8-11-2004

MARIZA

 

 

 

 

A imprensa estrangeira tem-se rendido a Mariza. Até a revista britânica Time Out, que comparou o cabelo da fadista a um gelado Vienneta, garantiu que a portuguesa continuará, por muitos anos, «a usar uma sobremesa na cabeça». Ficam apenas alguns exemplos dos mimos que tem recebido:

‘‘Destinada a ser uma das maiores divas mundiais’’ The Sunday Times

‘‘A melancólica rainha do fado’’ The Observer Review

‘‘Finalmente a world music encontrou uma diva mais jovem para desafiar todas elas[Cesária Évora, Omara Portuondo e Susana Baca]’’ The Times

‘‘Uma voz para enfeitiçar o ouvinte’’ Metrolife

‘‘Mariza é uma coisa rara’’ Morning Star

‘‘Nasceu uma estrela’’ Folk Roots

‘‘Mariza é claramente uma diva com encontro marcado com o destino’’ Manchester Evening

‘‘Uma das mais excitantes novas vozes na world music dos últimos anos’’ Afropop Worldwide

 

     

 

VISÃO 27 de Março de 2003

 

MÚSICA

Um fado sem fronteiras

A VISÃO acompanhou Mariza a Londres, onde a fadista recebeu o prémio da BBC de Melhor Artista Europeia de World Music. Uma curta paragem na digressão que a leva aos quatro cantos do mundo

GABRIELA LOURENÇO • ENVIADA ESPECIAL

Numa igreja vitoriana de finais do século XIX, Mariza interpreta um dos mais famosos fados portugueses.

Os londrinos que a vêem, vestida de preto, e a ouvem, no palco da Union Chapel, rendem-se à sua voz. A fadista interrompe, a meio, a versão de Lisboa, Menina e Moça para lhes pedir que cantem com ela o refrão. E explica: «Eu vou dizer ‘cidade a ponto luz’ e vocês respondem ‘bordada’. E depois ‘toalha à beira mar’ e vocês ‘estendida’.» O português dos londrinos soa quase perfeito. No entanto, Mariza sugere: «Eu sei que ‘bordada’ em inglês se diz ‘embroidered’. Por isso, quando eu disser ‘cidade a ponto luz’, vocês podem responder ‘embroidered’.» Ao som da guitarra portuguesa, o público da Union Chapel canta, a plenos pulmões: «Embroidered!».

Rodeada pelo ambiente mágico desta igreja de arquitectura gótica e entre frisos de mármore e paredes de tijolo, Mariza entoa os fados «como um jogo que Deus inventou inspirado». É o que diz a letra da sua mais recente música, Fado Curvo, que dá nome ao segundo disco da fadista, a lançar amanhã, sexta-feira, 28, em Portugal.

Quase um ano e meio depois de Fado em Mim (que ainda figura nos tops de vendas nacionais e é disco de ouro), Mariza apresenta um álbum ecléctico, em que fados tradicionais convivem com um fado de Coimbra, um malhão, uma chula e algumas inovações. A receita – que se quer equilibrada – assenta na explicação do título deste trabalho. «O disco chama-se Fado Curvo porque o fado não é uma linha recta, nem a vida é uma linha recta», esclarece.

Foi esta a ideia transmitida aos ingleses que assistiram ao seu concerto, na Union Chapel. Na mesma sala por onde já passaram músicos como Björk, Sakamoto ou os Madredeus, a fadista gravou, na semana passada, um DVD produzido pela mais conhecida rádio britânica – a mesma que a premiou como Melhor Artista Europeia de World Music. O galardão da BBC foi-lhe entregue pelo pianista Michael Nyman, na última segunda-feira, 24, numa f e s t a que juntou cerca de 2 mil pessoas no Hackneys Ocean de Londres. Com um vestido preto do estilista João Rôlo a lembrar as noivas do Minho e penteada com os canudinhos louros criados pelo cabeleireiro Eduardo Beauté, Mariza, 29 anos, abriu a segunda parte do espectáculo e, cantando três dos fados do novo disco para um público entusiasmado, mostrou com que linhas se cose o seu trabalho.

A busca da perfeição

«Sinto-me bastante segura. Por causa do prémio e da recepção que tenho tido, mas também porque cresci, no último ano», afirma a fadista. Isso nota-se em Fado Curvo, acredita. «É um disco mais maduro.» Coube a Carlos Maria Trindade (teclista dos Madredeus, ex-Heróis do Mar) produzir o segundo álbum de Mariza. «Escolhi um produtor que tem pouco a ver com fado, mas que faz parte da história da música portuguesa e que tem uma visão do fado muito parecida com a minha. Ambos pensamos que tem de dar passos em frente e que não pode estar enclausurado no passado, sob o risco de se tornar música de museu.»

Ao contrário de Fado em Mim, que teve a sua edição dificultada em Portugal e acabou por ser lançado com a chancela de uma editora holandesa, a World Connection, Fado Curvo ganhou a etiqueta da EMI.

A crítica, mais uma vez, rasga-lhe elogios, mas Mariza confessa que ainda nem ouviu o disco desde que ficou pronto. Nem quer ouvir. «Depois, acho que está sempre mal e tenho vontade de mudar e de fazer diferente», explica. «O Fausto disse uma vez que, quando acaba de fazer um disco, deixa de ser dele – eu também sinto isso.»

Ouvir-se, só em estúdio – «aí sou uma chata, sempre a dar palpites» – e nos ensaios dos concertos. Ela, que sai do palco sem se lembrar como foi a actuação, é uma perfeccionista incurável. Na preparação da festa dos prémios da BBC foram necessárias várias tentativas até ficar convencida da qualidade do som. «Cuidado com o médio agudo... não, agora ficou muito baço», ia dizendo de cima do palco. «Preciso de corpo nos instrumentos e na minha voz», sublinhava. Mesmo sem as roupas deslumbrantes de João Rôlo e vestida de calças e camisola preta, Mariza não perde o seu ar imponente quando começa a cantar. Nos intervalos, ri-se com os músicos e dança o fado com o seu jeito próprio. Mas também desespera. «Este som está uma ‘caca’», acaba por desabafar.

No entanto, em Fado Curvo, existem fados gravados à primeira e, no máximo, à terceira. «Não gosto de estar muito tempo em estúdio e o Carlos Maria Trindade acha que as primeiras versões são as melhores, porque, depois, estamos ali à procura da perfeição e vai-se a alma da música», justifica.

Entre o tradicional e o moderno

A expectativa relativamente ao segundo trabalho de uma fadista que junta novos sons aos clássicos era grande. «Penso que está toda a gente à espera de um disco mais moderno e com grandes inovações, mas não foi isso que fiz», considera. O álbum abre precisamente com um fado tradicional, O Silêncio da Guitarra, com letra de José Luís Gordo e arranjo musical de Mário Pacheco (que aqui toca guitarra portuguesa) sobre o fado Zé Negro. Neste segundo trabalho, Mariza canta também Vielas de Alfama, popularizado por Max, e Primavera (o seu fado favorito), uma criação de Amália, aquela a quem tantos a comparam.

Mas existem também temas mais originais. O Deserto, de Carlos Maria Trindade, é o expoente máximo de como não há uma sonoridade única para o fado. A voz de Mariza ganha um registo diferente e o trompete concorre com os instrumentos habituais. «Para mim, existe um acasalamento perfeito entre o trompete e a guitarra portuguesa», defende a fadista.«Quando introduzo um instrumento novo não é para fazer diferente, mas porque me soa bem. Respeitando a tradição do fado, procuro o meu som próprio, que é o mais difícil.» É nesta procura que surgem fados como Retrato, com poema de Eugénio de Andrade, no qual a voz de Mariza é acompanhada pelo piano (tocado por Tiago Machado, compositor de algumas músicas). Um caminho que se faz também quando arrisca um fado de Coimbra com letra de José Afonso (Meninos do Bairro Negro).

Para este disco, Mariza recebeu várias ofertas. Rui Veloso escreveu e compôs Feira de Castro, um fado bastante animado, enquanto Carlos Maria Trindade criou um malhão no tema que dá nome ao álbum. Entre o Rio e a Razão tem letra de Gil do Carmo e fala de «uma Lisboa mais moderna e urbana », com a qual a cantora se identifica.

O trabalho completa-se com poemas que são fruto de uma cuidada pesquisa efectuada por Mariza: Florbela Espanca (Caravelas), António Botto (Anéis do Meu Cabelo) e Fernando Pessoa (Cavalo de Sombra, Cavaleiro Monge). Esta última música esteve para ser gravada por Amália e foi oferecida à jovem fadista por Mário Pacheco. Além do guitarrista, acompanham Mariza neste trabalho António Neto (viola) e Marino de Freitas (baixo acústico). Fernando Araújo (baixo e viola), Quiné (percussões), Miguel Gonçalves (trompete e fliscórnio) e Davide Zaccaria  violoncelo) participam nalgumas faixas.

Nos quatro cantos do mundo

Fado Curvo é um disco de recados. Além daquele que é logo expresso no título, Mariza quis ainda utilizar a poesia para responder a elogios e críticas. «É muito bonito referirem-se a mim com tantos adjectivos, mas gostava que as pessoas que vêem os meus concertos e compram os meus discos me olhassem como um ser humano», explica. «Por isso, se um dia deixar de cantar, espero que, pelo menos, guardem os Anéis do Meu Cabelo.» Para quem tem visto com maus olhos o seu trabalho, a fadista gravou Caravelas, de Florbela Espanca. «Quero dizer-lhes que continuarei a ser como sou, verdadeira. E que se o meu percurso tiver de ser destruído, serei eu a fazê-lo.»

Por enquanto, destruição é palavra que não entra no vocabulário de Mariza. A sua curta carreira tem antes acumulado êxitos um pouco por todo o mundo. A um ritmo por vezes alucinante, Mariza actuou, no ano passado, em salas europeias e norte-americanas tão importantes como o Hollywood Bowl, de Los Angeles, e Queen Elizabeth Hall, de Londres. «Quando fiz o primeiro disco não me preocupava com a reacção das pessoas e agora também não. Acho que as coisas acontecem como uma bola de neve. Há um encontro pessoal entre mim e o fado, por isso o que tiver de ser, será», afirma, confiante.

Hoje, quinta-feira, 27, inicia uma digressão pela Holanda e Bélgica. Até ao final do ano, a agenda está cheia: EUA, Alemanha, Canadá, Noruega, França, Reino Unido e Áustria. Os Açores e a Madeira vão poder vê-la já em Abril, mas, no Continente, Mariza actuará só nos últimos meses de 2003.

Fado em inglês

Mariza faz parte de uma nova geração de fadistas que tem ressuscitado a música- símbolo de Portugal. Até ao final deste primeiro trimestre de 2003 serão editados mais de dez discos de fados, entre cantores consagrados, revelações e colectâneas. A fadista do cabelo louro (que já pensa no álbum que quer lançar daqui a cerca de dois anos) sobrevive bem neste mundo. Quem cresceu na Mouraria sabe que a concorrência pode ser feroz e  Mariza reconhece que «o meio do fado é estranho e um pouco intriguista». Mas é com um sorriso que logo acrescenta:

«Também é o que o faz tão especial.»

Dona de uma voz poderosa e de uma forte imagem de marca, a cantora não se intimida. Nem quando actua fora de Portugal, para quem não percebe a língua do fado. «Sinto que existe uma enorme simbiose entre mim e o público estrangeiro.»

Ao vê-la cantar em Londres, não se duvida. Mariza desce do palco da Union Chapel e entre os bancos corridos da igreja interpreta Oiça lá ó sr. Vinho. O público não lhe poupa palmas. E muito menos gargalhadas quando, depois de explicar a história da lendária Severa, a fadista põe o pé em cima de uma cadeira e deixa ver, debaixo do vestido preto, uns divertidos collants às riscas, muito coloridos. Num grande vitral redondo, numa das paredes da igreja, há anjos a tocar. Parecem acompanhar na perfeição a mulher que canta vestida de negro. Como assegura Mariza, «o fado consegue passar fronteiras».