10-1-2016

 

 

A Inquisição de Goa

 

 

Não tenho a pretensão de fazer a história da Inquisição de Goa. Nem vou mesmo dedicar-me ao estudo desta temática. Porém, encontrei há dias nos manuscritos de António Joaquim Moreira  (http://purl.pt/15393/3/ no 1.º volume de Goa – quatro páginas finais), a carta do vice-Rei João de Saldanha da Gama, dirigida ao Rei em 19 de Dezembro de 1729. Transcrevo-a a seguir. Depois disso, encontrei-a publicada pelo menos nestes três livros

- Narração da Inquisição de Goa, de Miguel Vicente d’Abreu, Nova Goa, 1866

- Archivo Portuguez Oriental, 1857-1877

- Sumário de vária história, 1872-1875.

É, por isso, um documento que impressionou quem o leu nos séculos passados.

Diz ele: “Não sei o Regimento que a Inquisição tem para conhecer de culpas de homens que nunca foram católicos (…)”

A mesma ideia surge num manuscrito do final do séc. XVIII, citado por Jordão A. de Freitas no artigo com o título “A Inquisição em Goa. Subsídios para a sua história”, publicado no Archivo Histórico Portuguez em 1905. O manuscrito deve ser de 1778, quando foi reposta a Inquisição em Goa, depois de ter sido suprimida em 1775 e contém estas duas afirmações (resumidas):

 

A licença para introduzir a Inquisição na Índia foi dada por D. João III, com a expressa cláusula de que a instituição apenas perseguiria os que tivessem entrado para o Grémio da Igreja Católica Romana, dando-se a todos os mais uma perfeita liberdade de consciência.

………………………………+……………………………..

 

A cláusula da inicial introdução da Inquisição foi riscada logo após a morte de D. João III, não se tolerando mais o culto de outras religiões.

 

Uma leitura (mesmo apressada) das listas dos autos da fé de Goa, permite-nos também concluir que as manifestações de gentilidade ou gentilismo eram castigadas pela Inquisição, independentemente de os seus autores serem ou não baptizados.

E que no início da Inquisição não era assim, prova-o também o texto de François Pyrard, escrito no início do séc. XVII o qual depois de dizer da inquisição de Goa “c’est la plus cruelle et impitoyable chose du monde que cette justice », escreve:

« Les Gentils et Mores Indiens, de quelque religion que ce soit, ne sont sujets à cette inquisition, si ce n’était qu’ils se fussent faits Chrétiens; mais ils ne sont repris si rigoureusement que les Portugais, ou Chrétiens nouveaux vénus de Portugal et tous autres Chrétiens d’Europe. Mais si d’aventure un Indien, More ou Gentil habitant de Goa, avait diverti ou empêché un autre qui aurait eu volonté de se faire Chrétien, et que cela fut prouvé contre lui, il serait repris de l’inquisition, comme aussi celui qui aurait fait quitter de Christianisme à un autre, comme il arrive assez souvent. La cause pourquoi ils ne traitent ces Indiens si rigoureusement, c’est qu’ils pensent qu’ils ne peuvent être si fermes en la foi que les vieux Chrétiens; aussi que cela empêcherait les autres de se converti: De sorte même qu’ils leur laissent encore quelques petites superstitions Gentilles ou Mahométanes, comme de ne manger chair de porc ou de vache, ou ne boire vin, avec leurs anciens habits et ornements, tant aux hommes qu’aux femmes Chrétiennes. «  (pag. 96 do 2.º vol.).

As coisas alteraram-se para pior depois disto.

Todos os autores são uniformes em afirmar que a Inquisição foi introduzida em Goa para perseguir os cristãos novos que tinham ido do Reino. Durante algum tempo, foi para eles um refúgio seguro, que deixou de o ser quando apareceu a Inquisição.

Introduzida esta, começaram as prisões dos cristãos novos e começaram também eles a fugir à perseguição. Ou foram para territórios da Índia não dependentes de Portugal ou regressaram à Europa, não para Portugal, mas para Espanha ou para Itália. Alguns fizeram mesmo a viagem por terra.

Quando já não havia ou eram poucos os cristãos novos, começaram as prisões dos gentios e Mouros, em quantidades tais que atingiram ¾ dos penitenciados nos autos da fé.

Assim, é inaceitável a afirmação  de M.ª de Jesus dos Mártires Lopes no artigo da STUDIA, pag. 255: “O Santo Ofício castiga precisamente aqueles gentios que, tendo-se convertido ao catolicismo, mantêm laivos de gentilidade; (…)”. Claro que não é verdade (que castigasse apenas os baptizados). Basta desfolhar as listas dos autos da fé.

O meu problema é este: Por que razão os Inquisidores estenderam a sua acção repressiva a toda a espécie de gentilismo e gentilidades de quem não estava obrigado a cumprir e respeitar os mandamentos da Religião Católica.

A razão verdadeira, sei muito bem qual foi: começaram a diminuir os cristãos novos para serem presos, a Inquisição teve necessidade de alargar o seu campo de acção, para justificar a sua existência e por isso atacou gentios e Mouros. Não pode deixar de ter sido assim.

Mas gostaria de saber os argumentos que a própria Inquisição utilizou para fazer este “alargamento”, qual é a racionalidade que lhe está subjacente, qual o pretexto utilizado.

Não tenho resposta, mas apenas me preocupa esta interrogação. Seria que gentios e Mouros eram condenados porque o seu comportamento escandalizava os católicos? Seria que os Inquisidores entendiam que todos se tinham de se converter ao Cristianismo pelo facto de serem súbditos do Rei Católico de Portugal? Nada disto me parece relevante para justificar as prisões de quem não era crente católico nem tinha obrigação de o ser.

A terminar, queria apontar uma característica dos autos de fé de Goa: o grande número de relaxados em estátua, falecidos nos cárceres. A carta do Vice-rei sugere que muitos morreriam de inanição, por se recusarem a comer. De facto, havia restrições tradicionais que obrigavam a não ingerir comida preparada por outras castas.

 

 

 

Representação do Vice-Rei da Índia, João de Saldanha da Gama, contra o procedimento da Inquisição de Goa.

 

Senhor,

Toda a ruína deste Estado consiste visivelmente na falta de comércio, e esta falta provém de dois motivos:

É 1.º o horror que todos os mercadores, que só são gentios e mouros, têm ao procedimento do Santo Ofício, não só pela diabólica paixão, com que sentem serem ultrajados os seus ritos, mas também pelo que padecem nos cárceres, aonde escolhem morrer, por não alterarem as cerimónias  de não comerem e beberem diante dos Cristãos, nem vianda preparada por mão de pessoas que não sejam da sua casta; e, sendo muitas as que entre si têm, não pode haver cárceres separados para tantas castas.

O 2.º motivo provém da violência das presas de que já dei conta a Vossa Majestade, como consta da cópia que remeto. Estes mesmos mercadores padecem entre as mais nações, assim Asiáticas como Europeias, maiores violências: entre as Asiáticas, compram os Governadores os domínios com a liberdade de lhes tirarem com violência os cabedais, e com o estrépito de os açoitarem, de pendurarem com as cabeças para baixo, metendo-lhas em sacos de cinza para que não possam respirar; cortando-lhes pés e mãos, até lhes tirarem o cabedal, que comummente têm escondido; entre os Europeus, em constando que algum tem cabedal, lhes afectam crimes de infidelidade e os confiscam; e, reconhecendo os ditos mercadores que nos domínios de Vossa majestade não padecem violências, incitam-nos com tudo e, possessos do demónio com amor da sua religião e ritos, se sujeitam a estas violências, e as escolhem, desamparando e largando os domínios de Vossa Majestade, e povoando as fábricas e os comércios dos Ingleses e Franceses: não deixam de suspirar os domínios de Vossa Majestade, reconhecendo a equidade e igualdade da justiça e das leis portuguesas, propondo só a liberdade de não serem punidos pela Inquisição, em caso de que eles façam as suas cerimónias às portas fechadas sem escândalo do público nem em concurso de Cristãos, porque nestes dois casos se sujeitam a serem punidos. Pedem também que não se admitam no Tribunal do Santo Ofício testemunhas da sua casta, que os acusem do que fizeram em sua casa, e alegam que não se faz crível, que por zelo da Religião Católica, os acusem os professores da sua mesma idolatria, e se segue desta consideração que as paixões ou os interesses particulares são os que os movem.

Estas as condições com que todos os mercadores se oferecem a vir com os seus navios e as suas famílias, frequentar os portos e os domínios de Vossa Majestade.

Não sei o Regimento que a Inquisição tem para conhecer de culpas de homens que nunca foram católicos e vejo sim, que, pela excessiva quantidade de presos desta qualidade está despovoada toda a Província do Norte, perdida a admirável fábrica de Tannoy, que hoje se começa a estabelecer em Bombaim, de onde os Ingleses levam todos os cameliões [1]  de seda e lã, de gorgorães [2], lenços de seda e picotilhos [3], que introduzem nessa Corte; vejo mais que os Comissários do Santo Ofício são muitos e comummente Frades, não procedem como devem, ainda que alguns, por minha ordem se depõem e outros são castigados pelos mesmos Inquisidores.

O meu parecer, Senhor, é que Vossa Majestade ordene aos Inquisidores não procedam contra os gentios e mouros, que fazem alguma cerimónia em sua casa, sem escândalo do público, nem concurso de Cristãos, nem por testemunhas de suas mesmas castas; e que esta ordem de Vossa Majestade se mande publicar em toda a parte, pois estou persuadido bastará para que todos os ditos mercadores, fabriqueiros e vargeiros se recolham aos domínios de Vossa Majestade.

Também me parece, que deve Vossa Majestade ordenar que os cartazes [4] das presas se passem sem mais taxa que a de irem aos portos inimigos do Estado, porquanto os cavalos que eles transportam não são os de que necessitam para a guerra, por serem inumeráveis os que têm nos seus domínios, dos quais põem em campo todos os anos 500 e  600 mil; e os tais que lhe vêm da Pérsia, e Arábia, são de Corte e de regalo. Concedido assim como eles pretendem, não haverá barco algum de mercador asiático, que não tome cartaz, nem venha a fazer negócio a este porto; no preço dos cartazes, que se lhes pode aumentar, crescerão as rendas do Estado e serão maiores os interesses das Alfândegas.

Damão se acha já hoje com 28 pallas [5], fora outras tantas embarcações ligeiras, somente porque tem d’outra parte do domínio estranho, uma povoação debaixo de nossa protecção, onde sem receio do Santo Ofício fomentam o negócio; e a esta proporção se farão opulentas as mais praças; e cabendo nos limites da atenção religiosa de Vossa Majestade destinar-lhes em todas as províncias um lugar para as suas cerimónias, como se faz em Roma, Itália, e nas mais Cortes da Europa para os Judeus, serão sem dúvida empório da Ásia os domínios portugueses, que tão descaídos se acham por falta de comércio.

Deus guarde a muito alta e muito poderosa pessoa de Vossa Majestade felizes anos.

Gôa, 19 de Dezembro de 1729

João de Saldanha da Gama.

 

 

[1] Estofo de pêlo ou de lã, misturado às vezes com seda

[2] Tecido de seda muito encorpado, originário da China

[3] Picote ou picotilho: seda muito lustrosa de que se faziam tecidos

[4] Termo da Ásia portuguesa. Salvo-conduto que os portugueses davam aos amigos de Portugal para navegarem seguramente.

«Irião a Baçaim tomar salvo-conduto a que eles chamavam cartazes.» Diogo de Couto, Década IV, 9. 2. (do Dicionário de Domingos Vieira)

[5] Navios de guerra com esporão, usados na Ásia

 

Archivo Portuguez Oriental, fasc. 6, suplementos, doc. 130, carta de 19 de Dezembro, pp. 324-326.

 

 

22-1-2016 – ADENDA:

A leitura do Regimento da Inquisição de Goa de 1778 permite já vislumbrar algumas das “razões” que justificavam a perseguição dos gentios e mouros pela Inquisição de Goa. Dizem as “Advertências” no final do Regimento:

Porque é absolutamente proibido todo o uso e prática exterior de ritos gentílicos nos Domínios dos Príncipes Cristãos pela Bula Antiqua Judaeorum improbitas – do Santíssimo Padre Gregorio XIII, expedida no primeiro de Junho de 1508 e por outras que se lhe seguiram (…)”

A data da Bula e Motu Proprio  está errada porque a correcta é 1 de Julho de 1581. António Baião intitulou-a Antiqua Indeorum improbitas, possivelmente influenciado por os naturais serem indianos (“índios” se dizia na época).

Antes de estudar o Motu Proprio, convém acrescentar que, além dos ritos e das cerimónias gentílicas ou mourescas, a Inquisição de Goa prendia os familiares e toda a pessoa que se opusesse à imposição da Religião católica aos órfãos (certamente apenas de pai), com o baptismo imediato dos que tivessem menos de sete anos e a ida para a catequese dos outros menores. São muitos os casos de condenados por este “crime”. Esta perseguição havia começado por volta do ano de 1644, tal como refere o documento referido abaixo, sobre a "Questão entre o Vice Rei da Índia, António de Melo de Castro e o Inquisidor Paulo Castelino de Freitas ": "Tanto que [o Vice-Rei] chegou a esta Cidade, daí a alguns meses procurou com todas suas forças impedir que o Santo Ofício não procedesse contra as pessoas, que ocultam os órfãos, para que não recebam a água do Baptismo, contra os quais o Santo Ofício procede há mais de vinte anos, como impedientes da Cristandade (…)”. Deste texto conclui-se que baptizar os órfãos dos gentios era prática antiga, anterior até à introdução em Goa da Inquisição. Mas eu fico perplexo, pois não consigo perceber qual a racionalidade de tal procedimento. Mas era mesmo assim e havia até um padre encarregado de ir tirar os órfãos às famílias, chamado muito hipocritamente "pai dos cristãos".

A leitura do Motu Proprio  que a seguir transcrevo com uma tradução algo livre é elucidativa das intenções, quer do Papa, quer dos Inquisidores.

O Motu Proprio  é absurdo em várias passagens. Constata-se à primeira vista que se destinaria inicialmente apenas aos judeus, tal como o título indica. O § 2.º está redigido para se dirigir àqueles que professam crenças na fé comuns com os católicos, o que acontece com os judeus, mas não com os infiéis, que ali foram acrescentados, mas a coisa não dá certa. Os gentios não têm crenças na fé, em comum com os cristãos.  Tal só acontece com os judeus que crêem como os católicos num só Deus, que é eterno e foi criador de todas as coisas visíveis e invisíveis. Acrescentando neste e noutros parágrafos “ou infiéis” o Motu Proprio  foge à lógica que deveria ter tido inicialmente a de se dirigir apenas aos judeus.

Outro absurdo é o § 5.º em que se pede aos judeus que aceitem a Cristo como divino e a sua mãe como Virgem. Claro que é da essência do judaísmo rejeitar a Cristo como Messias.

Mas se o Motu Proprio  contém estes absurdos, a interpretação dele pela Inquisição também não tem ponta por onde se lhe pegue. Nenhuma das normas permite converter à força os gentios e mouros. Nos ritos gentílicos, apenas proíbe invocar ou consultar os demónios e não há qualquer proibição genérica do uso e prática exterior de ritos gentílicos. Além disso, nenhum dos parágrafos permite a ideia de converter à força os órfãos de menor idade, contra a vontade dos familiares.

 

De iudaeorum aut infidelium flagitiis, in quae haereticae pravitatis inquisitores animadvertere possunt

 

 Gregorius episcopus servus servorum Dei, ad futuram rei memoriam.

 

Antiqua iudaeorum improbitas, qua divinae bonitati semper restiterunt, tanto execratior consistit in fìliis, quanto ipsi, ad cumulandam patrum suorum mensuram, in Dei filio repudiando eiusque in mortem nefarie conspirando gravius deliquerunt, qui propterea suis effecti maioribus nequiores, propriis sedibus expulsi, atque in omnes dispersi orbis terrarum regiones,servitutique perpetuae mancipati, non maiorem in cuiusquam ditione clementiam, quam in christianorum provinciis, maxime vero in apostolicae pietatis gremio, invenerunt, quae, pro eorum conversione laborans, eos misericorditer excepit, atque in cohabitatione una cum filiis suis sustinuit, ad veritatisque lumen allicere pio semper studio conata est, rebusque ad vitam necessariis iuvit, iniuriis et contumeliis prohibuit, multis denique beneficentiae suae privilegiis circummunivit; illi vero nullis benefìciis mansuefacti, nihilque de suo pristino scelere remittentes, Dominum nostrum Jesum Christum in coelo triumphantem adhuc in synagocis suis et ubique persequuntur; Christi quoque membris infensissimi, non desinunt in religionem christianam horrenda facinora quotidie magis audere.  

 

Dos crimes dos judeus e dos infiéis, que os Inquisidores da depravação herética podem punir

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

§ 1. Quibus nos, ne pietatis nostrae puritas polluatur, aut a foedis mancipiis Christi christianorumve nomini impune illudatur, obviare volentes, statuimus ac etiam declaramus inquisitores haereticae pravitatis libere procedere posse in omnibus causis et casibus, qui sequuntur.  

 

 

 

§ 2. Si quis iudaeus aut infidelis, in iis quae circa fidem cum illis nobis sunt communia, veluti Deum unum et aeternum, omnipotentem, creatorem omnium visibilium, et invisibilium et similia, non esse asseruerit, praedicaverit vel privatim alicui insinuaverit.  

 

 

 

§ 3. Si daemones invocaverit, consulueritve, aut eorum responsa acceperit, ad illosve sacrificia aut preces ob divinationem aliamve causam direxerit, aut quid eis immolaverit vel thuris alteriusve rei fumigationes obtulerit, aut alia quaevis impietatis obsequia praestiterit.  

 

 

§ 4. Si christianos verbo, facto vel exemplo aut alio quovis modo nefaria huiusmodi docuerit, vel ad ea perpetranda, perduxerit aut perducere attentaverit.  

 

 

§ 5. Si Salvatorem et Dominum nostrum Jesum Christum purum hominem vel etiam peccatorem fuisse, Matremve Dei non esse virginem et alias huiusmodi blasphemias, quae per se haereticae dici solent, in christianae fidei ignominiam, contemptum aut corruptionem impie protulerit.  

 

 

§ 6. Si, cuiusvis eorum opera, auxilio, consilio vel favore, aliquis christianus a fide desciverit, quamque semel susceperat abnegaverit, vel ad iudaeorum seu aliorum infìdelium ritus, caeremonias, superstitiones vel impias sectas transierit vel redierit, seu in haeresim aliquam inciderit; aut qui, ut Christi fidem abneget seu in haeresim incidat, opem, consilium, auxilium vel favorem quomodo cumque praestiterit.  

 

 

§ 7. Si quis catechumenum vel quemcumque ex iudaeis aut infidelibus, Deo inspirante, ad fidem christianam venire volentem, post declaratam nutu, verbo, facto aut quocumque alio modo eius voluntatem,a fide vel fìdei instructione, aut a sacri Baptismi susceptione retrahere, avertere vel dehortari; aut ne ad fidem veniat neve regenerationis lavacro abluatur quovis modo impediverit.  

 

 

§ 8. Si quis apostatas haereticosve scienter domi suae acceptaverit, aluerit, commeatu iuverit seu quovis modo eis cibaria ubicumque praebuerit, aut dona vel munera dederit vel miserit, aut de loco ad locum deduxerit seu associaverit, vel deducendos seu associandos curaverit, aut sumptus ministraverit, duces comitesve illis adiunxerit, vel ne ab eis perpetrata deprehendi aut investigari queant, fecerit; quique dictos apostatas aut haereticos scienter aliquo modo receptaverit, occultaverit, defenderit, aut eis opem, consilium, auxilium vel favorem quomodolibet praestiterit.  

 

 

§ 9. Si libros haereticos vel thalmudicos aut alios iudaicos quomodolibet damnatos aut alias prohibitos tenuerit, custodierit vel divulgaverit, vel in quaecumque loca detulerit, aut ad eam rem operam suam accommodaverit.  

 

§ 10. Si christianos deriserit, redemptionisque nostrae hostiam salutarem in ara crucis immolatam, Christum Dominum, ludibrio et despectui habens, quandocumque, maxime vero in sacro parasceves die, agnum sive ovem aut quid aliud cruci affixerit aut appenderit in eamve conspuerit, seu quodcumque contra ipsam fecerit.  

 

§ 11. Si nutrices christianas, contra sacrorum canonum statuta diversorumque Romanorum Pontificum praedecessorum nostrorum sanctiones, adhuc retinuerit; aut eas retinens, die qua sanctissimum Eucharistiae sacramentum sumpserint, lac, uno vel pluribus diebus, in latrinas, cloacas vel alia loca effundere coegerit.  

 

Assim, para que a pureza da nossa piedade não seja poluída  e que infames indivíduos não gozem impunemente com o nome de Cristo e com os cristãos, nós (o Papa) declaramos que os Inquisidores da depravação herética podem agir livremente nos casos e causas seguintes:

 

 

 

1-Se algum judeu ou infiel negar, pregar ou insinuar com alguém em privado, as crenças que temos em comum com eles, por exemplo, a existência de Deus uno e eterno, omnipotente, criador de tudo o que é visível ou invisível e semelhantes.

 

 

2-Se eles invocarem ou consultarem os demónios, ou aceitarem as suas respostas, oferecerem orações ou sacrifícios  para adivinhação ou outras causas, ou os venerarem ou com turíbulos ou outros fumos, ou os obsequiarem de qualquer outro modo de impiedade.

 

 

3-Se ensinarem por palavras, com o seu exemplo ou de qualquer outro modo, coisas infamantes (nefaria) aos cristãos, ou os levarem a perpetrá-las ou a tentarem fazê-lo.

 

 

4-Se afirmam que o Salvador, Nosso Senhor Jesus Cristo foi simples homem ou também pecador, que a Mãe de Deus não foi virgem e outras semelhantes blasfémias que proferem os heréticos, visando a ignomínia da fé cristã.

 

 

5-Se, por acção, auxílio, conselho ou favor deles, algum cristão abandonar a fé, ou quem assista ou participe em ritos, cerimónias e superstições de judeus ou outros infiéis, ou aceite alguma heresia; e também os que por comando, conselho, auxílio ou favor façam com que alguém abnegue da fé de Cristo ou caia na heresia.

 

 

6-Se alguém impedir os catecúmenos ou outros judeus ou infiéis, que declararam de qualquer modo  querer ser Cristãos,  de receber as instruções da Fé, ou de receber o Baptismo, ou, de qualquer modo impeça a vinda para a Fé ou a regeneração pela água do Baptismo.

 

 

7-Se alguém conscientemente receber, esconder, alimentar ou defender hereges ou apóstatas, ou lhes dê presentes ou os ajude a fugir, ou de qualquer modo lhes prestar auxílio, conselhos e favores.

 

 

 

 

8-Se alguém possuir ou divulgar livros heréticos ou talmúdicos ou outros condenados ou proibidos, ou der colaboração à sua divulgação..

 

 

 

9-Se alguém gozar com os Cristãos, e com a hóstia da nossa redenção imolada na cruz, e também quando, particularmente em sexta-feira santa, alguém pendurar numa cruz um cordeiro ou uma ovelha  e nela cuspir, ou fizer outra coisa ofensiva da mesma (cruz).

 

 

 

10-Se eles têm amas de leite cristãs em sua casa, apesar das sanções dos predecessores do Papa, e tendo-as, se as forçam, quando comungarem, a espalhar o Sacramento da Eucaristia, um ou vários dias, nas latrinas, cloacas, ou outros sítios.

 

 

 

§ 12. In quibus casibus universis et singulis, omnes praedictae pravitatis inquisitores omnium regnorum, provinciarum, civitatum, dominiorum et locorum universi orbis christiani, iudices in suis quemque locis perpetuo delegamus, ut super his contra iudaeos atque infideles quoscumque, simul vet separatim, prout in causis fìdei, iuxta sacrorum canonum formam necnon Officii inquisitionis huiusmodi constitutiones, diligenter inquirant et procedant, et quos in aliquo vel aliquibus horum flagitiorum excessibus culpabiles repererint, in eos pro culpae modo, ac etiam pro criminum numero vel multiplicatione, aut consuetudine delinquendo flagra, remigia, etiam perpetua, rerum quoque publicationes, exilia aliaque atrociora decernant, et alias de eis exempla edant, quae sceleratos illos deterreant abhuiusmodi flagitiis in posterum admittendis.  

 

§ 13. Nos enim venerabilibus fratribus nostris S. R. E. cardinalibus inquisitoribus generalibus, necnon patriarchis, archiepiscopis, episcopis et aliis locorum praelatis, ac etiam aliis praedictis inquisitoribus, in virtute sanctae obedientiae, districte praecipimus et mandamus ut praesentes nostras litteras in civitatibus et locis cuique subiectis publicare, et iuxta illarum tenorem procedere, ipsasque debitae executioni mandare procurent.  

 

§ 14. Decernentes irritum et inane quicquid secus per quoscumque, scienter vel ignoranter, contigerit attentari.  

 

§ 15. Non obstantibus constitutionibus et ordinationibus apostolicis; necnon exemptionibus, privilegiis, immunitatibus, commeatibus, in fidem publicam receptionibus et tolerantiis, praedictis iudaeis et aliis infidelibus, maranis et apostatis,tam in dominiis, terris et locis nobis et Sedi Apostolicae mediate vel immediate subiectis, quam alibi ubicumque regnorum, provinciarum et dominiorum, gentiumet locorum commorantibus, vel in ea ex quibusvis regnis et partibus, tam fìdelium quam infìdelium, confluentibus,eorumque iudicibus, advocatis et defensoribus, quacumque auctoritate, potestate et dignitate fungantur, etiam ad instantiam imperatoris, regum, ducum et quorumvis aliorum principum, tam per felicis recordationis Paulum III, decimo kal. marlii, et Julium etiam III, nonis decembris, tertio anno sui cuiusque pontifìcatus, quam etiam quoscumque alios anteriores et posteriores Romanos Pontifices ac nos et Sedem Apostolicam eiusque legatos ac etiam Cameram Apostolicam, sub quibuscumque tenoribus et formis, ac cum quibusvis clausulis et decretis, etiam motu proprio et alias quomodocumque hactenus concessi, confìrmatis et innovatis, atque in posterum concedendis, confirmandis et innovandis, quae omnia, etiam si de illis illorumque totis tenoribus specialis, specifica, expressa et individua mentio, aut aliqua alia forma ad hoc servanda foret, tenores huiusmodi, ac si ad verbum insererentur praesentibus, pro plene expressis habentes, harum serie, specialiter et expresse revocamus, abrogamus et omnino abolemus; ceterisque contrariis quibuscumque.  

 

§ 16. Volumus autem praesentes in locis Urbis consuetis de more publicari, et earum exemplis, etiam impressis, manu notarii publici et sigillo sanctae Romanae et universalis Inquisitionis vel personae in dignitate ecclesiastica constitutae munitis, eamdem prorsus fidem ubique, tam in iudicio quam extra illud, adhiberi, quae adhiberetur eisdem praesentibus, si essent exhibitae vel ostensae. Nulli ergo omnino etc.  

 

Datum Romae apud S. Petrum, anno  Incarnationis dominicae millesimo quingentesimo octuagesimo primo, kalendis iunii, pontifìcatus nostri anno decimo.  

 

Anno a Nativitate Domini 1581, indictione IX, die vero X mensis iunii, pontifìcatus sanctissimi in Christo Patris et D. N. D. Gregorii, divina providenlia Papae XIII, anno X, retroscriptae lilterae apostolicae affixae et publicatae fuerunt ad valvas ecclesiae S. Ioannis Lateranensis, basilicae Principis Apostolorum de Urbe, Cancellariae Apostolicae, et in acie Campi Florae ac etiam ad valvas septi Hebraeorum, per nos Petrum Aloysium Gaytam, et Nicolaum Tagliettum, apostolicos cursores.  

 

Antonius Ludovicus, mag. curs. Dat. die 1 iulii 1581, pontif. an. X.

 

O Papa delega nos Inquisidores de todo o mundo a investigação e o castigo destes crimes, com o exílio, com açoites, ou a ida para as galés (remigia), mesmo perpétua.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

29-4-2016 – ADENDA:

 

Baptizar os órfãos à força

 

Acho que já descobri a “racionalidade” deste procedimento que partia de uma definição que era falsa mas servia para o efeito:

 

O órfão idealizado seria a criança que estava só no mundo, não tinha quem cuidasse dela. Por isso, ficava ao cuidado de toda a sociedade, ou seja, do Estado. Como a religião do Estado era a católica, baptizava-se o órfão, sem ter de prestar contas a ninguém.

 

Mas, nos tempos da Inquisição de Goa, foi alargado o conceito. Desde logo eram órfãos todos os que perdessem o pai, sem qualquer espécie de consideração pela mãe. E de nada servia o facto de ficarem ao cuidado de familiares que eram gentios, isso não era tido em conta: tinham de ser baptizados e eram tirados pela força aos familiares que deles cuidavam. Esta missão era dirigida por um padre chamado o “pai dos cristãos”. Entretanto, esta resistência passou depois (ver acima)  a ser punida como crime pela Inquisição. 

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

 

Jordão A. de Freitas, A Inquisição em Goa – subsídios para a sua história, in Archivo Histórico Portuguez, Vol. V, pag. 216-227

 

James C Boyajiyan, Goa Inquisition – a new light on first 100 years (1561-1660), in Purabhilek Puratatva 4 (1986, 1-40)

 

José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Um inquisidor inquirido: João Delgado Figueira e o seu Reportorio no contexto da documentação sobre a Inquisição de Goa», Revista da Biblioteca Nacional de Lisboa, Vol. 1, n.o 3, Abr.-Out. 1997, pp. 183-190

 

Maria de Jesus dos Mártires Lopes, «A Inquisição de Goa na segunda metade do século XVIII. Contributo para a sua História», Studia, n.º 48, 1989, pp. 237-262.

 

Maria de Jesus dos Mártires Lopes, A Inquisição de Goa na primeira metade de Setecentos. Uma visita pelo seu interior», Mare Liberum, n.o 15, 1998, pp. 107-136.

 

David Higgs, «A Inquisição de Goa no fim do século XVIII», in Ler História, n.º 24, 1994, pp. 17-32.

 

Maria de Deus Beites Manso e Lúcio de Sousa, Fundamentos para o estabelecimento da Inquisição em Goa, Universidade de Évora,

Online: https://dspace.uevora.pt/rdpc/handle/10174/9713

 

António BAIÃO, A Inquisição de Goa, 2 vols., Lisboa, Academia das Ciências, 1930-1945.

 

Miguel Vicente de Abreu, Narração da Inquisição de Goa, contendo a tradução do livro de Gabriel Dellon, Nova Goa, 1866

Online: Google Books

 

François Pyrard, Voyage de François Pyrard, en deux parties, Paris, 1619, 1044 págs.

Online: Gallica

 

Sumário de vária história, vol. IV pág. 99

Online: Archive

 

Reportório Geral de três mil oito centos processos, que sam todos os despachados neste sancto Oficio de Goa & mais partes da India, do ano de mil & quinhentos & secenta & huum, que começou o dicto sancto Oficio até o anno de Mil & seiscentos & vinte & três, com a lista dos Inquisidores que tem sido nele, & dos autos públicos da Fee, que se tem celebrado na dia Cidade de Goa, 1623 – BNP - Códice n.º 203, MF 2545

 

Bullarum Diplomatum et Privilegiorum Sanctorum Romanorum Pontificum, Taurinensis Editio, Tomo VIII, Turim, 1863

Online: Google Books, Archive

 

Questão entre o Vice Rei da Índia, António de Melo de Castro e o Inquisidor Paulo Castelino de Freitas 

Exposição de Paulo Castelino de Freitas de 4 de Dezembro de 1664

Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, mç. 38, n.º 8

Cota antiga: Inquisição de Lisboa, proc. 16889

Online: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4655070

 

Herman Prins Salomon, A perda do Estado da Índia em 1739 (Palestra proferida na ocasião do lançamento do livro Queimar Vieira em Estátua, no dia 26 de Maio de 2015, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), in Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 15, 2016 , pags. 109 - 123.