8-9-2012

 

A maior perversidade do Regimento da Inquisição de 1640

 

 

Tenho dito e repito que a Inquisição, no que respeita à perseguição aos cristãos novos, era intrinsecamente perversa. Apesar de se intitular “tribunal da fé”, a sua actuação nada tinha a ver com justiça. Queriam era fazer mal a toda a população que tivesse pinga de sangue judaico, humilhá-los, amarfanhá-los e despojá-los dos seus  bens.

Tenho referido muitos dos truques utilizados nos processos para condenar os réus. E também alguns que aparecem logo no próprio Regimento.

Hoje quero referir um que está também no Regimento, não de um modo claro, mas que se infere da sua redacção. É o princípio de que as denúncias que devem merecer mais crédito devem ser as do círculo íntimo da família: cônjuges, pais, filhos e irmãos. É de uma barbaridade inaudita contar com as denúncias dos familiares próximos para condenar os réus. E é pura mentira considerar que tais denúncias merecem um crédito elevado. Pelo contrário: se os pais denunciavam os filhos ou vice versa, é porque:

 - por um lado estavam totalmente  desesperados e só encontravam aquela maneira de salvar a vida;

 - por outro, tinham a consolação interior de que as suas denúncias eram completamente falsas, o que contavam nunca tinha acontecido, era apenas um jogo feito com os Inquisidores, que ficavam com material para acusar a muitos outros.

Mas uma mentira em documento oficial passou a ser verdade legítima. Os Inquisidores passaram a pressionar os réus a denunciar os que lhes eram próximos, por todo o modo e feitio, inclusivamente no tormento. E bastantes réus da Inquisição acabaram por o fazer para salvar a vida.

O pior era quando os denunciados não entravam no jogo das denúncias. Corriam logo risco de vida e muitos foram assim acabar no patíbulo.

Este princípio, da primazia das denúncias dos familiares próximos, aparece repetidamente nos Assentos da Mesa e tem a sua origem no n.º IV, Tit. IV do Livro II do Regimento de 1640:

Com que prova se procederá a prisão

 IV. Declaramos que, para os Inquisidores decretarem que alguma pessoa seja presa, é necessário preceder tal prova, que razoadamente pareça bastante para se proceder por ela a alguma condenação, e não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada; salvo se for marido, ou mulher, ou sua parenta dentro do primeiro grau de consanguinidade contado por Direito Canónico.

 

Claro que uma barbaridade destas tinha que vir escondida, não podia vir às claras. Se uma só testemunha do círculo restrito familiar já basta para prender o réu, é porque a denúncia desse tipo de testemunhas é muito mais valiosa do que a de outras.

A lógica aparente é que as pessoas que vivem juntas conhecem melhor a vida uns dos outros do que as que vivem separadas. Mas claro que põe de lado o amor da família e o respeito que deve existir e que deveria coibir toda a deposição de uns contra os outros.

O círculo familiar era definido pelo Direito Canónico, onde os irmãos eram também do 1.º grau, enquanto no Direito Civil eram do 2.º (ver Anexo sobre os graus de parentesco).

O princípio está longe de ser inofensivo, antes pelo contrário. Se estes são os testemunhos de mais crédito, os Inquisidores tentarão obtê-los por todos os meios, incluindo a chantagem. E os réus desesperados por salvar a vida, acabarão por acusar também a família.

Esta foi uma medida muito atrevida do Regimento de 1640, que não existia no anterior de 1613, onde a norma correspondente (n.º IX. tit. IV) refere:

IX. Por uma só testemunha se não procederá a prisão ordinariamente, salvo quando parecer aos Inquisidores que é caso para isso, e a testemunha  é de crédito, e que fala verdade, e sendo o culpado pessoa das ordinárias, tendo primeiro tomado informação conforme a Direito — e as pessoas de maior quantia, que por uma só testemunha se pronunciarem a prisão, se enviará o assento ao Conselho Geral, antes de ser presa, para determinar o que for mais serviço de Deus.

 

Aqui não há a presunção de que os familiares próximos têm mais crédito que as outras pessoas, foi introduzida pelos brilhantes redactores do Regimento de 1640.

Um exemplo da razia que resultava deste malévolo princípio é a perseguição feita à família de António Serrão de Crasto, cristão novo, poeta, preso pela Inquisição em 24 de Maio de 1672, quando era já viúvo e tinha 59 anos.  Em meados de Julho de 1673, foram presas as três irmãs dele, Francisca Serrã, viúva, de 50 anos, Paula de Crasto, casada, de 63 anos e Inês Duarte, solteira, de 70 anos (esta faleceu no cárcere em 28-2-1675). Em 20 de Setembro de 1673, foram presos os filhos, Luis Serrão, de 24 anos, Pedro Serrão,  de 23, e Teresa Maria de Jesus, de 18, e os sobrinhos Pedro Duarte Ferrão, de 36 anos, filho de Paula de Crasto e Luis de Bulhão, de 32 anos, filho de Francisca Serrã. A 9 de Dezembro de 1673, foi presa uma prima, Catarina de Crasto, viúva, de 55 anos.

Acabaram por testemunhar todos uns contra os outros para salvar a vida. Só Pedro Serrão, estudante de teologia, se negou a entrar nesse jogo infernal, não denunciou ninguém e foi relaxado à justiça secular no auto da fé de 10 de Maio de 1682, em que saíram também todos os seus familiares. Diz uma testemunha da época que escreveu uma série de “Reparos”:

Em que Pedro Serrão relaxado negativo fosse morrer com tais demonstrações de ânimo e resolução católica, não só fazendo todos os actos de bom e fervoroso cristão, mas ainda pregando com zelo e espírito aos profitentes, confundindo e movendo a lágrimas os circunstantes.”

A saga desta família foi particularmente dolorosa, porque coincidiu com o período em que estavam suspensos os Inquisidores pela autoridade do Papa a partir de 1674; permaneceram presos até que o Papa voltou a dar autoridade aos Inquisidores pelo Breve de 22 de Agosto de 1681. Os processos avançavam ao rallenti enquanto os presos sofriam nos calabouços; só depois de recebido o Breve é que aceleraram tudo para o show off do auto da fé de 10 de Maio de 1682.

No ano de 1682, a Inquisição de Lisboa parecia uma cadeia de montagem, tal a pressa de acabar os processos. Em cada processo, o denunciante é reperguntado em globo por todas as denúncias que fez, para andar mais depressa; depois, um notário extrai certidões confirmativas para cada um dos processos dos denunciados.

Os Inquisidores haviam escrito pois no Regimento esta absurda barbaridade: merecem crédito sobretudo as denúncias da família chegada. Mas, sendo a ideia absurda, conseguiram no entanto pô-la em prática para mais facilmente prender gente.

Esta foi mais uma maneira de humilhar os réus, que era sempre a preocupação existente na Inquisição. Nenhum réu podia chegar ao fim do processo de cabeça erguida. E, como não se sentiria reles o pai que denunciou os filhos, ou o filho que denunciou o pai ou a mãe? Por isso, António Serrão de Castro, no poema A Francisco de Mezas, em que conta tudo o que sofreu, nem se atreve a dizer o que aconteceu aos filhos:

 

       E se Job ficou sem filhos

eu em os meus não vos falo

porque casos tão lastimosos

não são para relatados.

 

Constata-se na família de António Serrão de Castro que, nas gerações anteriores, já vários tinham cônjuges cristãos velhos, o que significa vontade de assimilação dentro da população portuguesa. E se muitos participavam na Academia dos Singulares, de tal modo que a maior parte era constituída por cristãos novos, isso não permite de modo nenhum concluir que era uma espécie de Sinagoga. É que a Academia tinha as suas sessões às claras e publicou toda a sua produção que aí está em dois volumes.

Já é tempo de acabar com essa historieta de que a Inquisição perseguia os cristãos novos que judaizavam, seja lá o que querem entender por isso. A Inquisição perseguia todos os cristãos novos por anti-semitismo,  e prendia aqueles que melhor se prestavam ao esquema processual que utilizava: falsas denúncias – falsas confissões. Nada tinha a ver com a crença, essa era impossível de conhecer.

 

ADENDA - 16-6-2013 – Dei conta entretanto que a ideia já vinha de longe, desde meados do séc.  XVI, como se vê por estes dois documentos:

 

Parecer Inquisitorial de cerca de 1546

Corpo Diplomático Português, vol. VI, pag. 116

 

E como lhe nem hão-de perguntar tudo o que parecer necessário pera declaração da verdade, mas antes se deve crer que aqueles que confessam suas culpas e pedem perdão e misericórdia à Santa Madre Igreja, e dizem nisso verdade, que assim o devem dizer em todas as pessoas que culparem principalmente sendo pais ou mães, filhos irmãos ou parentes, porque não somente as culpas são de qualidade pera os ditos filhos e parentes poderem ser participantes nelas mas também confirma esta presunção o texto no capitulo Literas, De presumptionibus, e o nota para isso Baldo expressamente onde diz que quando uma pessoa confessa culpas de si mesmo que se presume dizer verdade contra outros, maiormente sendo pessoas tão chegadas em parentesco aos que confessam suas culpas. E um dos sinais que põem os práticos de os confitentes falarem verdade no que dizem são quando os ditos confessantes em sua reconciliação culpam pessoas com que tem mais razão e parentesco.

 

 

Regimento da Santa Inquisição – 1552

 

Capitulo X

É grande sinal de o penitente fazer boa e verdadeira confissão, descobrir outros culpados dos mesmos errores, especialmente sendo pessoas chegadas e conjuntas em sangue e a que tenham particular afeição, além das outras coisas que se requerem para se ter a confissão por boa e verdadeira.

 

in Archivo Historico Portuguez, Vol. V, pag. 275

 

 

ANEXO

 

GRAUS DE PARENTESCO

 

Direito civil (art.º 1580 e ss. do Código civil)

Linha recta: tantos graus quantas as pessoas da linha, excluindo o progenitor comum

Linha colateral: contam-se todas as pessoas das duas linhas, mas exclui-se o progenitor comum

 

Direito canónico:

Linha recta: como no Direito Civil

Linha colateral - até 1983: contavam-se apenas as pessoas da linha mais comprida (das duas, ascendente e descendente); excluia-se depois o progenitor comum

Linha colateral, depois de 1983 : como no Direito Civil

 

Linguagem comum:

Usa-se apenas na linha colateral. Depende do progenitor comum das linhas: se é o avô, é 1.º grau, bisavô, 2.º grau, trisavô, 3.º grau e assim sucessivamente.

São apenas tios em cada grau os filhos de cada progenitor. Os outros descendentes são primos. Ex.: o irmão do meu bisavô é meu tio, mas o filho deste já é meu primo.

 

Parentesco

Grau civil

Canónico (até 1983)

Linguagem comum

       

Irmãos

2.º

1.º

1.º

Tios direitos

3.º

2.º

1.º

Primos direitos

4.º

2.º

1.º

Tio, irmão do avô

4.º

3.º

2.º

Primo, filho de um tio, irmão do avô

5.º

3.º

2.º

Primo, neto de um tio, irmão do avô

6.º

3.º

2.º

Tio, irmão do bisavô

5.º

4.º

3.º

Primo, filho de um tio, irmão do bisavô

6.º

4.º

3.º

Primo, neto de um tio, irmão do bisavô

7.º

4.º

3.º

Primo, bisneto de um tio, irmão do bisavô

8.º

4.º

3.º

 

 

 

TEXTOS CONSULTADOS

 

Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1613

Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/1/19/p56

 

Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640

Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/7/20/p267

  

António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Porto, Ernesto Chardron—Editor,1883

Online: www.archive.org

 

Academias dos Singulares de Lisboa, dedicadas a Apollo - Lisboa: na Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1665-1668 – 2 tomos em 2 vols.

Online: http://purl.pt/21936 

 

Academias dos Singulares de Lisboa. Dedicadas a Apollo - Lisboa: na Officina de Manoel Lopes Ferreyra & à sua custa, 1692-1698. – 2 tomos em 2 vols.

Online: http://purl.pt/21937

 

António Baião, Episódios dramáticos da Inquisição Portuguesa, Porto, Renascença Portugueza, 1924, 2.º vol., pags. 9-35

Online: www.archive.org

 

Heitor Gomes Teixeira, As tábuas do painel de um auto: António Serrão de Crasto, Lisboa, Universidade Nova, 1977 (Tese de Licenciatura de 1972)

 

António Serrão de Crasto, Os ratos da inquisição,  seguido de A Francisco Mezas, prefácio biográfico de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Frenesi, 2004.

 

Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, António Serrão de Castro: um poeta marrano e seu trágico destino, in Ensaios sobre a intolerância - Inquisição, Marranismo e Anti-semitismo (Homenagem a Anita Novinsky), organização de Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro, 2.ª edição, Associação Editorial Humanitas, São Paulo, 2005,  ISBN 85-98292-79-6. pgs. 223-240

 

Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, Um Morgado de Misérias, o Auto de um Poeta Marrano, Associação Editorial Humanitas, São Paulo, 2007,  ISBN 978-85-7732-023-3

 

Reparos que fez um sujeito bem intencionado por ocasião do auto da fé que se celebrou em Lisboa em 10 de Maio deste ano 1682, em A propósito da restauração do Tribunal do Santo Ofício em 1681, por Isaías da Rosa Pereira, Faculdade de Letras de Lisboa.

Online: https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/516/1/IsaiasRosaPereira_p225-245.pdf

 

Michael Geddes, Miscellaneous Tracts, 1.st volume, London, MDCCXIV:

V. A View of the Inquisition of Portugal; with a List of the Prisoners which came out of the Inquisition of Lisbon, in an Act of the Faith, celebrated Anno 1682. And another in 1707.

VI. A Narrative of the Proceedings of the Inquisition in Lisbon, with a Person now living in London, during his Imprisonment there.

Online: http://books.google.com