10-4-2006
Inácio de Morais
(1507 ? - 1580)
Inácio de Morais ou Ignacio de Moraes nasceu em ano indeterminado do início do sec. XVI, em Bragança, sendo filho de Pedro Álvaro de Morais, de boa linhagem mas com família numerosa. Ignoramos onde fez Inácio de Morais os estudos preparatórios, mas sabemos que foi estudar para a Universidade de Paris, com o que hoje chamaríamos uma bolsa do Rei D. João III, por volta de 1527. Ali se formou em Artes, com o grau de Mestre em 1530. Durante algum tempo, frequentou em seguida a Universidade de Lovaina, que, por essa altura, teve também como alunos André de Resende, Damião de Góis, Frei Brás de Braga e Frei Diogo de Murça, personalidades com que Inácio de Morais se cruzou mais tarde. Deverá nomeadamente nessa altura ter ficado amigo de André de Resende.
Segundo Mário Brandão, em 1535, já Inácio de Morais se encontrava no Mosteiro de Belém, ensinando latim aos religiosos de S. Jerónimo. Em Outubro de 1536, é dado como mestre no colégio do Mosteiro da Penha Longa, nos arredores de Sintra. Para ali mandou D. João III a seu filho D. Duarte (1523 – 1543) e ao filho do Infante D. Luís e neto de D. Manuel I, D. António (mais tarde Prior do Crato) (1531-1595) para receberem os ensinamentos de Mestre Inácio. Por pouco tempo, pois em 1537 Mestre Inácio e o seu aluno Duarte foram mandados para o Colégio de Santa Marinha da Costa, perto de Guimarães, para onde foi transferido o Colégio da Penha Longa. Inácio de Morais era professor de Retórica. Não o foi por muito tempo, pois em 1539 ou 1540 era já professor de Gramática nos Colégios do Mosteiro de Santa Cruz.
De facto, em 1537, D. João III transferira de Lisboa para Coimbra a Universidade e interessava-se muito pelo governo desta.
Após um dissídio com Mestre Luís Álvares Cabral, de que voltaremos a falar, Inácio de Morais regressa, possivelmente em 1541, ao Colégio de Santa Marinha da Costa, agora para ensinar D. António, o futuro Prior do Crato.
Entretanto, D. Duarte abandona o Colégio em 1543, o mesmo acontecendo pouco depois com D. António. D. João III desinteressa-se do Colégio de Guimarães e nomeia o seu Director, Frei Diogo de Murça, Reitor da Universidade de Coimbra.
Por provisão de 30 de Setembro de 1546 (cf. Mário Brandão), D. João III encarrega Inácio de Morais de reger a cadeira de Poesia.
Possivelmente algo ressentido com os elevados proventos que via auferir os seus confrades causídicos, Inácio decidiu em Março de 1548 frequentar o curso de Jurisprudência Cesárea, como se chamava na altura o Direito Civil. Em 26 de Julho de 1554, ficou bacharel em Leis, “nemine discrepante”.
Em Outubro de 1550, Inácio de Morais foi escolhido pela Universidade para proferir a Oração de recebimento de D. João III na sua visita oficial à Universidade. A visita e o discurso tiveram lugar em 8 de Novembro. A Oração foi impressa, mas sem ano de edição.
Entretanto, casou com D. Ana Mendes, de quem teve duas filhas e um filho.
Após o bacharelato em Leis, Inácio de Morais desempenhou vários cargos ligados à administração da Universidade e deu ainda aulas nalguns Colégios. Mas nunca teve vida fácil nem proventos substanciais. Algumas das suas obras foram mesmo impressas a expensas de seu amigo Pedro Sanches, que lhe dedicou um importante poema em que elenca os poetas portugueses (De poetis Lusitanis - Corpus illustrium poetarum lusitanorum, 1.º vol. do P.e António dos Reis, Lisboa, 1745) e que tem a forma de carta e é conhecido como Epistola ad Ignatium de Moraes:
Quid tibis, Moralis, sublimia carmina prosunt? Carmina Cinctutis merito laudanda Cethegis! Quid dulces elegi? Quid salsa epigrammata? Qui uel Archilochi numeri, nullo iam sanguine tincti? Num tibis quis misis terso pro carmine libram argenti? Num uina dedit? Num munus aristae? Aut tunicam pexam, crepidas, tritosue cothurnos? Choerilus ut quondam Pellaeo carmina Regi non bene tornata offerret, tamen ille Philippos incomptus multo set munera larga recepit; et tu, qui multo meliora poemata pangis, saepe fame obscaena palle set frigore saepe horres, cum Boreas gelida bacchatur ar Arcto. (vv. 17-29)
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De que te valem, ó Morais, sublimes cantos? Cantos que merecem os louvores dos priscos Cetegos! De quê, os doces versos elegíacos? De quê, os picantes epigramas? Ou de quê, os ritmos de Arquíloco, destingidos agora de sangue? Por ventura, alguém te enviou uma libra de prata, em troca dum poema escorreito? Te deu vinhos? Presentes de trigo? Ou uma túnica felpuda, sandálias, ou umas botas gastas? Quérilo como outrora oferecesse ao Rei natural de Pela, cantos mal torneados, apesar de mal amanhado, recebeu muitos filipos e largos presentes. E tu que produzes muito melhores poemas, muitas vezes andas pálido de vergonhosa fome, muitas vezes andas eriçado de frio, quando Bóreas desenfreado sopra do lado da gélida Ursa.
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Tradução do Prof. Américo da Costa Ramalho (1985). |
Como refere Mário Brandão, o facto de ser leigo só prejudicava os réditos de Inácio de Morais. Não só lhe faltava o amparo material dos conventos como não tinha também os pingues rendimentos das comendas eclesiásticas de outros professores clérigos ou frades.
Inácio de Morais enviuvou em 24 de Maio de 1579 e, logo a seguir, foi para o Mosteiro de Alcobaça “ler” aos frades, vindo a falecer pouco depois da derrota militar de D. António, Prior do Crato, em Agosto de 1580 e da passagem de Portugal para o domínio de Espanha.
Segundo diz quem sabe, Inácio de Morais foi um bom poeta latino. A maior parte das suas composições são de homenagem às personalidades a quem devia atenção ou favores. Mas escreveu também cartas e versos aos seus amigos.
A sua obra mais conhecida é o Encomium Conimbricæ uma homenagem à cidade que muito amava e que descreve em detalhe, de tal modo que Teófilo Braga usa o poema para ajudar a documentar a Universidade do sec. XVI. Transcrevi o Encomium aqui, embora não exista ainda uma boa tradução, que, naturalmente, terá de ser convenientemente anotada em relação aos locais mencionados no poema.
Entre os amigos de mestre Inácio, merece relevo Jerónimo Cardoso, a quem dedicou estes versos, aqui reproduzidos também na tradução do Prof. Justino Mendes de Almeida (ver bibliografia):
IGNATIUS MOREUS AD AUTOREM
Quam bene depinget pulchros Cardosus honores Musaram ! ut dulce manat ab ore lepos! Quanta demulcet mentis dulcedine fandi Et novit Veterum scripta vetuta virum. Quidquid Grammatici docti scripsere Magistri Quidquid Aristoteles protulit, atque Plato. Quidquid doctores legum, Jurisque periti, Ei quidquid demum Græcia docta tulit. Protulit in lucem multis celata tenebris. Quæ simul exornat floribus ipse suis. Nunc Cicero est visus; sed si non fallor amore Alter Virgilius postmodo visus erit.
AD EUNDEM
Seu cupis Orator prosam, seu scribere carmen, Tullius es prosa, Carmine Virgilius. Carmina componas, seu scribas verba soluta Alter Virgilius, Tullius alter ades.
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INÁCIO DE MORAIS AO AUTOR
Quão bem pinta Cardoso os dons amáveis Das Musas: como a graça dimana da sua pena suave! Com que doçura de estilo afaga os espíritos E como conhece bem a obra antiga dos antigos escritores! Tudo o que nos legaram os eruditos gramáticos, Tudo o que Aristóteles e Platão escreveram, Doutores em leis e demais juristas, Enfim, todo o legado da douta Grécia: Das trevas traz à luz os primores Que o seu talento ainda enriquece: Já lembra Cícero mas, se me não ilude a paixão, Logo a seguir outro Virgílio parecerá.
AO MESMO
Se como orador fazes prosa, ou como poeta verso, És Túlio na prosa e Virgílio no verso. Quer componhas poesias quer escrevas prosa, És um segundo Virgílio, um segundo Túlio.
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Referiu-se a Inácio de Morais, André de Resende, na sua Conversio Miranda D. Aegidii Lusitani, Doctoris Parisiensis, Ordinis Prædicatorum, sem dúvida uma obra de ficção, em que o autor conta a vida de S. Frei Gil (de Santarém ou de Vouzela, conforme as perspectivas), através de uma conversação entre ele próprio, Luís Pires, médico e poeta, de Évora e Inácio de Morais. Pelo meio, faz uma apreciação muito positiva de mestre Inácio:
...insperato pulsauit fores Egnatius Moralis, unus ex bonarum litterarum Conimbricæ professoribus, cum quo mihi peruetus est amicitia, homo sane honestis præditus disciplinis, ut si quis apud nos alius, certe in poetica, uenæ facillimæ, et Ouidianæ, ad quam se componit, tam similis ut qui ubiuis gentium maxime. ...............................................
Tum ille, ut est ad carmina pangenda prompto peruelocique ingenio, ita me digito demonstrato cœpit:
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...,eis que bateu inesperadamente à porta Inácio de Morais, professor de Belas-Letras em Coimbra, ao qual me liga uma amizade muito antiga; homem verdadeiramente dotado de excelente formação, como não há outro entre nós, é sem dúvida na poética que os seus dotes se evidenciam, com o seu estilo tão fluente e de clara inspiração ovidiana, como não há outro no mundo.
Nessa altura ele, com o seu talento natural para fácil e rapidamente fazer versos, começou a recitar assim, apontando para mim com o dedo indicador:
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Tradução de Aegidius Scallabitanus, Um diálogo sobre Fr. Gil de Santarém, tese de doutoramento da Prof. Virgínia Soares Pereira, cuja autorização para a sua reprodução nesta página se agradece. |
Os factos que conhecemos da vida de Inácio de Morais, permitem-nos indicar alguns traços do seu carácter:
1 – Fazia amigos com facilidade, como prova a sua correspondência em latim com os seus confrades e os poemas trocados com Jerónimo Cardoso, Pedro Sanches e Miguel de Cabedo, entre outros.
2 – Sendo embora professor, não deveria gostar muito da profissão, dura e pouco rendosa. Veja-se o grande número de faltas que dava às aulas e o diferendo com os alunos da “segunda regra” de Gramática (1540) nos Colégios de Santa Cruz, que abandonaram as suas aulas, por acharem a matéria demasiado difícil.
3 – Era homem de bom feitio, não guardava rancores. Apesar das fricções com Mestre Luís Álvares Cabral, superintendente nos Colégios de Santa Cruz que se pôs ao lado dos estudantes no diferendo referido no número anterior, Inácio de Morais escreveu um panegírico na sua morte Ludouici Alvaris Tumulus (Virgínia Soares Pereira, p. 40, nota 29).
4 – Era um homem com sentido de humor e bom companheiro, como prova ter sido escolhido por André de Resende para interlocutor na Conversio Miranda acima referida e também o teor das intervenções que no livro lhe são atribuídas (cf. Virgínia Soares Pereira).
5 – De vez em quando, era algo atrevido nas suas posições. Por exemplo, ele intitula a sua elegia à morte de D. João III (1502-1557), Oratio funebris in interitum serenissimi regis Ioannis ad patres conscriptos Conimbricæ Academiæ, quando afinal os oradores escolhidos oficialmente pela Academia para as cerimónias fúnebres foram o doutor Belchior Cornejo para o dia das exéquias e o doutor Manuel da Costa para as “vésperas”.
OBRAS PRINCIPAIS (segundo a Bibliotheca Lusitana)
1 - M. T. Ciceronis Prœmium Rhetoricæ. Dicatum Nobilíssimo Iuveni Petro Lupo Sousæ.
Não tem lugar de impressão. Composto em versos elegíacos.
2 - Oratio Panegyrica ad invictissimum Lusitaniæ Regem D. Ioannem III. nomine totius Academiæ Conimbricensis in eiusdem scholis habita ipsa Regis coniuge augustissima Diva Catherina Lusitaniæ Regina et regni hærede Príncipe filio D. Ioanne Sereníssimo, eiusdemque Regis Sorore Diva Maria Sereníssima præsentibus.
Não tem ano de edição. No fim está uma Ode Sáfica a El-Rei D. João III. de eius urbem Conimbricam adventu.
3 - In interitum Principis Ioannis elegiæ duæ; item cum eiusdem duobus epitaphiis. Deplorat Ioanna suavissimum maritum.
Elegia Latina. Outra elegia que tem por argumento Ioannes Princeps recenti fato functus et Maria eius Soror in Olympo colloquuntur. Outra. Ad nascentem prolem Serenissimæ Ioannæ.
4 - Conimbricæ Encomium. Sereníssimo Principi D. António fortissimi Principis D. Ludovici Portugalliæ Infantis filio. Conimbricæ apud Ioannem Barrerium Typ. Reg. 1554
Consta de uma descrição excelente da Cidade de Coimbra em versos elegíacos.
5 - Oratio funebris in interitum Regis Ioannis ad Patres Conscriptos Conimbricensis Academiæ.
Conimbricæ apud Ioannem Aluarum. Typ. Reg. 1557. No fim tem uma Elegia e 4 Epitáfios.
6 - In quosdam Dialecticos, ac Grammaticos pró iureperitis cármen,et alia quædam eiusdem poemata.
Conimbricæ apud Ioannem Barrerium. 1562.
Outras obras:
7 - In interitum Antonii Cabedii celeberrimi poetæ, Ignatii Moralis elegia.
Pubicado na edição de 1597 de De antiquitatibus Lusitaniæ, de André de Resende
As obras indicadas sob os n.ºs 2, 5, 3, 6, 1 e 7 e ainda outros textos e diversos poemas foram reproduzidos (por esta ordem) e traduzidos pelo Prof. Doutor Aires Pereira do Couto (2004) na sua tese de doutoramento - pgs. 269 a 619.
Obras desaparecidas, conforme Aires Pereira do Couto (2004):
Epithalamium Serenissimorum Principum Ioannis et Ioannæ.
sem lugar nem ano de impressão.
Panegyris D. Antonio Principis Ludovici filio.
Conimbricæ apud Ioannem Barrerium. Typ. Reg., 1553.
In interitum Principis Ludovici elegia cum epitaphio.
Conimbricæ apud Ioannem Alvares. 1555.
BIBLIOGRAFIA - (textos consultados)
1979 – Américo da Costa Ramalho, A conversão maravilhosa do português D. Gil: um diálogo latino quase ignorado, da autoria de André de Resende, sep. da Rev. da Universidade de Coimbra, vol. XXVII, pp. 239-262.
1985 – Américo da Costa Ramalho, Latim renascentista em Portugal, Antologia, INIC – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade, Coimbra, 242 pgs.
1994 – Américo da Costa Ramalho, Notas sobre a biografia de Inácio de Morais, in Para a História do Humanismo em Portugal, vol. II, pgs. 133-150, Fundação C. Gulbenkian, JNICT.
2004 – Aires Pereira do Couto, Inácio de Morais – Percurso biográfico e literário de um humanista de quinhentos, Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Fundação C. Gulbenkian, F.C.T., Ministério da Ciência e do Ensino Superior, 680 pgs. ISBN 972-31-1089-X
André de Resende, Aegidius Scallabitanus, Um diálogo sobre Fr. Gil de Santarém, Estudo introdutório, edição crítica, tradução e notas de Virgínia Soares Pereira. Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas, Fundação C. Gulbenkian, F.C.T., Ministério da Ciência e da Tecnologia, 762 pgs., ISBN 972-31-0895-X
Mário Brandão, Inácio de Morais, in Mário Brandão (1900-1995), Estudos Vários, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1972, 2 vols., 1.º volume, pgs. 277-207
Carlos Ascenso André - Mal de ausência: o canto do exílio na lírica do humanismo português, Livraria Minerva, Coimbra, 1992, ISBN 972-9316-42-2
1996 – Aires Pereira do Couto, Inácio de Morais e António de Cabedo: uma amizade prematuramente interrompida pela Parca, in Máthesis n.º 5, pgs. 265-276
online: http://www4.crb.ucp.pt/biblioteca/mathesis/Mat5/mathesis5_265.pdf
1998 - Aires Pereira do Couto, Troca de correspondência entre Jerónimo Cardoso e Inácio de Morais, in Máthesis n.º 7, pgs. 97-115
online: http://www4.crb.ucp.pt/biblioteca/mathesis/Mat7/mathesis7_97.pdf
1998A - Aires Pereira do Couto, As obras dispersas e pouco conhecidas de Inácio de Morais, in Humanitas, n.º 50, 1998, tomo II, pags. 785-818
2000 – Virgínia Soares Pereira, A veia retórica de Inácio de Morais ou Os tons ovidianos de um infelix vates, in Congresso – A Retórica Greco-Latina e a sua perenidade (Coimbra, 11-14 de Março, 1997), José Ribeiro Ferreira (coord.), Edição da Fundação António de Almeida, Porto, pgs. 753-769.
Comunicação e Cultura na epistolografia do Renascimento
Luís Miguel Oliveira de Barros Cardoso
Escola Superior de Educação de Viseu
online: http://www.ipv.pt/forumedia/f2_idei5.htm
Ver o Encomium Conimbricæ, aqui