Há
quem diga que prefere o filme ao livro, e quem diga que prefere o
livro ao filme. Eu confesso que gosto dos dois, embora o ponto de
vista narrativo mude de um para outro. Estou a falar do filme O
Psicopata Americano, de Mary Harron, em exibição em Lisboa,
adaptado do livro do mesmo nome.O romance de Bret Easton Ellis provocou, quando foi publicado, uma
desordenada polémica entre os admiradores cult do escritor, que
vinham do seu primeiro livro, Less Than Zero, e os moralistas e
puritanos americanos. Ellis, que publicou Less Than Zero em 1985,
nunca escreveu mansinho, e sujeitou a sua técnica narrativa a uma
apurada descrição do espírito do seu tempo, e dos costumes desse
tempo. A anarquia sentimental, a depravação endinheirada, a
infinita possibilidade da escolha e o tédio existencial que lhe
subjaz são os temas de Ellis. Tem-se a sensação, ao lê-lo, de
que aquilo que ele conta não vem da oficina da imaginação e sim
da simples observação do autor, ele próprio um produto dessa geração
doirada que se constitui como nova geração perdida, sem o talento
e sem a generosidade da de Fitzgerald e Hemingway. Uma geração
perdida por causa do dinheiro e não por causa da guerra.
A passagem do tempo, e a maturidade, transformaram Ellis num grande
escritor, como o provam American Psycho e Glamorama, o seu último
romance ( e até The Informers, uma ficção esquecida e menos
famosa do que as outras e nem por isso de menos qualidade). Talvez a
notoriedade do autor, que se seguiu a Less Than Zero e que
catapultou Ellis, juntamente com o seu grupo, McInerney, Janowitz,
Leavitt et alia, para as luzes da ribalta, tenha ajudado a
obscurecer a importância da obra de um dos mais importantes
prosadores americanos do fim do século XX. Se querem saber o que são
os anos oitenta e noventa em Los Angeles e Nova Iorque, os anos da
ganância e da decadência, do excesso e do materialismo, do deboche
e do vazio, de espectáculo e do narcisismo, procurem Bret Easton
Ellis. Está lá tudo.
De facto, tendo sido atacado pelos moralistas por causa do grafismo
das cenas de American Psycho, da sua «pornografia», Ellis é o
maior moralista de todos, o relator da vida do império americano
considerado como o centro do mundo civilizado, tal como a Roma
Antiga. O Psicopata Americano descreve algo que existe, não inventa,
apenas se limita a exagerar. E a matar.
A diferença entre o livro e o filme, ambos dotados de uma elegância
exemplar e cortantes como o gume de uma faca afiada (imagem adequada
dado o conteúdo dos dois) está no sexo dos autores. A conhecida
misoginia de Ellis evidencia-se no romance, no pormenor da descrição
dos crimes, no tratamento das personagens femininas, as vítimas,
todas elas de cartão e cola e sem substância, por comparação com
as masculinas, que são o motor e o centro da acção.
No filme, feito por uma mulher, as mulheres mortas ganham uma
densidade e, no caso da prostituta, uma densidade patética,
despertando a pena do espectador. Mary Harron opõe o seu psicopata
às sua vítimas, coisa que Ellis nunca faz, visto que se limita a
enumerá-las e nomeá-las. Nem o filme nem o livro se resolvem a
partir daqui. É no estilo, na forma da caricatura, e até no
extremo formalismo da narrativa, que o filme e o livro se definem e
ganham consistência.
Ellis é um formalista, sem ser um experimentalista. E é quase,
quase perfeito quando quer. Em Glamorama (que é sobre o mundo da
moda e dos top models, tal como A. Psycho é sobre os varões de
Wall Street ) nada está lá por caso, e a técnica narrativa é de
uma dificuldade que só o génio alivia. Ellis foi famoso cedo
demais, é agora vale a pena lê-lo.
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