8-1-2009

 

 

Notícias das regiões e povos de Quisama e do Mussulo – 1798,

pelo

Coronel Paulo Martins Pinheiro de Lacerda

 

  Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, foi militar nas guerras de Angola entre 1778 e 1798, e nesta última data escreveu os textos que seguem sobre as regiões e os povos de Quisama e do Mussulo. Desconheço em pormenor a sua biografia, mas do texto verifica-se que serviu no Brasil de 1753 e 1758 e que no Exército teve pelo menos os postos de Sargento-Mór, e Coronel.  De facto, após a Campanha do Mossul em 1790/1791, foi promovido de Sargento-Mór a Coronel, como prémio do seu valor e valentia, por determinação régia de D. Maria I. Elias Alexandre da Silva Correia, na sua História de Angola (2.º vol. pags. 179-232), descreve epicamente a campanha militar de 1793/1794 referida neste texto, narrando 27 combates, desde a partida em 4 de Junho de 1793 até ao regresso triunfal a Luanda em 22 de Junho de 1794. Obteve depois a passagem à reforma na mesma patente de Coronel com soldo inteiro, para gozar em qualquer parte. Mudou-se para o Rio de Janeiro e alcançou o posto de Brigadeiro, pago sempre por Angola, como praça daquela Conquista.  

 

 

Notícias do País de Quisama e do Exército que foi a castigar os gentios daquela província, pelos insultos por eles cometidos, de furtos, e mortes feitas aos vassalos de Sua Majestade Fidelíssima, moradores na Cidade de S. Paulo Reino d’Angola, e nos das margens do Rio Quanza.

Está a Província de Quisama situada na margem meridional do Rio Quanza dez léguas ao Sul da cidade capital d’Angola. Seu continente se estende pela Costa d’África da foz do mesmo Quanza para o Sul coisa de quarenta léguas, e fenece na Foz do Rio Longa. Estes dois rios abraçam a Quisama; e subindo por sua corrente para Leste se vão aproximando um a outro, de sorte, que no nosso Presídio de Cambambe (que está na margem setentrional do rio Quanza) não dista do Rio Longa mais do que sete léguas atravessando a terra de Norte a Sul: mas dali para Leste sem embargo de que o Quanza vai sempre procurando Leste, Leste-sueste, e Sueste até Sul com suas origens, o Longa se lhe desvia tanto para o Sul e Sudoeste, que deixa entre estes dois rios todo o grande Libolo, e outras províncias dilatadíssimas, povoadas de muitos negros todos gentios, e por onde muitos brancos, e outros pumbeiros, entram com fazendas a comprar escravos: mas a província de Quisama, verdadeiramente se denomina até pouco acima do nosso Presídio de Cambambe; porque dali para cima já se chama o Libolo de Baixo, ou Alta Quisama. Toda a terra da Quisama é pouco montuosa, e de muitos campos, mas tudo muito estéril de água; por isso seus habitantes em tempo de secas padecem muito; pelo que são muitas povoações vizinhas dos dois rios Quanza, e Longa, donde bebem água; e os que vivem mais no interior da província, se servem de umas grossas árvores a que chamam embondeiros, dos quais fazem suas cisternas do modo seguinte:

Cavam por dentro estas grossas, e altas árvores (que são moles como cortiça, e algumas por sua natureza são ocas por dentro, por onde também criam casca como por fora). Nelas, em tempo de chuvas, recolhem seus vizinhos água, até que enchem aquele oco, e fica-lhe servindo de cisterna, que lhe guarda e sustém a água de um ano a outro, e dali se servem; e não é comum para todos, mas tem seus donos; e cada qual bebe e se serve da sua, e a vendem a quem carece dela.

Para a tirarem, se servem para baldes, de umas grandes cascas de frutas dos mesmos embondeiros a que chamam mucoas, do feitio de grandes cabaços, porém muito mais duras, e fortes: e como os Embondeiros são altos, lhe fica a boca da sua cisterna muito alta. A necessidade, e experiência os ensinou a fazerem uma nova espécie de escadas de que se servem, e são seguinte modo:

Cortam pedaços de paus de grossura de um dedo, e comprimento de um palmo, aguçam-lhe uma ponta; e como o embondeiro é mole, os vão cravando pelo pau acima, distantes uns dos outros até chegar ao cimo; e por eles, como escadas, sobem e tiram com as baldes água quanta precisam.

Estes embondeiros lhe servem de muitas utilidades; porque não só usam deles para cisternas, como fica dito, mas tiram-lhe a casca, como quem tira a cortiça dos sobreiros; e esta, pisada, e amassada, depois de seca fica como uma espécie de linho, ou estopa, e ajuntando muita por um dos extremos, fazem uma maneira de trança como franja muito comprida, ou como os cabeleireiros entrançam os cabelos para as cabeleiras: esta, enrolada ao redor das cintas das mulheres, lhes serve de saiote que as cobre até os joelhos à maneira de fraldas dos Anjos, que assim parecem quando vêm vestidas. Isto usam todas; e o mais restante do corpo nu, e só ornadas com algumas contas de cristal de várias cores, a que chamam missangas. Esta casca ou estopa sobredita, chama-se aliconde. Que também nos serve em Angola para tacos das peças de artilharia, para lanadas, e para murrões, e são muito bons.

Servem-lhe mais os embondeiros de paióis para guardar os seus mantimentos colhidos; porém o milho, feijões de várias qualidades que ali há, e a Marambala (que é milho mais pequeno muito bom) fazem de palha, ou feno um grande molho, e o atam a um extremo, e abrindo-o para os lados em circunferência, lhe serve de saco, e o enchem dos ditos legumes; e atando-lhe o outro extremo, o vão pendurar nos Embondeiros, e ali os conservam o tempo que querem, sem que lhes faça mal o sol, nem a chuva.

Servem-lhe também os Embondeiros para nos mais altos de seus galhos, ou ramos, porem as suas colmeias, que são duas cascas de pau atadas uma na outra com o côncavo para dentro, e tapadas nos extremos com barro, ou outra casca com o seu buraquinho: ali fabricam os enxames das abelhas, o seu mel e a cera (que é um grande ramo de comércio) e este canudo assim atado ao comprido em cima do embondeiro, se servem da sua utilidade, fabricando ali as abelhas.

Todos estes gentios da Quisama são circuncidados (isto é quase universal em todo este sertão da África). Eles prezam pouco o sexo feminino; de modo que os homens se enfeitam mais, vestindo melhor, e muito toucados os seus cabelos: eu vi, e admirei o modo com que eles trazem penteada, e entrançada aquela carapinha de diversos modos; porque, uns fazem do cabelo quatro tranças ao alto, que unidas umas às outras forma uma espécie de feitio de mitra, tudo das tranças do dito cabelo, e para os conservarem nesta postura, o trazem sempre subjugado com um pano a modo de lenço bem atado. Outros com mais galanteria, fazem duas grandes rodelas, do diâmetro de dois palmos, e mais: umas são de tranças do mesmo cabelo, e outras são tecidas de palha, e subjugadas com as tranças; que mais bem parecem orelhas de elefante, do que outra coisa. Estas rodelas são movediças sobre as orelhas, ou lados, de modo que, quando querem, as trazem altas, e caídas para as costas (isto é sobre a cabeça); e quando o sol é forte, as deixam cair sobre a cara à imitação dos ant’oIhos das bestas.

Uma coisa se admira com muita diversidade dos outros gentios; porque entre os Quisamas se acham moças de 20, e mais anos, donzelas, e ao contrário os mais do sertão. São muito resolutos, e destros em se servirem das suas armas de que usam na guerra, que são espingardas, e as carregam a cartucho, os quais trazem, não em cartucheiras, como os nossos soldados, mas vêm cingidos com uma cinta larga de pano, ou de coiro, e ali entre aquela cinta, e o corpo, trazem os cartuxos, que bem lhe parece (que nunca são poucos). Usam também arma branca todos, e é um cutelo, ou podão sem volta na ponta (como as fouces). Este com seu cabo pequeno de sorte que cabo e ferro não excede a dois palmos e meio de comprido, largo, forte, e bem afiado; e assim que disparam a sua espingarda, por baixo da mesma fumaça da pólvora, avançam com o seu podão na mão direita, e a espingarda na esquerda, e com ele fazem estrago grande. Em um assalto que se foi dar na povoação de um destes gentios chamado Humba, defronte da Vila de Massangano, mataram mais de 50 dos nossos soldados: e um Quilamba do Bango Bango lhe deram com o podão tal cutilada no cimo da cabeça, que o abriram até os olhos, e ficou morto.

Nesta província de Quisama há a grande mina de sal mineral (ramo de comércio de muito interesse em todo este sertão). O Sova dominante do distrito onde se fabrica, e extrai o tal sal, se chamava no ano de 1783 quando conquistei a Quisama, Caculo Caquimone, e a sua terra, e mina, se chama Demba: não será fora de propósito o explicar eu aqui o modo de extrair o dito sal, e é o seguinte:

Em uma grande planície cercada de montes mais altos, mas seca, e sem água para beber, fazem os negros muitos buracos no chão de altura de dois e mais palmos, e do diâmetro de três polegadas. Estes buracos se enchem por si logo de um humor que da terra verte para eles, e fica aquele líquido em consistência de geleia branda. Logo que assim está cavam os negros a terra em roda daqueles buracos, e o tal humor (que é o sal) assim que se expõe ao ar, petrifica, ficando uns de cor branca escura, e outros cor de chumbo claro; como estas formas saem irregulares, os negros com os seus podões as aperfeiçoam, raspando-as, e limpando-lhe a terra que sai pegada, e põem em figura oitavada ao comprido, ficando da grossura de duas polegadas, e do comprimento de dois palmos, e menos. Então as empalham com feno em roda ao comprido, e lhe põem umas talas, ou varinhas em circunferência, e as apertam com umas cordinhas de casca de pau para assim poderem viajar aquela droga sem se quebrar: o sal que lhe fica das raspas quando aperfeiçoam as tais pedras, se servem dele para seu tempero, e uso.

Logo que tiram da terra o sal, cegam outra vez com a mesma terra a cova donde saiu; e assim continuam por toda aquela planície da Demba, porque passado tempo, no mesmo lugar onde já fizeram sal como fica dito, lhe torna a terra a dar outro precedendo a mesma diligência.

Este sal viaja para todo o sertão de Angola terra dentro, onde vale como moeda corrente a tostão cada pedra, sendo que na Demba onde é a mina dele, se vende a vintém, e a menos.

Os Sovas mais poderosos e nomeados desta província são o Quimoene Quialonga que domina toda a margem do rio Quanza, desde logo abaixo do nosso presídio, e fortaleza de Muxima até à foz do mesmo rio, que serão perto de 50 léguas.

O de Muxima chamado do mesmo nome (Sova Muxima) que parte com o Quimoene Quialonga pela parte de Oeste rio abaixo, e rio acima parte com o Sova Cazua, que fica logo acima de Muxima e é senhor da grande lagoa do Ingolo que desagua no Quanza por um rego grande, e que eles chamam muje; e é muito limitada a extensão da terra do Sova Muxima beira rio Quanza. Acima logo do Cazua há uma libata grande, cujo Sova, se chama Calibata do Gungo.

Há mais Sovas de menos nome como são o Dambi, o Cazua, e o grande Catala Catala mais terra dentro; e quase defronte da Vila de Massangano está o grande e forte Molumba Cambolo, ou Humba, e mais acima o Camariandunga na lagoa de Sala Quicata, que eu conquistei; e o principal Sova da Quisama denominado Quinbamlala o axica (não porque tenha um grande Estado e poder, mas pelo seu respeito e antiguidade, pelo que todos lhe prestam obediência, e por isso a ele é remetida uma grande pedra de sal que fazem de tempos em tempos para ele remeter à Rainha Ginga, a quem eles reconhecem por superiora a todos os Dembos, e Sovas).

Esta pedra de sal assim que o Quinbambala o axica a recebe, a remete ao Cambringo, ou Cumburiaquina, que é o primeiro Sova do Libolo de Baixo que é seu areu: este a remete ao Lumgariahango; e este aos que se seguem dali para diante, até chegar a apresentar-se a sua Senhora Ginga, de quem todos se prezam de serem descendentes, e súbditos, mandando-lhe aquele feudo, em sinal de humilhação e obediência.

Já que falamos na Rainha Ginga, direi o que alcancei da tradição, e alguns escritos das antiguidades de Angola, cujo nome se lhe deriva do Rei Angola que ali dominava antes, e até o tempo que os primeiros portugueses nela aportaram, e puseram o primeiro Padrão no monte onde está hoje a fortaleza, ou cidadela de S. Miguel; e por isso aquela ponta do dito monte em que ela está, se chama ainda hoje a ponta do Padrão, onde fizeram uma fortaleza com a invocação da Senhora da Guia (de que já não há nem os alicerces, por se tirar a pedra para outras obras em meu tempo desde o ano de 1778 até o presente de 1798 em que isto escrevo).

Deste rei Angola descende em geração, e Estado, a Rainha Ginga, que tinha o seu Marco (que era uma árvore chamada inlandeira, que estava na ilha, no lugar a que hoje se chama a Xicala). Dali para o Norte toda a costa até à foz do Rio Zaire onde os portugueses com Diogo Cão puseram outro Padrão, pertence ao Rei do Congo; e naquele sítio do Zaire governava por El-Rei do Congo, seu tio o Príncipe de Sonho, cujo domínio ainda se conserva. Ali foi derrotado inteiramente, e inteiramente vencido, e morto todo um grande exército português que ali se perdeu, do qual a artilharia se conserva ainda no mesmo poder do Sonho; e mandando este Príncipe oferecer ao Governador de Angola António de Vasconcellos, mandasse buscar a artilharia de Sua Majestade Fidelíssima que ali se achava, lhe respondeu, que Sua Majestade tinha muita artilharia, e como aquela tinha sido tomada em campo de batalha, quando Sua Majestade quisesse, ou tivesse motivo urgente, mandaria outro exército a reivindicá-la.

A Rainha Ginga, que dominava em Angola e daquele seu marco para o Sul até o Reino de Benguela, tinha no lugar das cruzes (um monte pouco elevado ao pé onde hoje é a cidade de S. Paulo de Luanda) a sua feira a que eles chamam pumbo, aonde vinham os do sertão a vender os seus escravos, e mantimentos, e mais drogas, de que pagavam à rainha certa pensão, como entre nós a sisa, a que ela chamava quialoanda, e dali vem a etimologia do nome Luanda que conserva [1]. Dali foi a rainha pelos seus maus comportamentos corrida pelos portugueses, que com guerra a foram vencendo, e ela retirando-se para o interior do sertão. Eu vi nas terras de Quisama, além do mato chamado de Songo, e no sítio de Cangaria Quindongo, e nas terras do Dembo Caboco (memórias que por ali conservam ainda da senhora Rainha Ginga) uns grandes e elevados mausoléus feitos de pedras de altura de doze e mais palmos rectangulares, onde jazem enterradas as soberanas Gingas, e os seus Grandes.

 

(1) Esta feira, e este Estado eram dos reis do Dongo, e não das rainhas Gingas, cujo reino era o de Matamba. Muitos escritores têm incorrido nesta confusão por serem estas duas famílias oriundas do mesmo tronco Angola. (Nota do Editor)  L.L.

 

Como a conquista dos portugueses se foi dilatando para o interior do sertão, ela foi fugindo (depois de disputar muitas batalhas) primeiro para Mocumbi (onde eu vi ainda vestígios de fortificação antiga), dali para Massangano, e depois para as terras que hoje são do Dembo Caboco, e de lá para as pedras de Pungoandongo, e dali mais para Leste-nordeste, e passada a província de Ambaca se estabeleceu onde hoje se acha entre Ambaca e o Dongo, quase no meio do caminho que segue para o Jaga Casange; em cuja jurisdição passa o rio Zaire, ou seu braço com o nome de rio Quango.

Quando ainda a Ginga estava nas terras de Caboco, onde hoje está a nossa Fortaleza, e Presídio de Cambambe, em tempo do Governador D. Manoel de Sousa, foi que veio a Angola aquela famosa Ginga, a pedir ajuda e socorro ao Governador, contra um sobrinho seu que se lhe opunha ao Estado, oferecendo-se a ser vassala de Portugal, e pagar-lhe tributo. Foi bem recebida: baptizou-se e lhe puseram o nome de D. Ana, ou Maria de Sousa.

Assinou termo de vassalagem, que se acha no Arquivo da Secretaria de Angola, mas a tudo faltou, como o tem feito em todas as mais ocasiões que têm as suas sucessoras assinado termos, que se acham no Arquivo de Ambaca, onde os vi; porque assim que se apanhou despicada pelos portugueses, e morto o sobrinho, abandonou a vassalagem, e a religião, e ficou como dantes; pelo que foi castigada com guerra nas suas terras, e se foi entranhando mais para o interior do sertão. Quando esta negra, ou princesa se apresentou ao Governador D. Manoel de Sousa, que a esperou na sala sentado em uma cadeira, tinha uma almofada de brocado em cima de uma alcatifa, para a princesa se assentar, mas ela se não quis servir dela, e se assentou sobre as de uma rapariga, que ensinada se pôs de joelhos, e curvada sobre os braços, e dali deu a sua embaixada; e respondendo a todas as proposições que o Governador lhe fez, com tal erudição, que admirou a todos os circunstantes, e muito maiormente quando o dito Governador lhe propôs as condições de vassalagem: achando-as ela mui pesadas, respondeu: que semelhantes condições só se deviam pretender, e exigir de um príncipe, ou princesa, vencido pela forca de armas, que a uma princesa que voluntariamente se queria sujeitara ser tributaria, e por isso se lhe não deviam carregar condições tão duras.

Dada a sua embaixada, e assentada e feita a cerimónia da sua obediência, e vassalagem, se levantou, e despediu, ficando a rapariga na mesma posição; no que advertindo o Governador, lhe mandou dizer, que mandasse levar dali o seu assento em que tinha dado a embaixada; a que ela com prontidão respondeu: que as pessoas de sua qualidade não costumavam levar os assentos em que se assentavam, e a deixou; mas isto não deve admirar a respeito da barbaridade das antigas Gingas; pois me disseram, que constava da tradição, que quando as soberanas Gingas iam a qualquer função pública das suas gentilidades, traziam três raparigas: duas que lhe serviam de encosto, e uma de assento. Estas todas se curvavam, uma para assento, e as duas aos dois lados assim curvadas. Acabada a função, quando ia alevantar-se, tomava em cada mão um espeto, ou garfo, e assentando-lhe as pontas sobre as costas das duas miseráveis dos lados, carregava fazendo força para se levantar, as cravava de parte a parte, e as deixava ali mortas; e isto fazia todas as vezes que repetia estas gentílicas e barbaras funções. Agora tornemos a Quisama.

A Leste do Quimbumbala fica o Sova Camariandunga, e logo o do Songo; e na ilha que está no meio do rio Quanza, os dois Sovas; Dolo Angailo, e Cogicangone. Mais acima já no Libolo de Baixo o Cumbiriaquina por sobrenome Cambingo (poderoso), situado em uma alta serra distante da margem meridional do rio Quanza mais de meia légua (grande povoação).

Este rio Quanza é navegável de pequenas embarcações até o presídio de Cambambe donde descem a vir buscar água de que bebem e se servem os do presídio por uma altíssima rocha abaixo com incrível trabalho, e perigo. Deste sítio para cima, todo o rio e uma continuada catarata, ou cachoeira, por entre muitos penedos, por onde se despenha por mais de 6 léguas (isto é o que vi) com tal estrondo e bulha, que não deixa ouvir o que se fala, senão muito de rijo; mas disseram-me, que muito acima se acaba a cachoeira, e é navegável, e tão largo, que tem pelo meio ilhas com Sovas, e estados.

O Cumbiriaquina está 3 léguas rio acima do presídio de Cambambe, na margem meridional, como já disse.

Acima deste está em uma alta serra duas léguas distante o Lungariahongo; e como daqui deixei o rio Quanza, e marchei para o Sul buscando o centro da Quisama, e rio Longa, deixei à esquerda os dois sovas de Bungo, e Calamba, e fui acampar junto ao Régulo Querindo Quiamavo. À esquerda deixei à vista muitas povoações do Bamba axica e Bamba a hibo, com dez libatas, id est, povoações; e chegando à de Musungo Ambamba situado em uma alta serra, a deixámos a esquerda, e passados alguns dias voltámos a marcha para Oeste, deixando este Libolo de Baixo; fomos descendo pelo meio da província da Quisama até à grande jurisdição do Langeriambumba, que é o Sova; e a povoação Quixinxe com mais de vinte sovetas súbditos com suas povoações: aqui entre umas montanhas fenece o Riacho Moconga, que em tempo de chuvas é caudaloso, mas nestas planícies se some entre estes montes sem ter mais saída. Mais ao Este deste Quixinxe caindo para o Sul coisa de 3 léguas é o grande gentio Cafuxe Cambari onde há tradição, que nos tempos antigos se perdeu ali um exército de portugueses, em uma cilada que este bárbaro lhe armou, em que caíram, e foram mortos todos, até o chefe. Todos os que ficam nomeados, e este mesmo Cafuxe, foram guerreados, e destruídos pelo exército do meu comando no ano de 1784 em que o governo interino me mandou, o qual me deu por instrução, que castigasse aqueles bárbaros, e fizesse comunicável o caminho da capital de Angola para a Benguela, e conquista da Demba, ou Mina do Sal; o que não se conseguiu, por motivos que não são deste lugar, e por mudarem de comandante do exército, que não deu mais um passo vitorioso. Continuava ainda o meu comando, e seguindo a minha instrução, passei vencedor de Quixinxe a Libata do Omburo, e outros anónimos, que experimentaram a mesma sorte. Busquei outra vez o rio Quanza: venci o grande Malumba Cambolo, e Cana. Avassalou-se o Catale Casala; e quando pretendia seguir para a Demba, e castigar o grande Quenbo, o Cacande, o Gariaxindo, o Catumbo Caquilama, o Cagia Camusumbo, o Queacabangue, o Cacombocazalala, o Cagimo Casala, o Quitombolo Quiacongolo. Deste régulo, fugiu o Comandante Antonio José da Piedade com o Exército que comandava na minha ausência pelo governo interino me ter mandado para Ambaca a título de diligência do serviço, mas politicamente preso, para poderem indemnizar o Piedade etc. Por isso perderam o que podia estar conquistado com grande utilidade do Estado, e se conserva na mesma rebelião absoluta que antigamente, sendo um vizinho tão próximo do Angola, de que não dista mais do que dez léguas, que tantas se contam da Cidade ao sitio de Calumbo, povoação com cabo, e guarda portuguesa; e a Ilha da Quisanga toda povoada de moradores de Angola, e Massangano. Esta Ilha que terá de comprido cinco léguas só a divide das terras da Quisama defronte do Bruto no sítio do Brinco um pequeno esteiro que dá vau em tempo de seca por donde os quisamas vêm a fazer comércio, e muitas vezes invasões na mesma ilha.

Aqui perto fica na mesma Quisama o Cammama Socute, que por várias vezes tem sido castigado com assaltos de Angola, pelos insultos que comete, e foi ultimamente no ano de 1788. Nesta Quisama há também gado vacum, e muitas criações de porcos, e galinhas, que trazem, e vendem aos portugueses por toda a margem meridional do rio Quanza.

Também me disseram, que pelo meio desta Quisama, buscando de Leste ao Oeste, corre um riacho chamado xio. donde bebem e se servem todos os sovas que acima deixo nomeados, do centro da Quisama de que levo dado a notícia verídica do que vi, o que só afirmo, porque o mais o remeto à tradição que dela achei e não afianço a sua realidade.

  

Notícia da campanha, e País do Mosul, que conquistou o Sargento Mór Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, no ano de 1790, até princípio do ano de 1791.

 

A cidade de S. Paulo de Assunção Luanda no reino de Angola, está situada na latitude de 8 graus e 47 minutos a sul da Equinocial. Dela para o Norte distância de cinco léguas, desagua, e faz barra o rio Bengo, e pelo do País se denomina Zenza. Por esta barra entram somente barcos, e canoas, e há ocasiões que se fecha com areia, e nem podem ali entrar, nem sair com grande detrimento do povo da cidade, porque dali vem em barcos a água de que todos se servem, e fazem a sua aguada os navios para as suas armações de Escravatura. Desta barra para o Norte, nove léguas, tem a sua Foz o rio Dande, maior que o Bengo; mas a barra difere muito pouco nas circunstâncias ditas do dito Bengo. Nesta barra há um grande Mangal, que supre de lenha, e madeira para a Fazenda Real, e povo, e por ali sai muito mantimento dos muitos arimos (assim se chamam as fazendas de lavoura que há infinitas pelas margens do rio acima).

Também nesta barra do Dande há um grande forno em que se coze cal de pedra que ali há; mas já fica muito longe, por se ter extinguido a muita que ali havia próxima ao forno. Dali vinha o carvão para as Ferrarias e Palácio do general. Há ali um capitão, e cabo com a patente de tenente, e soldo de 12$000 reis, e um mal construído reduto com artilharia (porque ali vão muitas lanchas dos estrangeiros que estão ancoradas no Logi, ou Ambriz a fazer negócio) e mandam fazer ali aguada por lhe ser no Logi muito dificultosa.

Nesta barra do Dande para o Norte, distância de três léguas, desagua e faz barra o rio Lifune pequeno, inavegável, mas é da melhor água que há nesta Costa d'África do domínio português. As origens deste rio, e do Dande, dizem que vem dos estados dos dois Dembos, o Dambi, e o Quitoxe. A Leste do estado de Ambuila (Dembo poderoso, e vassalo de S. Majestade, mas mau e caviloso) acima da barra deste Lifune, uma légua pela terra dentro, é a povoação do Libongo, vassalos de S. Majestade, e donde sai o bréu mineral. Ali havia a maior e mais bonita povoação de negros com igreja antes da invasão dos bárbaros Musuis, que tudo demoliram, queimaram, e arrasaram. Desta barra do Lifune para o Norte 6 léguas, desagua, e faz barra o rio Onzo, que umas vezes está aberta, e outras, cheia de areia, e se passa a pé enxuto pela praia. As origens deste rio são em uma fonte nas terras do Locuto perto do presídio de Encogi, o que vi, observei quando transitei com o meu exército vitorioso em Agosto do ano de 1793 por aí. Ao Sul da Barra deste rio Onzo estão as primeiras povoações dos Mussuis chamadas Hiembes: a primeira Hiembe Quiriapundo: a segunda Hiembe Masangungo: a terceira Hiembe Riambingue: e a quarta Hiembe Riafrunta. Nestas me disputaram os Mussuis seis batalhas campais, desde o dia 27 de Outubro do 1790 até o dia 31 do mesmo mês, que em todas foram vencidos e mortos muitos, com desconto de me matarem o Comandante da cavalaria daquele exército, o Tenente José Thomaz de Proença, e feriram a muitos soldados.

Da barra deste rio Onzo para o Norte distância de quatro léguas está a grande povoação do Soso, cujo chefe se appelidava general, a quem fiz prisioneiro na batalha última que lhe venci naquela costa em 5 de Marco de 1791. E logo além desta povoação coisa de meia légua desagua, e faz barra o rio Ghoenzo. Este rio só corre por cima da área em tempo de enchentes; porém em todo o mais, para se beber água dele, se cava na areia cinco e seis palmos de fundo, onde se acha boa água: isto é quando este rio se aproxima ao mar, porque nas terras de Banza, Congo, e Lundo onde eu o passei em Junho de 1793 (quando marchei com outro exército a conquistar os gentios do Norte) corre sempre com abundância de água, mas não é navegável.

Da barra deste rio Guizo pela costa para o Norte distância de seis léguas, e o porto do Ambriz (uma pequena enseada na abrigada de uma alta rocha,) e mais ao Norte meia légua, faz o rio Logi barra, que sendo tão rico de águas, não podem entrar na sua barra embarcações de qualidade alguma, e penso que filtrando pela areia sai ao mar; porque na verdade a quantidade de rios que eu vi, e passei, que se metem no Logi, parece impossível ser tão escasso de fundo na barra: por outra parte não me admira depois de ver na América a barra do rio Grande de S. Pedro por onde desaguam infinitos rios que eu vi, passei, e naveguei desde o ano de 1753 até o de 1758 que por ali transitei com o General Gomes Freire de Andrade (que ao depois foi Conde de Bobadela) ser a barra tão cheia de bancos de areia, que ali se perderam muitas embarcações, e tempo vi eu que ela eslava tapada três meses, sem poder entrar, nem sair embarcação alguma, até que por si se abriu, e se fez navegável. Direi dos rios que vi, e sei que por ela desaguam ao mar. O rio de Merim, o das Antas, o das Pilotas, o Guahiba, o do Sino, o do Tibioquari, o Pardo, o do Valcahy, e talvez outros mais que eu não vi. E destes que deixo dito, o de Merim, e o Guahiba, são navegáveis até de corvetas por mais de 30 léguas rio acima; e contudo, na barra é tão escasso de águas.

Tornando ao nosso rio Logi, vi eu na minha digressão com o exército que comandei em 1793, e 1794 pelas terras do Ambiul, Encogi, Ambuela, Quina, Onde, Massango, Lundo, e Zala, que no Logi pagam o seu tributo, e perdem o seu nome os rios Bamba, Ambaia, Luenge, Dananbinga, e talvez mais alguns que não chegaram a minha notícia, e contudo, é escasso na barra como fica dito, e só abundante de lagartos de desmarcada grandeza, de 18, e 20 palmos de comprido, como os que via todos os dias no Dande, e Bengo.

Pode ser que faça reparo a quem isto ler, que segundo que deixo notadas de barras a barras, que dão em 33 léguas e meia: parece que implica por estar a barra de Logi na latitude de 7 graus e 52 minutos; e Angola na latitude de 8 graus e 47 minutos, que sendo em linha recta menos de 1 grau de uma estação a outra; do que provém tamanho excesso das muitas voltas, enseadas, e pontas que faz a costa do mar por onde seguem estes caminhos que deixo dito. Parece tenho dado satisfação a qualquer reparo. Eu andei todas estas léguas a pé com os meus soldados, e pelejando a cada passo em 9 batalhas, e 3 choques que me disputaram em campo; e tenho razão de melhor conhecer as distâncias, pois as calquei e medi experimentalmente, que é mais fiel, que a estimativa, ou tradição, que às vezes padece com o tempo, que tudo consome, e até muitas vezes, a lembrança do passado. Nesta província do Mossul há as povoações seguintes, sendo as de maior nome, e população, a do Marquês, que fica no centro, e é grande: a do Souso, que é quase o mesmo, e o seu chefe se apelida General, ao qual fiz prisioneiro na batalha, e se chamava D. Miguel: a do Quiriri bonita e também numerosa, fica ao Sul das duas ditas: a de Muala, e outra sua vizinha denominada Banjacala, e fica a Leste-nordeste da do Quirire ao Sul da do Muala.

Está situada a do Tabi também grande, na margem setentrional do rio Onzo. Tem por vizinhas mais seis povoações, porem pequenas. Da do Marquês para o Norte, e beira-mar, tem a do Muene Quitungo pequena; mas o Dembo quitungo é dono do porto chamado Quitungo, que é o mesmo do Ambriz, de grande comércio das nações estrangeiras que ali vêm comprar escravos e descem de todo o sertão de Calandula, da Ginga, de Ambaca, das Pedras de Pungo-Andongo, e de todo o Congo, e sertão do Norte, por contrabando prejudicial ao comércio dos portugueses de Angola, e por ser de contrabando lhe chamam eles gentios o Bafo, para onde conduzem, e vão vender os melhores pretos; e a Angola trazem o refugo.

Junto ao Quitungo há outra pequena povoação que é do príncipe daquele Estado. Logo mais, para a beira do mar, está a grande província, aliás povoação do Quincolo, cujo príncipe do nome Jorge Mangolfe, me fugiu nos navios ingleses que ali estavam fundeados, e em um deles foi para Inglaterra, donde suplicaram à Rainha Nossa Senhora, que foi servida, mandar demolir a fortaleza de Nossa Senhora de Nazaré e S. João do Logi, que eu ali tinha construído, a melhor obra da campanha que havia naqueles sertões, e com que estava submetida, e sujeita toda aquela conquista, que com tanto trabalho do meu exército consegui.

Junto a esta de Quincolo, havia outra do Hiumbe Riacolo. Não terminaram aqui as vitórias do meu exército; porque passei o rio Logi para o Norte, e conquistei a grande povoação de Sambo, e a sua famosa lagoa de preciosíssimo sal, de que é abundante: a povoação do Gombe, a do Sambo, a do Luanica, é pequena mas bonita: praia do mar, junto a ela se queimaram mais quatro povoações: a na primeira chamada Zundo, a segunda Zolo Amuco, a terceira Singamote, e a quarta, Cunga. Mais a Norte no Porto de Bris há outra povoação chamada Mugelto, a que não chegou a conquista do meu exército por ficar fora do plano da minha comissão, e não ser já pertencente ao Mossul, donde vão continuando as povoações para Leste.

De Quincolo dito fica a povoação de Quincage (junto à qual venci uma batalha a um grande exército de Mossuis, e seus aliados, que divididos em seis numerosas colunas se me opuseram na marcha. Desta de Quincage para o Nordeste, distância de duas léguas na margem meridional do rio Loge, está a povoação de Pambala; e a pouca distância desta na margem do mesmo rio outra pequena, denominada Quiaca.

Passando segunda vez o exército pela povoação de Mossul já destruída, e seguindo sertão dentro, há a povoação de Muereca, e logo a de Zenza, última da jurisdição de Mossul; porque dali por diante pertence ao Muene Bumbo, que se intitula Capitão General do Rei de Congo.

Ali perto, há a povoação de Tamba (onde venci outra batalha campal aos Mussolongos, e Mossuis). Dali passámos a do Muene Bumbe, que tinha à sua vista quatorze povoações suas súbditas, em um aprazível sítio, todo cultivado de plantagens vegetais, com água em muitas partes, e o terreno pouco montuoso, ou quase plano.

São estes negros Mossuis, e de todo o Congo, ou Norte, muito resolutos no investir, mas pouco constantes assim que experimentam estrago de mortandade nas batalhas. As armas de que usam, são espingardas, e em lugar de cartuchos, trazem suas cargueiras muito bem feitas com que regulam a pólvora para seus tiros. Usam todos de arma branca, traçados, e espadas bem amoladas, e quase todos têm broqueis do couro de empacassa, que ainda que não resistem a balas, são fortíssimos de sorte que arma nenhuma os penetra, e são muito leves, e maneiros: fazem-nos de diferentes figuras, redondos, ovados, e rectangulares, com boas alças do mesmo couro com que as embraçam. Também na povoação de Quincolo lhe tomei uma peça de ferro de calibre 3 muito boa com sua palamenta, 3 pedreiros de ferro, 3 bacamartes; mas de nada disto se serviram nas batalhas que me disputaram, e só se serviram das espingardas, armas brancas. e broqueis.

Como por aquelas províncias têm entrado missionários Barbadinhos, eles cuidam muito em que se baptizem seus filhos, e presumem de serem católicos romanos trazendo ao pescoço crucifixos de metal, como os mesmos missionários, e alguns até cirsilhos, e coroas, e também barbas compridas; porém não se estende a mais a sua religião do que a estes exteriores, e no mais conservam a sua barbaridade, e sobretudo, não admitem o consórcio de uma só mulher, e sim muitas, as que apetecem. São grandes ladroes, e cavilosos, muito crentes em feitiçarias, sem desengano dos muitos exemplos que têm experimentado de que elas de nada lhes servem e aproveitam.

Na batalha que eu venci no rio Onzo em 30 de Outubro de 1790, quando me atacaram, traziam na sua vanguarda uma negra com um cesto cheio de feitiçarias, pelas quais ela lhe tinha profetizado, que as peças, e espingardas dos brancos (por virtude daqueles feitiços) haviam de lançar em lugar de fogo e balas, água. Breve viram o contrário, e o seu engano; pois que aconteceu por casualidade (pois que eu tal negra não vi, ou se a vi não reparei) que o primeiro tiro que lhe apontei à testa da grande coluna com 1 peça de calibre 2, deu com a negra, cesto, e feitiçarias em terra e muitos mais que se seguiram, de que ficou a praia, e campo de batalha coberto de cadáveres pelo estrago daquele tiro, e outros que lhe fizeram, de sorte que, sem mais esperarem, se puseram em precipitada fugida para salvarem as vidas; e foi bom para nós, porque éramos um pequeno número de soldados ilhéus, e bisonhos.

Estávamos atacados de outro semelhante exército de Mussuis, e mais aliados pela retaguarda, a que vim acudir pessoalmente, e os fiz ter a mesma sorte dos primeiros, deixando mortos, e cabeças cortadas de alguns. Depois é que se soube, que a tal feitiçaria lhes não tinha custado muito barata, porque o tal embusteiro soba da povoação de Cutacanhe lhe levou por ela três escravos. Esta pequena povoação é sita sobre a costa do mar, e estava bem asseada com uma casa de audiência paramentada de damasco carmesim, o pavimento bem argamassado, no fundo da sala uma boa cadeira com assento, e espaldar de damasco, que tudo serviu de alimento ao fogo que lhe mandei lançar e a todo aquele aparato, e povoação.

O modo com que investem nas suas batalhas e em massa, mas de diferentes figuras: umas vezes em semicírculo, ou meia lua; e outras em colunas de grande fundo a 15, e 20 de frente, e outras vezes em corpos irregulares dispersos à maneira dos nossos pelotões de infantaria.

O seu fogo é sem ordem, mas sucessivo à maneira de fogo de alegria, mas violento o mais que é possível; tão violentos, e apressados são em investir, como o são em fugir quando piora o seu partido; de forma, que correndo a pé, nem os cavalos os podem apanhar; mas para isto concorre muito o terreno do seu país em que eles são acostumados; e os muitos espinhos e estrepes, obstam muito os cavalos de Angola todos desferrados, ao menos dos pés; porque só nas mãos os ferram, e muito mal.

Tenho dado uma breve notícia dos Mussuis, e do seu país, e costumes, agora resta dar outra semelhante do que vi, e observei quando em Junho do ano de 1793 marchei com o exército a castigar os levantados, e inconquistados do Norte Naboangongo, Quinquengo, Lundo, Zala, Quimalica, Quina, Onde, Massango, e outros muitos a quem naquela campanha venci uma batalha campal junto ao rio Lolo no dia 28 de Junho do dito ano, e deste dia até o de 10 de Agosto do mesmo, me disputaram o campo passo a passo com choques todos os dias, de dentro dos matos, e dos palhagais das barrocas; mas assim mesmo com mágoa sua foram vendo talar seus campos, consumir-lhes os mantimentos, e queimar-lhes trezentas e noventa e nove povoações, que tantas lhes fiz incendiar, ficando-lhe tudo raso; porém não sem morte de dois Tenentes, um Alferes, um Furriel, alguns soldados, e um pífaro; e o Comandante da Artilharia, Félix Pinheiro de Lacerda, com uma perna quebrada: e deixando tudo castigado, e reedificado o Presídio de Encogi, me recolhi a Angola no dia 22 de Junho de 1794 por ordem do meu General, a que o obrigou a abandonar aquela acção, não porque deixasse por aquela parte nada que conquistar, mas sim porque dali havia de passar a Ginga, e Holo, o que se não conseguiu pelas fomes, e epidemias que grassavam no exército, de que morreram muitos.

Mas teve o General a glória de que aqueles régulos conquistados viessem render-lhe obediência, e assinar termo de vassalagem a Sua Majestade, assentindo a todas as condições que lhes foram postas: cujos termos se acham no livro deles na Secretaria d'Estado daquele Reino de Angola.

Enquanto aos costumes, em nada diferem dos Mussuis, por serem todos da classe dos Congos, e Muxicongos, a cujo Monarca eram todos sujeitos em tempos antigos, e ainda hoje se prezam de serem vassalos daquele rei; mas na verdade está todo aquele reino dilacerado, porque o de Mossul, se chama Marquês do Rei de Congo: o do Onde, se chama Conde: o de Quina se chama Duque, este já se apelida Rei; e o de Pemba, se chama Duque; mas nenhum deles obedece ao Rei, e são cada um senhores despóticos nos seus Estados; mas quando os apertam, todos protestam com a vassalagem e sujeição do Congo como amigo e irmão em armas da Rainha Nossa Senhora, de que só se cobrem com o nome, mas em nada mais; de sorte que até um missionário, Fr. Raimundo, que ainda se acha no Hospício de Santo António da Cidade de Luanda, o cativaram, e foi necessário resgatá-lo com fazenda, e aguardente.

Esta a sua religião, amizade, e vassalagem. Tenho declarado tudo o que vi, e experimentei, nesta mal arranjada narração, e por isso a remeto a quem melhor saiba ornar escrita que dê mais gosto aos leitores, servindo-se destas memórias, que são fiéis, e verídicas, em que têm não pequeno campo para discorrer com mais galhardia, e gosto. 

= Paulo Martins Pinheiro de Lacerda, Coronel de Infantaria dos exércitos de Sua Majestade Fidelíssima.

 

(Transcrito dos Annaes Marítimos e Coloniaes, Série n.º 6 (4), 1846, pags. 119-133). Actualizou-se a ortografia, mas manteve-se a pontuação.