIDEHUS/UE, 2010. ISBN 978-989-689-039-1.

 

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