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Cresci
a Sentir Que Era Uma Pessoa Má
ALEXANDRA
LUCAS COELHO
Violentos
como (auto)punhaladas, os poemas da indiana Eunice de Souza são uma
revelação. O apelido é português, a origem de Goa, a língua
inglesa. Em tradução de Ana Luísa Amaral.
Como
professora catedrática, "uma lenda implacável", como crítica
literária, "feroz", como poeta, simplesmente, "uma
das mais melhores da Índia, em língua inglesa". Sari de seda
cinza, olhos delineados a negro, Eunice de Souza, 60 anos, está
tranquilamente sentada para a quarta ou quinta entrevista da sua
primeira estadia em Portugal.
Também
autora de ficções para crianças e de antologias de mulheres
poetas indianas, esta descendente de goeses, educada na Índia britânica
(Poona e Bombaim) como uma brâmane católica, veio lançar
"Poemas Escolhidos", selecção a partir dos seus quatro
livros de poesia publicados.
Comparam-na
com Sylvia Plath? Talvez sem o arsenal lírico e com um punhal mais
agudo. Não meteu a cabeça no forno. Mas tentou morrer.
Surpreendeu-se a acordar na manhã seguinte. "Pensava que o
mundo inteiro / me tentava desfazer". Então descobriu:
"era isso o que eu queria / fazer ao mundo".
No
título de um dos seus poemas, avisa: "Não procures a minha
vida nestes poemas". Mas o que prevalece na sua poesia é um
registo autobiográfico, com referências à mãe, ao pai, a quem a
rodeou. É a sua vida. Claro. Escrevi esse título porque existe a
tendência na Índia para acreditar que se lemos os poemas de alguém
sabemos tudo sobre a sua vida. Mas as memórias são selectivas, e o
que tento dizer é que o poeta cria uma "persona". A vida
de cada um é muito caótica, e os poemas são uma ordem. A ironia,
a violência recorrentes nos seus poemas são acentuadas por essa
referencialidade autobiográfica. É de si que fala, cruamente, sem
complacência. O primeiro livro [no original, "Fix",
1979"] é muito violento. Isso vem da minha história pessoal.
Perdi o meu pai muito nova, com três anos.E escreve: " Pronto,
aí vem. / Matei o meu pai quando tinha três anos." Creio que
quando alguém próximo morre, uma criança se sente sempre culpada.
Cresci a sentir que era, de certa forma, uma pessoa má, de quem
ninguém podia gostar. O ambiente em casa, entre os meus avós, era
muito autoritário... O que lhe explicaram dessa morte? Nada. Depois
em relações amorosas tive sempre esse medo, de que ninguém
ficaria comigo. O que acontece quando se está assim superansioso
numa relação, é que se fazem muitos erros, e de facto as pessoas
acabam por partir... Em vários poemas, há quase uma auto-flagelação
- "Eu pertenço aos patos feios" ; "Estúpida vaca
sem soutien", "Estou fascinante de vermelho e negro / e
com um colar de caveiras"... Sobretudo nos dois primeiros
livros. No primeiro, a capa tem uma cruz sobre a minha cabeça...
... como um cerco sufocante em torno de uma rapariga que cresce, e
se sente deslocada o tempo todo. Sim. A minha comunidade, a dos católicos
goeses, era sufocante. Agora parece infantil, mas olhando para trás...
eu era sempre demasiado calada, ou demasiado baixa... não tinha irmãos,
quando o meu pai morreu fomos viver com os meus avós, em Poona,
cresci com pessoas muito mais velhas, tios e tias, não havia crianças.
Não conseguia encontrar ninguém da mesma natureza que eu, só
quando cresci tive gente com quem falar do que me interessava.
Passei a maior parte do tempo a ler, sozinha. O meu pai tinha umas
centenas de livros, incluindo uma selecção dos clássicos
ocidentais. Ele lia muito, julgo que estava a tentar ser um escritor
- trabalhava para o governo, quando eu era pequena vivíamos no
centro da Índia, foi aí que ele morreu, de uma doença incurável
a que chamavam febre da água negra. Um dia estava a arrumar as
coisas dele e encontrei um caderno de notas com contos e poemas. Os
contos eram bastante interessantes. Não sabia nada dele, e guardei
esse caderno até hoje. É nas referências à sua mãe que
encontramos alguns dos pontos mais brutais, como no remate de
"Perdoa-me, mãe": "Em sonhos / fustigo-te"
["I hack you, no original, ferir, cortar à machadada]. Era uma
relação muito ambivalente. Eu tinha algum medo dela, porque ela
era muito severa, mas também tinha pena. E um sentimento de protecção...
Nesse poema, parece haver uma espécie de entendimento tardio do que
ela sentiu, e afinal o fim é terrível. É como querer matar alguém
porque está demasiado na nossa vida, alguém de quem nos queremos
livrar. Depois, em "Ela e eu", há um fragmento de lirismo
pouco frequente na sua poesia, quando ela lhe fala do seu pai,
"dos / quadros que ele amava, / e um lugar esquecido / onde caíam
flores azuis". Nunca falávamos dele, nunca perguntei nada. Foi
como se o inventasse. Ele não me parece muito real, tenho muita
dificuldade ainda hoje em falar dele. É quase embaraçoso, tenho
que me forçar. Tenho a memória de alguém que me costumava sentar
nos joelhos, me levava a passear de elefante, e eu não sabia quem
era, só que não era nenhum dos meus tios. Em vários poemas, faz
uma síntese do silêncio e exclusão das mulheres da sua
comunidade. Como: "Pilar da Igreja / diz o padre da paróquia /
Que Linda Família Católica / diz a Madre Superiora // a mulher do
pilar / não diz nada." Eu não conhecia a palavra feminismo. Só
sentia fúria. As mulheres não tinham controle sobre a natalidade,
casavam muito cedo, como a minha avó, com 14 anos, esperava-se
delas que tivessem muitos filhos. Foi só com vinte e tal anos que
percebi que muitos dos meus poemas eram de alguma forma feministas.
A
maior parte das mulheres que conheço são muito mais fortes que os
homens, mais maduras, mais pacientes. Os homens são tão mimados
desde jovens que se tornam infantis. As mulheres obedecem-lhes e
ouvem-nos, mas da mesma forma que lidariam com uma criança. E
quando se tornam viúvas, florescem, tornam-se mais alegres, são
livres. Vi isso na minha família, mulheres deprimidas durante anos
que, quando os maridos morrem, se tornam felizes. Diria que nos últimos
20, 30 anos, houve uma evolução na forma como as jovens são
educadas? Vi nas minhas alunas que muitas não queriam casar cedo.
Uma contou-me que o seu noivado fora rompido, e que a forma que
encontrou para lidar com isso foi ler os meus poemas, sentiu que não
era uma desonra assim tão grande. Eu não sou casada, conduzo a
minha vida, de certa forma, com sucesso, é como se fosse uma outra
possibilidade para elas. Uma das mulheres do livro é a sua tia
"educada à portuguesa" que "pegou num shivalingam de
barro / e disse: / É um cinzeiro? Não, disse o vendedor, / É o
nosso Deus." Breve e devastador. O que era ser "educada à
portuguesa? Quis mostrar duas culturas que coexistem e não se
entendem. Antes de Goa voltar para a Índia, para os goeses,
indianos eram os que estavam na Índia, desconfiavam de quem usasse
sari, de quem não falasse português. Entretanto, quando cresci,
descobri que a minha comunidade católica também desprezava os
indianos hindus. E, no entanto, tínhamos o mesmo sistema de castas,
e uma brâmane católica não casa com católicos de outras
castas... O que conhece da língua portuguesa? Quase nada. O meu avô
costumava usar a palavra "malcriado", quando estava
aborrecido com alguém. Também me lembro de...
"sossegado"...? A minha família converteu-se do hinduísmo
ao catolicismo, provavelmente no século XVII. Com a inquisição em
Goa, muita gente foi forçada a isso, por medo. Quem converteu a
minha família, deu-lhe o apelido de Souza, então muito comum.
Muitos goeses foram partindo para a Índia britânica, os meus avós,
de ambos os lados, também. Quando eu era pequena, só voltávamos a
Goa nas férias grandes.
Suplemento
Mil Folhas, PÚBLICO, 14 de Abril de 2001
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