6-11-2004
MARIZA
PUBLICO
Sexta-feira, 18 de Janeiro de 2002
Uma brisa do mar
Miguel Francisco Cadete
Sem aparato, sem padrinhos, sem ser considerada uma nova Amália, Mariza editou um dos melhores discos de fado do ano que acabou. Por uma única razão: a sua voz. Foi a primeira cantora portuguesa a surgir no programa "Later", de Jools Holland, da BBC Prime. O seu percurso não é, certamente, o mais tradicional para quem sobe as escadinhas do estrelato de um meio acanhado como o do fado. Ao invés de ter nascido na Mouraria, Mariza é nativa de Moçambique. Em vez de ter participado na Grande Noite do Fado, Mariza foi a cantora de uma banda iluminada pela luz da música negra (para os arquivistas interessados, o projecto chamava-se Funkytown e era visto em vários estabelecimentos lisboetas). Em lugar de ter editado por uma editora com escritório montado em Lisboa, Mariza só encontrou interesse pela sua música numa ilustre desconhecida companhia discográfica holandesa, World Connection de seu nome. |
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E ainda antes de ter percorrido a via sacra dos programas de televisão que em Portugal misericordiosamente acolhem os artistas portugueses em cenários psicadélicos, Mariza foi a primeira cantora portuguesa a surgir no programa "Later", apresentado por Jools Holland (o ex-teclista dos Squeeze) e transmitido pela BBC Prime (sim, faz parte do pacote clássico da TV Cabo).
O seu álbum de estreia, "Fado em Mim", revela, no entanto, uma das vozes mais poderosas de entre a miríades de representantes da nova geração do fado. O disco vinha sendo preparado há algum tempo e caiu na lojas antes do Natal. Surpreendentemente chegou aos topes. A história de Mariza, fadista reconhecida, tinha, pois, começado.
Revelação
"Eu cresci na Mouraria, fui para lá com cinco anos e os meus pais tinham um pequeno estabelecimento onde organizavam pequenas tertúlias fadistas. Comecei, desde muito pequena, a gostar do ambiente do fado. O meu pai sempre foi um grande incentivador pois achou que eu devia ser cantora. O primeiro fado que cantei foi 'Os Putos' e, até aos 13 anos, sempre cantei fado. Depois deixei e cantei em bandas de soul e funk, como os Funkytown. Mas sempre que tinha oportunidade voltava a cantar fado. Há três anos atrás regressei decididamente ao fado", começa por contar Mariza.
Na esplanada de um hotel requintado mesmo no centro de Lisboa, Mariza bebe chá preto. O seu cabelo louro, curtíssimo e rendilhado como quem está pronto a seguir para uma garden-party dos romances de F. Scott Fitzgerald, também contraria a tradição do fado. Como seria o fado nos anos 20? Uma festa ou um confessionário?
Para Mariza, a revelação aconteceu há três anos. "Às tantas cantei por brincadeira a 'Rua do Capelão' na casa de fado do José Luís Gordo, o Sr. Vinho, e ele pediu-me para aparecer mais vezes. Já não era aquela euforia de cantar com a banda que me interessava. A minha paixão já tinha mudado e quando não tinha concertos aproveitava sempre para ir à casa de fado para me envolver naquele ambiente e perceber o que estavam a cantar. Queria aprender aquilo tudo... A primeira vez que me apresentei profissionalmente foi na homenagem à Amália organizada pelo João Braga no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Estava nervosíssima, fechei os olhos e... 'seja o que Deus quiser'. A partir daí começou tudo a acontecer".
A ideia do disco foi de Jorge Fernando, que em tempos também acompanhou Amália. "Mas eu achava que não cantava bem, que era uma grande responsabilidade e que não representava bem essa cultura." Pelos vistos, enganou-se.
Como é cada vez mais usual, o disco foi gravado sem qualquer acordo com editoras. Apesar de o fado ter voltado a estar na moda, Mariza não foi aceite pelas maiores editoras portuguesas, pelo menos num prazo considerado útil. Foi um holandês, que assistiu a um concerto dela na Bélgica, que se decidiu a editá-la através da sua etiqueta, a World Connection. "Fado em Mim" foi então publicado não só na Holanda, mas também na Bélgica, Japão, Coreia e em Inglaterra, onde Mariza esteve, no final do ano passado, para participar em directo no programa de Jools Holland. De entre os convidados daquela sessão, que foi para o ar na BBC no dia 23 de Novembro e que, sabe-se lá quando, irá para o ar na TV Cabo, contava-se o duo David Gilmour e Mica Paris.
"O Jools Holland ficou apaixonado pelo disco e convidou-me para aparecer num dos seus programas, em substituição da Björk, que tinha ficado rouca", e esta aparição proporcionou o interesse de várias publicações, como a revista "Folk Roots", que recentemente publicou uma peça sobre Mariza. A presença na última edição da WOMEX, uma reunião de agentes ligados à world-music, em Outubro, em Roterdão, ajudou também a abrir algumas portas. Em Portugal, a distribuição de "Fado em Mim" ficou entregue à EMI-VC.
A dúzia de temas (mais uma faixa pouco escondida) que fazem parte do alinhamento repartem-se, grosso modo, entre fados popularizados por Amália Rodrigues e originais escritos por Jorge Fernando e Tiago Machado, numa escolha que tenta equilibrar um certo tradicionalismo com algumas inovações. Piano, percussão e violoncelo não serão dos instrumentos mais comuns nos combos dedicados à interpretação de números de fado, efeito que é contrabalançado por um alinhamento que inclui standards, como "Loucura", "Maria Lisboa", "Que Deus me perdoe", "Há festa na Mouraria", "Oiça lá ó sr. Vinho" e "Barco Negro". Arranjos que, se não transportam o fado para a modernidade, lhe conferem certamente uma sofisticação pouco comum, tendo já sido testados em espectáculos em Itália, Holanda e Bélgica.
"Eu respeito sempre a base do fado. Mas é óbvio que tenho influências de outras coisas: vivemos numa Lisboa diferente, somos expostos a outro tipo de cultura, viajamos mais... É natural que sejamos influenciados por tudo isso e que façamos um fado diferente. É saudável que cada um de nós, dos novos cantores de fado, faça as coisas à sua maneira. Num próximo álbum vou arriscar mais em temas originais e fazer coisas que eu pressinto serem novos caminhos", adianta Mariza enquanto poisa, imperturbável, a xícara. Pode ou não inovar-se o fado?
mariza
em
Busca de Bênção
Por MIGUEL
FRANCISCO CADETE
PÚBLICO,
Sexta-feira, 27 de Setembro de 2002
Um disco bem recebido. Espectáculos em Nova Iorque ou Los Angeles, elogios da crítica alemã; solicitações na televisão que a transformaram em fadista audiovisual. Agora, a prova de fogo: concertos agendados para duas grande salas portuguesas, Rivoli (hoje) e CCB (dia 1).
A fadista "diferente" procura da bênção do pai? De início, ninguém acreditou nela. Foi uma editora holandesa, a World Connection, que publicou o seu álbum de estreia - está a fazer um ano - e, desde aí, os acontecimentos precipitaram-se. Foi a primeira artista portuguesa a apresentar-se no programa "Later with Jools Holland", na BBC, actuou no Hollywood Bowl de Los Angeles, no Central Park de Nova Iorque, foi capa da revista de world music "Folk Roots" e recebeu encómios da crítica alemã. Voltou a Portugal para concertos, depois de extensas digressões na Europa, América e Ásia, e chega, pela primeira vez, às grandes salas de Lisboa e do Porto para concertos no Rivoli (hoje) e no CCB (1 de Outubro). São provas de fogo para uma fadista que, como ela própria diz, procura "a bênção do pai" neste regresso a casa. Afinal, o que faz correr Mariza?
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Antes de editar o álbum "Fado em Mim" esperava o êxito que obteve e as solicitações para espectáculos?
Não. Foi uma surpresa... Em Portugal sabia que, em princípio, iria ser bem aceite. Estava receosa, mas já me tinha tornado conhecida, já tinha feito TV, enfim, as pessoas já estavam à espera do disco. Mas internacionalmente não esperava nada do que aconteceu. Na Holanda, o disco vendeu bem e nos EUA faz parte do top de world music, andando pelo sexto lugar...
Em Portugal o disco chegou ao galardão de ouro por vendas superiores a 20 mil cópias, mas muitos dos convites que recebe para espectáculos partem de instituições públicas, organismos oficiais, embaixadas... Sente-se como a fadista oficial?
Não. Não sou a fadista oficial simplesmente porque não sou a única fadista. Existem muitos mais fadistas e eu não sou a única que anda no circuito internacional. Se calhar há uma maior curiosidade em tentar perceber - porque tenho uma imagem diferente - o que se passa...
Em Washington actuou perante a mulher de Colin Powell [secretário de Estado norte-americano]. Sente-se confortável a cantar fado - que habitualmente era associado às tabernas - nos salões das embaixadas?
É estranho. Primeiro porque esse público não conhecia nada de fado. Não sabia o que ia ouvir, que tipo de música, se era pop, se era melancólica... E achei interessante a reacção. Primeiro ficaram pela imagem; depois, foram sentindo a música e deixaram-se envolver. Obviamente, não percebiam as palavras mas ficaram rendidos. Principalmente a senhora Colin Powell, que tem uma abertura cultural maior que as outras senhoras que lá estavam. Poucas daquelas pessoas escapavam ao protótipo da unha pintada de vermelho, mas estavam lá três senhoras que me deixaram fascinadas: uma era a mulher do embaixador de França, outra a senhora Colin Powell e uma senhora que tinha raízes francesas mas que era mulher de um senador. Achei engraçado as semelhanças que encontraram com outras músicas que já conheciam. Mas foi estranho.
Já actuou no Central Park de Nova Iorque e no Hollywood Bowl de Los Angeles. Algum desses espectáculos foi mais marcante?
Foram espectáculos tocantes, mas não me marcaram. São espaços grandes e o fado é uma música intimista. Foi, no entanto, interessante fazer aquelas salas porque abrangem vários tipos de público. No que diz respeito ao Hollywood Bowl, estavam lá os sócios, que são pessoas ligadas à cultura, têm rádios, conhecem actores; depois, as pessoas que compram o bilhete mais caro porque querem mesmo ver o espectáculo; por fim, nas últimas filas, as pessoas que gostam mais de rap e que foram lá para ouvir a Lauryn Hill [que fazia parte do elenco]. É interessante, e isso apareceu numa crítica de um jornal de Los Angeles, porque consegui tocar em todas aquelas pessoas que foram por motivos diferentes.
Agora, um espectáculo de que gostei muito foi o último que fiz nos EUA, no New Jersey Performing Arts Center, com Susana Baca. Ela é fantástica. No final houve uma espécie de conferência de imprensa onde a Susana deu uma aula sobre a importância da música do Peru e eu falei sobre fado. Isso marcou-me. É esse tipo de coisas que gostava de fazer.
Nota alguma diferença entre a forma como o público português reage e a forma como é recebida lá fora?
Essa pergunta é mazinha. O nosso mercado é muito diferente. Portugal não se cinge a Lisboa e Porto e quando se fazem digressões apanham-se sítios bons e sítios maus. Porém, em termos de público, aqui há quem conheça muito melhor aquilo que estou a fazer do que lá fora, onde vão ver devido a curiosidade natural, ou porque leram uma crítica, ou porque são interessadas na world music.
Em Portugal, uma das características que mais surpreendeu foi a sua voz, mas há quem diga que não é voz fadista. Já se deparou com essa crítica?
Não, ainda não ouvi. Mas acho piada, porque a voz não tem que ser fadista. A alma ou a forma de cantar sim. A maior parte das pessoas nunca viram um espectáculo meu. Vêem o que aparece na televisão e isso não dá para perceber. Depois, é natural que associem tudo à imagem. Mas eu sou fadista. E fado é muita coisa, principalmente, por causa das raízes que tem. Não é por vir do bairro que é fado. É uma mestiçagem de coisas.
O facto de ter nascido em Moçambique e de ter feito parte de uma banda soul pode originar algum preconceito nos meios fadistas?
Acho que já surgiu, mas as pessoas agora respeitam-me. De início tentavam perceber: "O que é que ela é?" Depois perceberam que estou no fado porque gosto. Ter nascido em África é engraçado. Acredito no destino e o fado nasceu em África e foi morar para a Mouraria. Também nasci em África e fui morar para a Mouraria.
A sua imagem também não é tradicional. Tem o cabelo louro, é alta e veste roupa assinada por João Rolo. A escolha da imagem é pensada?
Não foi nada programado. A primeira vez que fui à TV levei o cabelo curto e louro e as pessoas começaram logo a assobiar. O João Rolo apareceu um dia na casa de fados onde eu cantava, e perguntou se eu não gostava de experimentar um vestido dele. Achei estranho mas engraçado. Sempre quis ter coisas feitas para mim, e quando fui à televisão por ocasião da homenagem à Amália, levei roupa dele. A escolha não tem nada a ver com a opinião das pessoas, mas porque eu gosto. Há muita gente que diz que não acha muito engraçada a roupa, mas que gosta de me ouvir cantar. "Então, olhe, feche os olhos", é o que respondo.
Tem a noção que isso a ajudou a diferenciar-se da imagem tradicional da fadista?
Principalmente lá fora. No mercado internacional é algo que chama a atenção e talvez tenha sido por isso que fui capa em certas revistas.
Os concertos no Rivoli e no CCB são as suas duas primeiras grandes apresentações em Portugal. Está a preparar algo em especial?
Não, é o concerto normal. A única modificação é a participação do Tiago Machado - autor de dois temas do disco - como convidado especial, quando tocar um desses temas ao piano. O palco também vai ser diferente do normal, de forma a ser criado mais ambiente. Mas a única grande diferença é ser em Lisboa e Porto. É uma grande responsabilidade. Se encher, percebo que o público gosta de mim. Se não encher, é uma falha da minha parte. Ou seja, estou cheia de medo. Já actuei em salas mais conceituadas, mas isto é como voltar a casa para receber a bênção dos pais.
Já está a pensar num segundo álbum?
Já. O produtor vai ser o Carlos Maria Trindade e será mais baseado em originais do que o primeiro disco. Convidei vários compositores. O desafio será transformar em fado músicas de autores que não têm a ver com fado. Podemos falar do Pedro Abrunhosa, a quem pedi uma música; ou do Sérgio Godinho. São pessoas de quem sou fã pela forma como compõem. O desafio vai ser pegar nos temas que eles me vão oferecer e transformá-los em fados. Vão ser tocados à guitarra e viola pelos músicos que neste momento fazem o espectáculo comigo e será editado pela World Connection.
Vai ser um disco de fado onde vou juntar os fados tradicionais - desta vez não são os clássicos, são os tradicionais - com originais. O interessante é poder entender, com as minhas influências e as influências dos músicos de que gosto, o que é que posso trazer de novo.
Há outra crítica que lhe apontavam que era a do excesso de temas popularizados por Amália Rodrigues que faziam parte do seu primeiro álbum.
Se aparecesse um americano a cantar Frank Sinatra era fantástico. Aparece uma fadista a cantar Amália e é muito mau. Será que mais ninguém pode cantar aquilo? Não conheço nenhuma fadista que não cante, pelo menos, um tema da Amália. São temas belíssimos, que fazem parte da história do fado e é fabuloso poder cantá-los. Assim sendo, também não se podia cantar temas de Alfredo Marceneiro, da Berta Cardoso, da Hermínia Silva... Não se cantava nada disso e o fado acabava. As pessoas morreram e não se pode cantar mais?
Já actuou em Nova Iorque, Washington e Los Angeles, apresentou-se na BBC, numa estação de televisão francesa, participou no festival WOMAD, foi capa da revista "Folk Roots", recebeu prémios dos críticos alemães...
Para onde vai, depois disto tudo e quando sair do Grande Auditório do CCB?
Vou descansar. Mas em 2003 sai o meu novo disco, em Abril. Segue-se a sua promoção, em 32 países, agora já com um público mais conhecedor do meu trabalho. Nos EUA vou começar a fazer o circuito das Universidades seguindo o modelo de um concerto e uma aula. E estou a tentar montar um espectáculo baseado na história do fado, ligando vários dos seus componentes como a dança, o folclore. Mas é necessário trabalhar com um encenador, bailarinos... e tudo demora seis meses a montar.
de Lá para Cá
PÚBLICO, Sexta-feira, 27 de Setembro de 2002
Não é surpreendente o facto de Mariza dizer que encara os concertos no Rivoli e no CCB como quem procura a "bênção dos pais" - duvidosos dos predicados do filho que por ora à sua casa torna, acrescentamos nós. É que ao artista português são exigidas duas provas que, pretensamente, certificam a consistência da sua carreira ou arte. Antes do mais, há um exame prévio que é preciso passar - com mais ou menos distinção, depende da eficácia da promoção - e que é demonstrativo do estado provinciano da indústria discográfica portuguesa: o artista, se é um bom artista, tem que o provar lá fora, pensa-se. Aconteceu assim com Misia, que depois de desprezada pelos agentes portugueses, ganhou reputação quando assinou pela editora Erato, e aconteceu assim com os Madredeus (Blue Note) ou Moonspell (Century) ou mesmo Dulce Pontes (Universal holandesa) e Maria João & Mário Laginha (Verve), todos eles contratados por editoras estrangeiras. Não vale a pena falar de Cesária Évora? Teorema: se os estranjas gostam então é bom. Corolário: entregar o ouro ao bandido, considerando, estúpida e patrioticamente, os estrangeiros como bandidos, é uma sina "nossa". |
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Segundo teste, e de sentido oposto: "vamos lá a ver se é tão bom como eles dizem". Depois de descobertos pelos departamentos de Artistas & Reportórios das companhias estrangeiras, o artista português deve regressar ao território pátrio e provar nas salas mais dignas da nação como é genuino seu produto. É neste segundo momento que o artista português volta a enfrentar, em dose redobrada, a pequenez do mercado onde surgiu. É então que se descobre que desafina, que é uma fraude, que não é jazz ou que não é fado. Teorema: "nós" é que sabemos e os tipos "lá fora" papam tudo. Corolário: não há música como a portuguesa.
Estas são duas das mais frequentes linhas de raciocínio que atestam da incapacidade da indústria em Portugal em criar fenómenos - populares, eruditos ou outros - sem a "bênção dos pais" ou sem a "bênção dos estrangeiros".
É o culto do absurdo, praticado com o excesso de quem não aceita aquilo que surge aqui ou aquilo que é proposto de fora. De quem não aceita nada porque, afinal, tem pouco para dar. A não ser que Dulce Pontes, Misia, Madredeus ou Mariza consigam provar que há uma indústria da música em Portugal. Porque até ver, não há. MFC
Retrato da Fadista Enquanto Jovem
Sexta-feira, 21 de Março de 2003
Miguel Francisco Cadete
Hoje está em Londres a gravar um DVD. No dia 24, na capital britânica, recebe um prémio, o BBC Radio Awards, O segundo álbum, "Fado Curvo", é editado de hoje a uma semana, a 28, quando o anterior, "Fado em Mim", ainda está nos topes. Documenta o segundo passo de uma carreira que ainda há pouco teve início, mas que já chegou a alguns dos mais prestigiados palcos do mundo. Ainda assim, Mariza mostra-se desconfiada com a fama (e será que ainda há quem não acredite nela?). Mas é apaixonada pelo fado e aqui conta como construiu o tal "difícil segundo álbum". Um disco que começa com uma homenagem à guitarra e termina com uma súplica: "Guardem os anéis do meu cabelo." Retrato, a corpo inteiro, da solidão da fadista enquanto jovem, aos 29 anos.
O BBC Radio Awards, que vai receber em Londres no dia 24, fez ressurgir o interesse pelo álbum "Fado em Mim", quase um ano e meio depois da sua edição. É preciso ser-se reconhecido lá fora para que os portugueses se interessem pela sua carreira?
Já havia reconhecimento do meu trabalho, até porque o disco tinha vendido bem. Mas muitas vezes é preciso darem-nos valor lá fora para que em Portugal nos comecem a olhar com outros olhos. Ainda havia gente de pé atrás: "Será que é ou não é?" Isso serve sobretudo a algumas mentes mais fechadas; e veio trazer algum valor, nem é reconhecimento, ao que eu já tinha feito.
Desde o início da sua carreira que começou a actuar no estrangeiro. Foi uma estratégia pensada ou aconteceu?
Aconteceu. A minha ideia era até lançar o meu primeiro disco numa edição de autor, para oferecer aos amigos. Mas fui fazer um concerto à Holanda, conheci o Albert [Albert Nijmolen, presidente da editora World Connection] e trocámos contactos. Ele fez muita pressão para trabalhar com ele, mas a minha ideia era: se um dia editar, há-de ser em Portugal. Só que ele insistiu e os prazos que as editoras portuguesas me davam eram longos. Diziam "sabe como é, o fado não vende"; ou "ah, nós já temos fadistas! Telefone daqui a uma semana". Então decidi-me pela World Connection, que é uma editora pequena. Eu nem sequer tinha uma noção do que era o mercado da "world-music". Aceitei a proposta da World Connection e, desde então, têm acontecido estas coisas todas de que eu não estava à espera. Ainda olho para tudo com um ar desconfiado.
A sua vida mudou a partir do momento em que passou a ter uma agenda carregada de concertos.
Já não consigo estar em casa. E até muda a nossa visão das coisas. O fado não é um género de música em que impere o profissionalismo: os músicos não sabem ler música, não estudam, no fado não há escolas. É uma música do povo e continuará a ser uma música dos bairros pobres. Não quero dar um sentido pejorativo à palavra "amadorismo", mas o fado é um género amador. E quando se começa a pisar outro tipo de palcos, nota-se que o trabalho é completamente diferente. Eu gosto muitos dessas duas facetas e quando estou em Lisboa não perco uma noite de fado. Ainda outro dia, apesar de ter de me ir embora na manhã seguinte, fui a uma fadistice e cheguei a casa às tantas. Faz bem, alimenta, volta-se às raízes.
Agora que já começou "a pisar outros palcos", quais são as suas ambições?
Não sou uma pessoa muito ambiciosa. Vou esperando o que vem vindo e, até agora, os resultados não têm sido maus. Mas é óbvio que já tenho outra visão das coisas e quero pisar palcos cada vez melhores, fazer melhores concertos e tornar-me melhor naquilo que faço.
É capaz de identificar um momento-chave na sua carreira?
Não tenho uma carreira, estou a dar os primeiros passos. Mas acho que o lançamento do primeiro disco foi um momento de afirmação. Antes, fazia espectáculos e as pessoas perguntavam: "Como é que podemos ouvir? Onde é que podemos saber mais coisas?" Depois do disco, notei que isso foi importante para as pessoas começarem a perceber que tipo de voz estavam a ouvir. Que pessoa era aquela. Através de um disco não se consegue perceber que pessoa é, mas as fotografias ajudam a entender alguma diferença.
Já disse, em outras ocasiões, que tinha decidido chamar ao novo disco "Fado Curvo" porque "não é direito". É uma provocação dirigida aos puristas do fado?
Aos puristas do fado não, porque são uns queridos e até me defendem. É mais para aborrecer aqueles "chatos quadrados" que, enquanto pensarem de certa forma, o fado vai ficar emparedado entre quatro paredes e tornar-se uma música esquecida. Era o que estava a acontecer. E, de repente, voltou-se a falar outra vez de fado.
Mas é também uma chamada de atenção, porque a paixão não é uma linha recta. A música não é uma linha recta. A vida também não. Eu própria, respeitando todo os tradicionalismos, tenho uma visão própria. Por isso a minha visão é curva e não recta.
Precisamente o tema que abre o disco, "O Silêncio da Guitarra", é um fado tradicional ("Zé Negro"). Não se pode dizer que renega a tradição.
Claro que não. Crescer num bairro típico (Mouraria) dá-nos essa formação. Aprende-se a reconhecer um fado tradicional e a saber o que é um fado clássico e um fado musicado. Eu sei o que são fados tradicionais e sempre os cantei. Este meu segundo disco tem um bocadinho de tudo e, tal como no primeiro, não me esqueci dos fados tradicionais. Fazem parte das raízes e não me esqueço deles.
Neste caso, a letra é da autoria de José Luís Gordo, figura ligada à casa de fados onde começou a cantar. Esta é também uma forma de homenagear quem primeiro acreditou em si?
Também. Foi a primeira pessoa que achou que eu podia dar grandes passos no fado, apesar de eu própria não acreditar. "Mas quem é que me quer ouvir?" E também porque ele é um grande poeta e fez esses versos a pensar em mim. É um poema lindíssimo. Experimentei-o em vários fados tradicionais e percebi que encaixava muito bem no "Zé Negro". Depois, o Mário Pacheco (tocador de guitarra portuguesa em "Fado Curvo") teve um papel importante, porque fez um arranjo fabuloso e inovou completamente o "Zé Negro".
Foi também o guitarrista Mário Pacheco quem lhe ofereceu a música de "Cavalo de Sombra, Cavaleiro Monge", que tem um poema de Pessoa. Este tema estava para fazer parte de um disco de Amália...
Ele diz que há muitos anos andava à procura de uma pessoa que o conseguisse cantar. Quando me ofereceu esse tema, o Mário Pacheco apenas me disse que tinha ali uma coisa para eu ouvir. Tocou o tema na guitarra e mostrou-me o poema. Eu aprendi o tema e ele depois deu-me uma cassete para levar para casa. Quando cheguei ao carro, meti a cassete no leitor e ouvi a Amália a cantar o "Cavalo de Sombra, Cavaleiro Monge". Arrepiou-me de tal maneira que nem consegui ouvir até ao fim. Agradeci ao Mário, porque me pareceu corajoso da parte dele oferecer-me uma coisa que tinha guardada e que a Amália iria cantar. Mas, ao mesmo tempo, foi engraçado perceber as diferenças.
Vai ser complicado porque as pessoas vão pensar que o tema é bom porque a Amália ia cantá-lo...
Continua a ser fã de Amália Rodrigues?
Continuo e não nego isso. É uma estupidez tentar inventar que não e, depois, andar toda a gente a cantar temas da Amália às escondidas. Se se gosta, porque é que não se assume? Gosto muito da forma como ela interpretava. Sou mesmo fã.
Neste disco há outra criação de Amália, "Primavera", que já fazia parte do reportório dos concertos. Porque só foi gravada agora?
Ainda hoje não entendo porque sou tão apaixonada por esse poema e por esse fado. Não fazia sentido gravá-lo sem entender porque me emocionava tanto. Mas com o decorrer dos concertos, as pessoas perguntavam-me sempre pelo "Primavera". A edição para coleccionadores do "Fado em Mim" tem um disco ao vivo com o registo do espectáculo no WOMAD e inclui o "Primavera". Só depois dessa edição o decidi gravar em estúdio. É interessante porque, ao vivo, com o público ali tão perto, esse fado ainda vive muito mais. Em estúdio, é estranho cantá-lo.
Essa inibição relativamente ao estúdio é lendária. De Alfredo Marceneiro até Amália, todos citam a estranheza do estúdio.
Eu disse logo ao Carlos Maria Trindade (produtor de "Fado Curvo") que não gostava de estar em estúdio. E concordámos em gravar de forma rápida. Na opinião dele, se o fado é uma música intimista, o melhor era tentar gravar tudo até ao terceiro "take". E neste disco há fados que foram gravados à primeira. Há fados em que se nota que a minha voz não está tão limpa como noutros, porque foram gravados em dias diferentes. Não tivemos aquele cuidado de andar a mexer e a pôr notas por cima. O Carlos Maria Trindade quis que se sentisse a raiz dos fados. Como eu lhe tinha dito que estar em estúdio era um terror, ele arranjou essa fórmula.
Por outro lado, há temas que se afastam nitidamente do melodrama próprio do fado menor, como é o caso da chula "Feira de Castro", composta por Rui Veloso, em que se respira um ambiente de festa. É verdade que o público estrangeiro reage melhor a estas canções mais inspiradas na música tradicional portuguesa?
Tenho sentido, em Portugal como lá fora, que o público reage muito bem quando aparece um tema mais alegre. Se os concertos são só feitos com aquela melancolia, saíamos de lá tristíssimos. Estes temas de inspiração tradicional, como a chula e o malhão, vêm dar ânimo ao concerto. Nunca senti que em Portugal gostassem menos desses momentos. Quando canto o "Sr. Vinho", as pessoas acompanham-me e batem palmas; e dentro do meu concerto esses temas servem como um complemento.
Já "Vielas de Alfama" é um fado-fado, um fado menor, que foi popularizado na voz de Max, um cantor que também se tornou mais conhecido por interpretar canções humorísticas.
Na minha infância, durante as refeições, o meu pai desligava a televisão e ouvíamos discos de fado. Eram discos do Max, Tony de Matos, Fernando Farinha, Fernando Maurício... o meu pai adora homens a cantar fado. Ouvia muito o Max, porque o meu pai gostava muito das interpretações dele. Este "Vielas de Alfama" é também um dos temas favoritos de um amigo meu que me estava sempre a dizer para eu o cantar. Chateou-me tanto que eu experimentei e senti-me bem. Eu não tenho aquela coisa de distinguir entre fados para homens e para mulheres. Desde que sinta o poema, canto. Até já disse que um dia adorava cantar o "Homem na Cidade" do Carlos do Carmo. Vou estar com ele num concerto na Ópera de Frankfurt, e já estou aterrorizada, devido ao respeito que lhe tenho porque passei a minha infância a ouvi-lo.
No primeiro álbum já surgiam experiências de canções baseadas em voz e piano. "Retrato", com poema de Eugénio de Andrade, repete esse modelo, que foge ao estereótipo do fado para voz e guitarra portuguesa. Há uma intenção expressa de explorar essa via?
Eu sentia o tema assim e o autor da música, Tiago Machado, também. Ele compõe ao piano e soava muito bem daquela maneira. Não é para ser diferente. É só porque gosto muito de temas com piano. E quando o fado chegou à alta sociedade, as meninas aprendiam a tocar fado no piano.
O "Fado Curvo" é um fado composto por Carlos Maria Trindade que, afinal, é um malhão. E a própria letra é uma espécie de jogo, uma aritmética do fado que...
Adoro porque tem números. O meu número preferido é o seis e quando o Carlos Maria Trindade me mostrou o poema, até pensei que ele ia fazer uma música melancólica. Mas surgiu um malhão. Um disco de fado tem de ter fado, mas também pode ter outras vertentes. Daí esse malhão, uma chula ou o "Entre o Rio e a Razão", que é um tema mais leve. O disco tem um bocadinho de tudo...
E até tem um fado de Coimbra, o "Meninos do Bairro Negro", de José Afonso. Está consciente da carga política que emana da letra?
Resisti muito a cantar esse tema. Em primeiro lugar porque as mulheres não cantam fado de Coimbra. Em segundo porque era uma letra de Zeca Afonso e as suas letras têm sempre outros sentidos. Ou seja, é muito difícil cantar fado de Coimbra, porque tão depressa se está nos graves como em notas muito altas. Pensei muito e só depois decidi experimentar. O Mário Pacheco também decidiu fazer uma coisa especial e surgiu com a ideia de gravar o tema quase só com voz e guitarra. A letra tem uma carga política tremenda, mas não sei se as pessoas vão olhar para isso. Soube há pouco a história desse tema, contada pelo própria Zeca Afonso. Ele tinha ido em viagem ao Porto, a meio dos anos 70, e viu um homem a urinar para dentro de uma lata. Aquilo perturbou-o muito e chamou-lhe a atenção para o bairro onde decorria a cena: um bairro muito pobre e cinzento.
No primeiro álbum já tinha gravado um poema de Florbela Espanca e em "Caravelas" volta a fazê-lo...
Tinha de aparecer Florbela Espanca e, para mim, esse poema funciona como um recado. Não quero explicar... A seguir vem o "Entre o Rio e a Razão", com letra do Gil do Carmo. É uma coisa mais leve, que fala de uma Lisboa mais moderna. É uma letra mais urbana.
O tema mais diferente do disco é "O Deserto", de Carlos Maria Trindade. A estrutura da canção afasta-se daquilo que é entendido como um fado e surgem mesmo instrumentos pouco usuais como a trompete. A própria voz surge num outro registo.
Já tinha dito ao Carlos que gostava muito de ter um fado com trompete. Sempre achei que casava bem com a guitarra portuguesa. Ele já tinha o poema e quando me tocou a música ao piano sugeriu logo que fosse ali que se metesse a trompete. Aquela entrada com a voz muito grave, quase falada, de início nem me agradava, mas não deixa de ser fado. Ainda lhe perguntei se ele ia ser despedido dos Madredeus por me ter oferecido um tema tão bom.
O álbum fecha com um poema de António Botto, "Anéis do Meu Cabelo", que parece ter sido feito à medida da sua figura. Nota-se o cuidado na selecção dos poemas...
É outro recado, mas não é dirigido a ninguém em especial. É para todas as pessoas que gostam do trabalho que eu faço. Prefiro que não me adjectivem, que não me chamem isto ou aquilo e que olhem para mim como um ser humano. No dia em que eu me for embora, guardem só "os anéis do meu cabelo".
Uma
Voz Rumo ao Desconhecido
Sexta-feira, 21 de Março de 2003
Miguel Francisco Cadete
Ao contrário do que o preconceito poderia fazer supor, o segundo álbum de Mariza é um disco equilibrado e que resulta menos da necessidade de afirmação de uma ainda jovem fadista do que da capacidade de levantar a famigerada ponte que liga a tradição e as raízes à modernidade e à invenção. "Fado Curvo" é um disco maduro porque não se esgota na interpretação dos fados já conhecidos nem tão-pouco no ajuntamento de temas originais sem sentido. |
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Há fados tradicionais, fados clássicos, uma chula, um malhão e até um fado de Coimbra e inéditos. E há, sobretudo e com toda a diferença, a voz e a interpretação de Mariza.
Discípula de uma escola que privilegia o poder da expressão, por ventura em detrimento de um certo rigor, Mariza prova que a verdadeira imitação dos deuses - ou das divas - não é tarefa que se compadece com o mero decalque ou com a reprodução de cópias destinadas a servir como sucedâneos. Mesmo em poemas menos pretensiosos, como "O Silêncio da Guitarra", a sua voz escapa à regra das palavras e até da música, para encetar um voo rumo ao desconhecido. Num só tema há acordes, entoações, frases e expressões que trazem à memória toda a história do fado, da mesma maneira que obrigam a sonhar com a próxima nota. Como quem deixa que a verdade se transforme na emoção de quem está à beira do precipício e não tem medo de saltar para o vazio.
Todo o álbum é um exercício de libertação, bem sublinhado nas palavras de Pessoa em "Cavalo de Sombra, Cavaleiro Monge", em que a solidão vagueia por uma bizarria transformada em rotina. Há tanto de melodrama nesta procura da identidade e do individualismo, já bem documentada em centenas de fados, como de alegria e festa em canções como "Feira de Castro", com música de Rui Veloso, agora em ritmo de folia desatada. Ou como no malhão "Fado Curvo", da autoria de Carlos Maria Trindade, onde se escreve uma aritmética para o fado que tem tanto de esotérico como de jogo da glória.
"Caravelas" e "Vielas de Alfama" são retratos de caminhos trilhados ou ainda por descobrir, ancorados na gramática da guitarra portuguesa, mas é em "O Deserto" que o fado abandona a cidade e o mar para se perder na imensidão do "império do Sol". Com muito vento e uma trompete com surdina que remete para Miles Davis, o tema mais inovador de "Fado Curvo" abre o caminho para uma recta final poderosíssima em que "Fado Primavera", criação de Amália, se tranforma em momento grande de todo o disco. Porque é quando a voz da Mariza descola do poema e até da música, neste caso o fado, que ganha uma nova dimensão capaz de se transformar em exorcismo sublime e, por isso, em arte. "Fado Curvo" remata com "Anéis do Meu Cabelo", outra composição de Tiago Machado, desta vez com poema de António Botto, onde se sente a propriedade da letra, bem adaptada à intérprete, e o anseio místico que um dia poderá levar Mariza a dizer que "gostava de ser quem era".
Lá Fora e Cá Dentro
Sexta-feira, 21 de Março de 2003
Miguel Francisco Cadete
Quando hoje subir ao palco instalado na Union Chappel, em Londres, para levar a cabo a gravação de um DVD, Mariza estará na companhia de uma equipa de produção exclusivamente constituída por técnicos estrangeiros. Eles são os mesmos que, semanalmente, põem no ar o programa da BBC "Later with Jools Holand" onde um dia Mariza já cantou ao lado de Mica Paris ou de David Gilmour dos Pink Floyd, mas esse facto é só mais um sinal de que o reconhecimento "cá dentro" também precisa do aval "lá de fora".
Excepção feita à casa de fados que lhe abriu portas e a Herman José, que a estreou no seu programa de TV, poucos foram os que acreditaram em Mariza quando ela decidiu assumir a sua carreira de canatadeira de fado. Ouviu negas das editoras portuguesas, até que uma pequena companhia holandesa, a World Connection, viu nela uma aposta a ter em conta. Tal como acontece com outros artistas portugueses, pelo que não é caso único, o seu talento foi reconhecido primeiro no estrangeiro.
Curiosamente, o público português recebeu bem melhor o seu álbum de estreia, "Fado em Mim", distribuído em Portugal pela EMI-VC, do que os responsáveis pela contartação de artistas das próprias editoras nacionais. O mesmo aconteceu com algumas figuras chave da indústria discográfica inglesa, que descortinaram em Mariza a "diferença" que outros não viram.
Ainda antes de ser conhecido o veredicto do júri que lhe atribuíu um prémio com o prestígio da BBC Radio, e Mariza já tinha vendido, em Portugal, mais de 35 mil cópias do seu álbum de estreia, muito próximo do disco de platina. E em Inglaterra, Charlie Gillet, DJ da BBC e uma das figuras mais preponderantes no mercado da world-music, já tinha entendido que aquela voz e aquela figura traziam algo de novo a um segmento da indústria discográfica que se cansava de ouvir divas sexagenárias e sem apelo juvenil. A maior estranheza de todo este caso (ou talvez não) passa pelo facto de Mariza cantar fado - um género de música que só é praticado em Portugal, onde, a priori, estariam os seus maiores apreciadores e especialistas.
Não é muito dado à discussão o facto de Amália Rodrigues ser o mais importante, senão o único, cartão de visita da música portuguesa no estrangeiro. E a proximidade de Mariza a Amália terá, certamente, ajudado. Mas isso não chega para explicar o êxito tremendo que uma tão curta campanha tem conseguido. A sua figura alta, esguia e algo excêntrica, com os cabelos oxigenados e trajando fatos dignos da Belle Époque desenhados por João Rolo, terão certamente marcado uma diferença. No futebol dir-se-ia que ali existia uma "mais-valia". E na música, criar uma marca quer dizer vincar a diferença. Geralmente, isso resulta em promoção adicional.
Depois da edição do álbum de estreia, os concertos passaram a suceder-se, especialmente em Inglaterra e nos EUA- territórios muitas vezes avessos à música portuguesa, outro dado a ter em conta - em palcos capazes de surpreender o mais rodado dos artistas portugueses. Cá, era convidada a actuar em festas de Verão. O Central Park de Nova Iorque ou o Hollywood Bowl em Los Angeles serviram como pontos de passagem para algumas das salas de Londres ou Frakfurt com maior historial e os prémios, que começaram a surgir na imprensa germânica, sucederam-se até chegar o prestigiado galardão da Rádio BBC.