8-2-2010
Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo
Isabela Figueiredo Caderno de Memórias Coloniais Angelus Novus, 15 € ISBN 978-972-8827-69-4
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É um livro adorável. Lê-se de um fôlego; devorei-o nas três horas seguidas a quando o comprei. Todas as críticas o elogiam, enquanto bastantes comentários nos blogues, lhe são desfavoráveis. Mas isso, sabemos bem porquê.
É, sem dúvida, o melhor livro ligado à descolonização que li até hoje.
A autora sente-se algo comprometida por apontar o dedo a seu pai, dadas as divergências de pontos de vista que tinha com ele. De facto, ela é de um outro tempo. Os meus filhos dizem-me na cara as minhas fraquezas e tudo aquilo com que não concordam. Ela não. Está convencida que traiu o pai.
Não se preocupe. As verdades têm de ser ditas. Li há dias um livro de uma grande dama, de origem húngara, hoje americana, Kati Morton, que teve de esperar pela morte do pai, aos 95 anos, para escrever um importante e interessantíssimo livro de memórias, onde também lhe aponta o dedo e o culpa de algumas leviandades.
Um crítico escreveu que gostaria de conhecer o relacionamento com a mãe. Evidentemente, estando ela ainda viva, como parece, isso não é possível. Pela minha parte, gostaria de ver mais desenvolvido o episódio em que a tia matou o cão e o retrato dessa senhora.
Fiquei admiradíssimo com o sentido político da autora, reportado a acontecimentos passados quando ainda era praticamente criança; um bom senso admirável.
Porém, sem querer diminuir os méritos da autora, eu acho que tenho uma explicação para a sua objectividade. É que, tendo vindo embora aos 12 anos, ela nunca foi comparsa da vida em Lourenço Marques, mas apenas espectadora. Não podia participar na vida e nas preocupações dos adultos porque o não era. E os espectadores são sempre mais objectivos do que aqueles que participam num acontecimento. Daí o distanciamento com que ela descreve ambientes, factos e situações.
De facto, ainda é muito cedo para que se possa escrever a história da colonização e da descolonização. Provam isso mesmo as reacções hostis a este livro que aparecem na Internet. O que se tem escrito sobre o assunto é demasiado pessoal e, portanto, parcial. Terão de passar mais duas ou três gerações.
Aliás, isso não acontece apenas na literatura. No ensino e na investigação, acontece o mesmo. A nossa Universidade ainda não começou depois do 25 de Abril a reescrever a história colonial (desde o Sec. XVI ao Sex. XX) com outros olhos como, mais cedo ou mais tarde, terá de o fazer. Por exemplo, ainda ninguém fez o estudo a fundo da participação portuguesa no comércio escravo entre a África e as Américas. Um sinal evidente disso é a inexistência de documentos importantes, por exemplo para a história de Angola, escritos pelos missionários capuchinhos italianos nos séculos XV, XVI e XVII; as nossas bibliotecas não têm nem os originais italianos, nem mesmo as traduções belgas publicadas nos meados do Sec. XX (*). Terão de passar mais algumas gerações para que se dê atenção a estes assuntos sem ferir susceptibilidades.
(*) Diga-se, de passagem, que a Biblioteca Nacional não tem qualquer preocupação ou cuidado em adquirir livros sobre Portugal publicados no estrangeiro, nomeadamente no Brasil e em Espanha. Limitam-se a colocar no acervo os livros que recebem grátis do depósito legal; e queixam-se amargamente do trabalho que têm em tratar os doze exemplares de cada livro que recebem.
No últimos anos, fiz por diversas vezes à BNP propostas de aquisição de livros que foram sempre perfeitamente ignoradas.
Expresso ACTUAL n.º 1945, 6 de Fevereiro de 2010
A FILHA DO COLONO
José Mário Silva
Isabela Figueiredo
Caderno de Memórias Coloniais
Angelus Novus, 15 €
ISBN 978-972-8827-69-4
Em Portugal, não estamos habituados a livros assim. Viscerais, magnéticos, narrados na primeira pessoa com um desassombro que estilhaça os limites do pudor. Livros que nos atiram à cara a vida em bruto, exactamente como ela é, (ou foi), fixando com nitidez todos os brilhos, negrumes, abismos e epifanias que cabem numa existência circunscrita a um determinado tempo e a um determinado espaço.
No caso de Isabela Figueiredo (n. 1963), o tempo é o da infância e o espaço a Matola, nos subúrbios de Lourenço Marques, onde o pai electricista e a mãe dona-de-casa habitavam no início dos anos 70. Em 43 textos curtos, previamente publicados no blogue “O Mundo Perfeito”, Isabela recorda essa infância como se folheasse um álbum de fotografias imune aos tons sépia da nostalgia. As imagens que convoca, através de uma linguagem cortante, são fortíssimas, dramáticas, cheias de contraste. Os bois são chamados pelos nomes. As conversas transcritas ipsis verbis. As violências explicadas tal e qual. Mesmo falível, a memória refaz a realidade de uma época (ou a forma como essa realidade foi vista por uma criança) nunca escondendo o que ficou em carne viva.
Ao lembrar a sua meninice de “filha de colono”, protegida mas atenta ao que se passava para além do portão, Isabela abre uma caixa de Pandora e tem depois a coragem de não a fechar. Coragem, sim, porque da caixa emerge um retrato da sociedade moçambicana que desfaz, um a um, os mitos sobre o nosso colonialismo supostamente “suavezinho” e brando, pelo menos se comparado com o britânico, essa ideia feita com que muitos retornados aligeiram a consciência.
O pai, a quem ela fazia companhia na Bedford branca, era um racista que gostava de dar “porrada pedagógica” nos trabalhadores negros e os humilhava durante os pagamentos semanais, transformando os “finais dourados das tardes de sábado num poço escuro de medo e raiva”. Esse homem enorme, expoente da mentalidade colonial no que tem de pior, não deixando de ser um corpo disponível para o afecto mais puro, ocupa o livro inteiro, invade-o por todos os lados. Porque é contra ele, mas também para se reconciliar com ele, que a filha escreve. A filha que o traiu, ao regressar à metrópole, não entregando a mensagem de que era “portadora”, porque a verdade dele não coincidia com a sua, a verdade que tão exemplarmente descreve neste “Caderno”. A filha que o traiu, talvez, por amor. Ou, como ela escreve, “para que pudéssemos levantar a cabeça”.
Eduardo Pitta
Uma estátua de culpa, no Ipsilon - Público - 23-12-2009
4-9-2015. -Transcrito no blogue do autor, aqui.
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Dezembro de 2009
Caderno de Memórias Coloniais (Isabela Figueiredo)
Francisco José Viegas
Isabela Figueiredo publicou um dos livros mais tentadores da estação, Caderno de Memórias Coloniais (edição cuidada, como sempre, da Angelus Novus, um caso especial na edição portuguesa, vindo de Coimbra): «Manuel deixou o seu coração em África. Também conheço quem lá tenha deixado dois automóveis ligeiros, um veículo todo-o-terreno, uma carrinha de carga, mais uma camioneta, duas vivendas, três machambas, bem como a conta no Banco Nacional Ultramarino, já convertida em meticais. Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações algures? Eu há muitos anos que o substituí pela aorta.» Moçambique e as feridas abertas pelo passado, pela recordação, pela confissão, pelo medo de enfrentar tudo isso de novo. Isabela Figueiredo, que escreveu um dos melhores blogues portugueses, «O Mundo Perfeito», é rápida no gatilho, escreve muito, muito bem – melhor do que todos os rendilhados que andam por aí, em súplicas desatendidas. Atinge o nervo, procura a ferida, nota-se o músculo – o ritmo está à mostra, os pulmões provocam aquele ruído surdo da vida inteira. Nada se esconde, nem o que se devia esconder; o exercício é autobiográfico, mesmo que Isabela Figueiredo possa ser uma excelente ficcionista:
«Ele sentia prazer em viver e gostava de comer, beber e foder, isso já expliquei. Lourenço Marques, na década de 60 e 70 do século passado, era um largo campo de concentração com odor a caril. Em Lourenço Marques, sentávamo-nos numa bela esplanada, de um requintado ou descontraído restaurante, a qualquer hora do dia, a saborear o melhor uísque com soda e gelo, e a debicar camarões, tal como aqui nos sentamos, à saída do emprego, num snack do Cais do Sodré, forrado a azulejos de segunda, engolindo uma imperial e enjoando tremoços. Os criados eram pretos e nós deixávamos-lhes gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido rápidos no serviço e chamado patrão. Digo nós, porque eu estava lá. Nenhum branco gostava de ser servido por outro branco, até porque ambos antecipavam maior gorjeta. O meu pai, a quem coube a missão de electrificar a Lourenço Marques dos anos 60, nunca quis empregados brancos, porque teria de lhes pagar os olhos da cara.»
Mesmo quando a dor atravessa as linhas, os parágrafos, a respiração não cessa, nem a enumeração de indignidades, o ajuste de contas. Exactamente isso: ajustar contas com África, a puta. Curiosos portugueses voltados para «a grande Europa», com nojo dos mosquitos e dos pretos, provincianos do Velho Continente, cheios de pó, cobertos de pó – Isabela Figueiredo providencia socos no estômago, às vezes desnecessários, mas pressente-se a sua urgência, aquela espécie de queda para o abismo que leva a mexer em todas as feridas, as pessoais e as da rua, as da multidão de retornados que chegaram à Metrópole e começaram a viver perto da linha que delimita o nada e o tudo. Eles mudaram Portugal – nunca se lhes reconheceu essa vitória sobre o destino. A esquerda gosta muito da imagem do fim do Império, alinhada em contentores no cais de Alcântara. À força de ser repetida, essa imagem é tão miserável, tão exploradora dos ataques de coração da época. Vir para um país de merda, que proibia as mulheres de fumar nos cafés e de beber cerveja nas esplanadas, mesmo naqueles anos em que o Verão era mais quente. Vir do Índico para um país cheio de Inverno. E, no entanto, eles mudaram Portugal. A província, esse interior onde hoje vive um quarto da população encarregue de três quartos do território, mudou com os retornados. Portugal mudou com essa gente. Ainda não lhes agradecemos como eles mereciam e merecem. O país recebeu, em três meses, cerca de 750 mil portugueses que vieram sem preparação, para dar mais brilho à narrativa da História, heróica e descolonizada. Trinta anos depois, 40 anos depois, quase não há feridas e esses heróis que escaparam como puderam, que atravessaram o deserto e o mar, estão hoje abrigados – porque não desistiram.
Isabela assalta os portuguesinhos que invejavam os retornados; com toda a crueldade de que foi capaz: «A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. Os portugueses da metrópole eram pequeninos de ideias, tão pequeninos e estúpidos e atrasados e alcoviteiros. Feios, cheios de cieiro, e pele de galinha, as extremidades do corpo rebentadas de frio e excesso de toucinho com couves. Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho, que tínhamos de trabalhar, os preguiçosos de merda, que nunca fizeram a ponta de um corno pela vida, que nunca souberam o que era construir uma vida e perdê-la, os tristes, os pequeninos, os conformados. Sabiam lá eles o que eram os pretos, e o que éramos nós e o que tínhamos acabado de viver, cobardes filhos de uma puta brava.»
E, quando menos se espera, o golpe, directo ao coração: «Os desterrados, como eu, são pessoas que não puderam regressar ao local onde nasceram, que com ele cortaram os vínculos legais, não os afectivos. São indesejados nas terras onde nasceram, porque a sua presença traz más recordações. Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono. Haveria sobre mim essa mácula. A mais que provável retaliação. Mas a terra onde nasci existe em mim como uma mácula impossível de apagar. Persigo oficiais marinheiros que trazem escrita, na manga do casaco, a palavra Moçambique.»
09 Janeiro 2010
Carta de amor a um pai racista
por Fernanda Câncio
Nascida em Moçambique, deixou a sua terra aos 12 anos, em 1975, para a segurança e o desprezo da metrópole. O seu recém-publicado 'Caderno das Memórias Coloniais' é a história de uma retornada que assume o racismo português.
Todos os lados possuem uma verdade indesmentível. Nada a fazer. Presos na sua certeza absoluta, nenhum admitirá a mentira que edificou para caminhar sem culpa ou caminhar, apenas. Para conseguir dormir, acordar, comer, trabalhar. Para continuar. Há inocentes-inocentes e inocentes-culpados. Há tantas vítimas entre os inocentes-inocentes como entre os inocentes-culpados. Há vítimas-vítimas e vítimas-culpados. Entre as vítimas há carrascos.
Passa muito tempo até termos a voz, até termos saldado, a bem ou a mal, a dívida que pensámos dever; até cuspirmos no dever e na honra e na fidelidade, essas cordas tão sujas, tão forçadas. Até não nos importarmos de ser apenas umas cabras, párias do sangue e da raça. Até perder a fé e a cortesia. Tudo.
Isabela tem 46 anos, um blogue criado em 2005 (Mundo Perfeito) e um livro, publicado agora na Angelus Novus, a editora do crítico literário e poeta Osvaldo Silvestre, que dá pelo nome de Caderno de Memórias Coloniais e compila textos do blogue e textos sem ser do blogue, textos mais curtos ou mais compridos mas todos densos, sanguíneos, doces e brutais, como algo que vem das entranhas. "Comecei a escrever e a gostar do que estava a escrever. Achei que estava a sair bem, Com ternura mas também com violência. Claro que tenho medo de ser mal interpretada. Mas sinto muito alívio. Libertei-me de um fardo que carreguei comigo a vida toda."
O livro desfaz o postal da África colonial mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados, "naturalmente submissos" e agradecidos, a quem "se tratava muito bem". Não:"É terrível falar disto mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão. Não tinham direitos. E por muito terrível que tenha sido o que aconteceu no fim aos portugueses,e foi, era inevitável que saísse aquela raiva por algum lado."
Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça nos massacres dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas. "Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão. Sabiamos que se entrassem não escapávamos. Não sei por que não nos atacaram - ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram". Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante. "As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podiamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capolanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era era proibido."
Até há 15 anos, nunca tinha falado disto com ninguém. E até ter começado a escrever no blogue, nunca tinha falado como tinha de falar de África, de Moçambique, das suas memórias de infância e do seu pai, o homem enorme que a pegava ao colo e a levava para todo o lado, para as obras onde era electricista e onde dirigia "os seus muitos pretos" e os agredia com palavras e porrada, para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso, "um preto de merda", "um preto cabrão", para os longos passeios pelo mato onde se perdia por picadas que não davam para lado nenhum, o homem que lhe disse sempre: "Tens de ser independente, dona da tua vida".
O pai contraditório, monstruoso e deslumbrante e inultrapassável que morreu em 2001, já em Portugal, depois de ter ficado em Moçambique mais dez anos com a mãe, depois de ter estado preso um ano e perder metade do peso por "dizer mal de Samora Machel" ("Se não tivesse vindo para cá acabariam por matá-lo"), o pai para quem toda a gente que não via "os pretos" como ele era "comunista", o homem que mandou em lágrimas a filha única e adorada aos 12 anos, em 1975, para "a metrópole" onde ela andou uma década de casa em casa, uma refugiada de avó em tia, sempre com a roupa numa mala debaixo da cama, sem gavetas nem armários e um cão, o Farrusco que segura ao colo na foto da capa do livro, como única companhia até ser envenenado por uma das familiares (e os olhos ainda se carregam agora, como se nessa atrocidade estivesse tudo - passar a porta de vidro do aeroporto para o avião e para o "slide cinzento" que Portugal lhe foi, nunca mais voltar, viver em "casas metidas para dentro", deitar fora a roupa colorida para não a apontarem na rua "olha a retornada exploradora dos pretos", o silêncio ante os insultos: "Dizer que não era mentir, dizer que sim era trair o meu pai").
Trair o pai. Isabela, o nome que Isabel Figueiredo Almeida Santos, agora professora, antes jornalista, adoptou no seu blogue, nunca quis fazê-lo. "Tinha de me posicionar de forma muita ambígua - tinha de gostar dos meus pais e ao mesmo tempo lidar bem com a minha consciência. Escrevi este livro porque senti que esta história ninguém a contava. E que contar a história do meu pai era contar a história dos portugueses. Porque ele não era diferente." Porquê só depois da morte dele? "Muitas pessoas pensam que isto é um pontapé no pai morto, mas não é. Ele sabe que não estou a mentir".
Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça, escreve. A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo e que mantém a mãe protegida do que escreveu e sentiu - mesmo se, reconhece, "apesar de falar muito menos com ela que com o meu pai, às vezes ela surpreende-me nas coisas que sabe de mim". A "traidora" que caminha na fronteira entre todas as lealdades: "É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita - e podia não ter sido. As pessoas foram entregues."
23-12-2009
Balanço
Os livros de 2009
Caderno de Memórias Coloniais
Isabela Figueiredo
Angelus Novus
Sente-se o abalo que este "Caderno" causa no marasmo literário nacional em passagens como esta: "Foder. O meu pai gostava de foder. Eu nunca vi, mas via-se." Relato cru do racismo português em Moçambique no fim do Império, memória do amor de uma filha pelo corpo do pai, história de traição a uma "verdade" que morreu com a morte do colonialismo. Um texto parcial, violento, escrito como se escrevem Caderno: com o fantasma da verdade sempre ao lado. Isabela Figueiredo afirma-se escritora, num país onde só proliferam "autores", esses manequins de vender autógrafos. G.R.
Gustavo Rubim
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Fevereiro de 2010
Porquê, pai?
João Morales
prós | A crueza da linguagem e a frontalidade das recordações
contras | Seria interessante perceber o papel da mãe em todo este constrangimento que Isabel sentiu.
Há livros de memórias que parecem ter som. E Isabel Figueiredo consegue-o perfeitamente nestes curtos textos (nascidos no blogue Mundo Perfeito) onde nos fala da sua experiência em África, do racismo praticado pelo pai, do sentimento de ódio que isso lhe recalcou, da descoberta da sexualidade ou do sentimento de se sentir num «mundo de ninguém» ao entrar em Portugal.
A linguagem é crua – “as pretas tinham a cona larga, diziam as mulheres dos brancos, ao domingo à tarde, todas em conversa íntima debaixo do cajueiro largo” – e não há subterfúgios para descrever os dias de então: “o negro estava abaixo de tudo. Não tinha direitos. Teria o de caridade, se o merecesse”.
O pai, electricista, procedia aos pagamentos no fim-de-semana, impondo o medo e a humilhação: “ o meu pai tinha o condão de transformar os finais dourados das tardes de sábado num poço escuro de medo e raiva.”
Isabel levou anos até escrever o que a atormentava; até assumir esta catarse. «Precisamos de tempo para compreender. Para matar. Para poder olhá-los de novo na cara com o mesmo amor. Para perdoar.» E só o fez depois da morte do pai. Um livro que é um murro no estômago.
24-12-2009 - Ípsilon - Livros
Isabela Figueiredo: "O colonialismo era o meu pai"
Alexandra Prado Coelho
Os retornados "tinham um acordo tácito para não falar". Isabela Figueiredo quebrou esse acordo. "Caderno de Memórias Coloniais" é um dos livros do ano para o Ípsilon.
Foi no blog Mundo Perfeito (e agora no Novo Mundo) que os textos de Isabela
Figueiredo começaram a aparecer. Escrevia sobre aquilo que durante anos não
tivera coragem de enfrentar: a infância em Moçambique, o racismo dos colonos
portugueses. E, sobretudo, do pai, essa figura que "trazia o mundo" até ela.
"Caderno de Memórias Coloniais", editado pela Angelus Novus, é um ajuste de
contas com o pai morto. E com muitos retornados vivos. E com os que em Portugal
os receberam e os maltrataram não percebendo que eles já tinham sido
maltratados. É uma libertação de muita raiva.
Aquilo que conta no seu livro, a violência quotidiana dos brancos sobre os
negros em Moçambique - e da forma crua como a conta - é um testemunho raro?
Nunca li nada sobre este assunto, não penso que tenha sido contado antes. Nós,
retornados, não falamos disto uns com os outros, por pudor. Eu não tinha com
quem falar. Lembro-me do [escritor angolano José Eduardo] Agualusa há 20 anos,
depois de eu ter escrito uma coisa muito folclórica, muito suave, sobre
Moçambique no "DN Jovem", me ter dito que eu não tinha contado a verdade. Não
lhe disse que achava que ele tinha razão, mas tinha. Eu não estava a contar a
verdade, não podia contar a verdade porque havia um pacto de fidelidade com o
meu pai. Não podia falar daquelas coisas com o meu pai vivo, sabendo que ele ia
ler.
O facto de não pertencer à classe média e média alta da então Lourenço
Marques, de ser de uma classe mais baixa, era para si um problema?
A diferença de classes entre portugueses não é uma coisa que me preocupe, é uma
coisa que para mim era normal. Eu era a filha do electricista, e gosto dessa
ideia. Ouvia o meu pai falar sobre as casas dos senhores da alta, onde ele ia
fazer as instalações. O meu pai era um homem pobre, foi para África porque
precisava de ganhar dinheiro, estava sempre a dizer-nos que não éramos ricos,
éramos remediados. Eu sabia o meu lugar no esquema da sociedade colonial.
Porque é que esse seu mundo, dos brancos mais pobres, nunca foi contado? Os
relatos que existem sobre a vida nas ex-colónias são sobretudo sobre a guerra ou
então livros mais nostálgicos.
Porque é o que se aceita. Quando chegámos a Portugal fomos muito maltratados. Eu
era criança e fui muito maltratada pelos meus colegas, pelos meus familiares.
Diziam que o meu pai e a minha mãe eram ladrões, que tínhamos tido pretos para
nos lavarem os pezinhos e o rabinho. E que merecíamos ter perdido tudo.
Quisemos esquecer esse nosso passado, quisemos integrar-nos. Queríamos ser
iguais aos outros, não queríamos ser retornados, queríamos ser portugueses. Por
isso durante muito tempo não falávamos do passado e só dizíamos aquilo que era
socialmente correcto. O que é que era aceitável? Participar na guerra colonial,
que toda a gente está de acordo em dizer que foi má, morreu muita gente. Ou
então relatos que começaram a aparecer há dois ou três anos, sobre os "fait-divers"
da vida nas colónias, como era bom, tínhamos a nossa fazenda, a nossa quinta, a
vida era suave e doce, tínhamos criados mas tratávamos todos os nossos criados
muito bem.
Existe uma ligação entre nós, retornados, todos vivemos as mesmas coisas. Aquilo
que eu vi só eu é que vi? Os outros tinham os olhos tapados? Não pode ser.
Não tratávamos os negros como nos tratávamos uns aos outros. Mas dizer isso é
admitir que afinal quando cá chegámos eles tinham razão quando diziam que
andámos a tratar mal os negros e merecíamos tudo o que eles nos fizeram a
seguir. Isso era verdade, mas quando chegámos cá já tínhamos pago um preço.
Tínhamos todos um acordo tácito para não falar, não revelar a verdade. Eu
participava em convívios com o meu pai e a minha mãe, e a conversa sobre os
negros era comum. O que é feito dos filhos dessas famílias que também estavam
nessa mesa e também ouviam as conversas que eu ouvia? Têm que estar algures.
Apagaram isso da memória? Muitas pessoas têm esse conhecimento mas não o revelam
porque revelá-lo constitui uma traição aos pais. Para mim isto também não é
fácil. Continuo a achar que de alguma forma é uma traição à memória do meu pai.
Tudo isto podia ser contado de uma forma em que não se expusesse tanto, mais
ficcionada. Porque é que optou pela autobiografia?
Senti que não podia distanciar-me. A certa altura, teria talvez uns 20 anos,
apercebi-me, porque as outras pessoas me diziam, que me tinha tornado uma pessoa
violenta. Diziam-me que reagia com enorme violência.
O facto de ter sido testemunha de uma série de acções que me pareciam erradas e
não poder dizer nada sobre elas tornou-me uma pessoa violenta. A minha expressão
é violenta, escrevo de forma violenta. Não queria ficcionar, queria contar a
verdade, a realidade com a crueza com que a vivi.
Diz numa entrevista no fim do livro que a sua escrita não foi sempre assim.
Como chegou a esta escrita concentrada?
O primeiro livro que escrevi, há 20 anos, ganhou um prémio literário. Também era
sobre África, mas era uma coisa ficcionada, e depois de o ter escrito queria
escrever mais, queria tornar-me escritora. Mas não sabia sobre o que escrever,
não tinha um tema, não podia escrever sobre aquilo que queria escrever. Foi
preciso esperar muito tempo, que o meu pai morresse, que eu fizesse o luto dele,
que fizesse uma série de anos de psicanálise, para ter vontade de escrever o que
está aí. São coisas que precisava de dizer. Estavam aqui há muito tempo. Desde o
tempo que eu cheguei cá aos doze anos e as pessoas me diziam "tu és uma
retornada e andaste a roubar os pretos". Pagámos bem caro. Sofremos muito depois
da independência lá, vimos muitas atrocidades, amigos da nossa família foram
assassinados, vimos os corpos deles. Quando nos trataram mal à chegada
esqueceram-se que já tínhamos sido maltratados.
Essa violência contra os brancos não alterou o seu olhar crítico em relação
ao colonialismo?
Isso era o problema que eu tinha com o meu pai. Ele só conseguia ver um lado e
eu estive dos dois lados ao mesmo tempo. Eu era uma miúda consciente, tive uma
educação muito boa, o meu pai era um homem com bons valores, educou-me para
compreender o outro, deu-me uma educação católica. Era um homem sensível e
inteligente e essa incompatibilidade entre o discurso e a prática do meu pai eu
via-a, compreendia-a mas não podia fazer nada, não podia dizer isto ao meu pai,
não podia dizer aos amigos dele, não podia dizer a ninguém. Estava lá naquele
campo de concentração [no livro, Isabela Figueirado chama a Lourenço Marques um
campo de concentração com cheiro a caril] e estava a ver o panorama todo e não
podia dizer nada a ninguém e tinha oito anos e compreendia isso.
Quando foram os massacres que se seguiram à independência compreendi que era a
justa retribuição. Não era possível o meu pai ter estado lá aqueles anos todos a
tratar mal os seus empregados negros e não termos devida paga. E o meu pai teve
muita sorte, porque os seus amigos das machambas morreram com uma catanada no
pescoço. Claro que eu achava aquilo horrível mas tinha que estar sempre a fazer
aquele trabalho de contextualização. Quando me vim embora fiquei muito aliviada.
Ficava esquizofrénica se ficasse em Moçambique.
Estavam muito isolados no sítio onde viviam?
Não, tínhamos muitas famílias amigas. O que acontece é que eu não tinha
autorização para brincar com outras crianças, era muito protegida pelos meus
pais, provavelmente por ter sido uma filha tardia. Vivia muito encerrada com a
minha mãe em casa. Lembro-me das festas do meu aniversário, e eu era a única
criança, todos os convidados eram adultos, amigos dos meus pais. Por isso eu
ouvia muito, porque não tinha nada para dizer, só podia ouvir.
A minha mãe tinha muito medo que eu fosse brincar com meninos pretos, porque
sabia que eu não fazia a distinção. Penso que fui uma grande decepção para os
meus pais, esperavam que fosse uma menina mais conservadora, mais obediente, que
visse o mundo como eles o viam.
Mas no livro tudo se centra na figura do seu pai, que absorve a culpa de todos
os colonos.
O meu pai foi um mediador entre mim e a realidade. Eu conhecia a realidade
através dele e do mundo que ele trazia até mim. Portanto só posso culpar o meu
pai. O colonialismo é o meu pai, a discriminação é o meu pai, porque foi o meu
pai que eu vi fazer isso. Eu andava sempre com ele. Ele gostava muito de mim,
levava-me para todo o lado.
A minha mãe não é parte activa nisto. Não culpo a minha mãe de nada. A minha mãe
era a pessoa que me vestia, me penteava, que cuidava de mim, mas o meu pai era
uma pessoa por quem eu tinha enorme admiração. Havia entre nós uma proximidade
muito grande, um grande amor. Mas ele decepcionava-me com as suas acções. Eu não
suportava ouvi-lo dizer coisas como "os pretos são uns cães".
A vossa relação modificou-se depois do regresso dele a Portugal?
Eu vivi sozinha durante dez anos, sem pais. Andei por vários sítios, estive num
colégio, andei ao Deus dará. Ele voltou quando eu tinha 22 anos e julgava que eu
tinha 12. A partir dessa altura a nossa relação foi terrível, porque éramos dois
seres ideologicamente opostos, ele chamava-me comunista, eu chamava-lhe
fascista. Mas ficávamo-nos muito pela política em Portugal.
Acho que nunca falei verdadeiramente com o meu pai sobre como ele me decepcionou
por ser um racista. Era mais fácil a conversa sobre a política portuguesa do que
perguntar-lhe: "diz-me lá porque é que tu sendo uma pessoa tão católica pudeste
tratar um ser humano igual a ti tão mal". Nunca tive coragem para lhe dizer
isso.
E continua a não ter resposta para essa pergunta?
Eles achavam que era legítimo. Não há uma resposta lógica, mas o meu pai
acreditava que os negros eram inferiores aos brancos, que não eram tão
inteligentes, e a força de trabalho deles era uma força bruta, a cabeça deles
não dava. Acreditava que os pretos podiam ser homens bons, mas esses eram os que
se davam bem com os brancos e obedeciam. O meu pai acreditava que essa era a
ordem do mundo, era assim que as coisas eram, e não discutia isso como não
discutia a existência de Deus.
Essa mentalidade continua hoje em muitas pessoas?
Acredito que a maior parte dos retornados estão integrados na sociedade
portuguesa mas sobretudo os da idade do meu pai ou aqueles um bocadinho mais
velhos que eu continuam a pensar exactamente como pensavam antes.
Qualquer esforço de verbalização disso da parte da sua geração implica uma
ruptura violenta em relação aos pais.
Neste momento não sei quem, entre familiares e amigos, leu esse livro. Tenho
receio do momento em que as pessoas chegarem ao pé de mim e disserem: "Isabel,
li o que escreveste sobre o teu pai e Moçambique, estou muito decepcionada
contigo, o que disseste é uma carrada de mentiras. Além disso traíste a memória
do teu pai e isso é uma coisa muito feia". Mas não são mentiras.
Mas para si dizer a verdade era mais importante? É sempre uma questão de
opção, é preciso sacrificar qualquer coisa.
Eu não podia esconder mais isto dentro de mim. Era uma coisa que precisava
de dizer. Nem sequer foi uma opção. Sei que isto é verdade, e essa minha
consciência da verdade basta-me.
Os livros que alimentam a nostalgia e a imagem idílica de Angola e Moçambique
têm tido um grande sucesso.
Fico muito zangada sempre que vou a uma livraria e sou confrontada com um livro
sobre essa imagem [idílica de África] - e depois começo a ler como era bom comer
papaia, e como tínhamos uns criados que tratávamos muito bem, e como as
roupinhas dos nossos filhos iam todas para eles. Acredito que haja pessoas que
não tenham participado activamente em acções destas [de discriminação e
violência], mas foram cúmplices, como na Alemanha.
Depois de escrever o livro sentiu-se liberta?
Sim, sobretudo depois de o enviar para a editora. Senti algum medo daqueles
retornados que estão calados nos seus gabinetes de sucesso a dar ordens e a
fazer de conta que nunca estiveram lá e que nunca foram como o meu pai, mas
foram. Mas por outro lado senti-me muito aliviada.
O que sente em relação ao seu pai não tem também a ver com essa mágoa de ter
sido deixada sozinha num país desconhecido aos doze anos?
Porque é que eu bato tanto no meu pai aqui? É pela questão do abandono? Não, é
porque ele foi mesmo um grande filho da mãe. E porque fez coisas que não devia
ter feito, porque as fez à minha frente, porque me magoou, e porque eu nunca lhe
disse isso directamente e devia ter dito. E se digo com alguma violência é
porque essa violência ainda não está totalmente gasta. Sinto ainda alguma raiva,
mas é uma raiva boa porque se exprime, não está cá dentro a corroer-me.