6-1-2002

 

C A M A N É

 

 

 

Os dois textos que se seguem, de

 

O Fado do Público  

Rui Vieira Nery, Para Uma História do Fado

CAMANÉ – CD 14

PÚBLICO, 2004

ISBN 972-8892-06-3

 

Do Camané deve dizer-se que” não há palavras” a não ser as que exigem “silêncio, que ele vai cantar o fado”. E fica-se, de boca aberta e veneranda, em presença do novo príncipe, do plebeu mais ilustre dos nossos sentimentos.

É de facto o nosso príncipe, o novo rei que nunca nos rouba as terras. Pelo contrário, fá-las nossas com sua arte do bem dizer, o nasalado especial que repercute no peito e na garganta, e sobretudo o desarrancar da “alma de dentro” de que ele conhece os mistérios; com gosto e suprema intuição.

É assim que Camané pratica o fado, e mais que isso, pratica a música, toda a música, fazendo dela um fado seu.

Silêncio e no fim aplausos: porque assim se cantou tão bem o fado de todos nós.

 

SÉRGIO GODINHO

 

 

O nosso encontro vem de longe. Teria o Camané talvez dez anos de idade e os pais trouxeram-no uma noite à nossa casa de fados: “Que sim que ouvíssemos  (minha mãe e eu) o miúdo porque ele era muito fadista!”

Dava para perceber que estávamos não perante um menino-prodígio, mas já sim, perante um verdadeiro fadista. Mais tarde, a minha amiga Beatriz da Conceição (sabe das coisas do Fado como poucos) chamou-me a atenção, com muito entusiasmo, para um jovem que achava que cantava o Fado como os mais velhos e que se preocupava muito com o reportório. Em cheio!

Convidei-o para um espectáculo no Coliseu, concebido para a Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, e nunca mais nos perdemos de vista. O resto da história é conhecida de todos.

A poética dos anos 10 e dos anos 20 do século passado é um legado que os fadistas antigos nos deixaram como um caminho, um farol, uma trave-mestra da interpretação. Esse é o segredo de Camané. O respeito e o contínuo aprofundamento da arte de contar uma história, numa formas musical única, à qual chamamos Fado.

Afinal o Manuel da Fonseca tinha razão quando me ensinou que “as coisas belas só pertencem a quem as ama”. Obrigado, Camané!

 

CARLOS DO CARMO

 

 

 

DN   27-04-2007

 

Camané, uma orquestra e velhas canções de amor

 

JOÃO MIGUEL TAVARES

 

Série de concertos inicia-se hoje no teatro São Luiz

 

São composições que há 40 ou 50 anos se cantavam de smoking e sapatos impecavelmente envernizados, nas melhores salas americanas e francesas. Camané está de sapatilhas, T-shirt azul e calças de ganga coçadas, na sala principal do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa. Mas quando lhe cai na voz Ne me Quitte Pas, com dezenas de cordas atrás de si, somos transportados para o tempo em que Jacques Brel deixava o coração a latejar em cima do palco. O fadista atreveu-se, e arrisca no cancioneiro popular: de Brel a Sinatra, de Chet Baker a Chico Buarque, de Johnny Alf a Serge Gainsbourg, Camané e a Orquestra Sinfónica Portuguesa levam a partir de hoje Outras Canções II ao São Luiz.

Porquê o II? Porque há três anos eles já havia experimentado, mais modestamente, um formato semelhante nos Jardins de Inverno do mesmo teatro. Aí já se aventurara por canções portuguesas e brasileiras, fora do universo do fado. Mas agora a aventura ganhou dimensões de epopeia. No total haverá 55 músicos em cima do palco, para um conjunto de sete espectáculos: Camané, um combo de cinco elementos, o maestro - e director musical do projecto - Pedro Moreira e ainda 48 músicos da Sinfónica Portuguesa. Mas, mais do que isso, pela sala passarão cinco línguas: português (por vezes com sotaque brasileiro), inglês, francês, espanhol e italiano.

Nunca antes Camané se havia enfiada na torre de Babel. "Cantar noutras línguas só na casa de banho", garante. No princípio, quando foi desafiado para o projecto pelo próprio São Luiz, ficou "assustado". E assustado continuou durante muito tempo. "Mesmo depois de ter aceitado o convite pensei para mim mesmo 'espero que isto ainda demore muito'. Só à medida que fui trabalhando é que passei a acreditar." Agora já diz, com aquela confiança desconfiada que é a sua marca de estilo, "isto está a dar-me prazer".

Na verdade, os ouvidos de Camané já eram íntimos de boa parte destas canções. Ele lembra-se perfeitamente de ter ouvido Sinatra e Beatles quando tinha oito anos. E em casa da sua madrinha frequentava a colecção de discos de cantores franceses. Juntamente com Paulo Salgado, amigo e agente, reuniu 50 a 60 temas. Depois, foi eliminando até chegar aos 19 (mais dois originais) que compõem o espectáculo, incluindo clássicos como My Funny Valentine ou Moon River. Camané transformado em crooner? Nada disso. "É o fadista que ali vai estar a cantar aquelas canções. É isso que me
torna diferente de todos os outros."

 

 

DN   7.04.2008

 

O fadista completo, como sempre, como dantes


TIAGO PEREIRA
TIAGO LOURENÇO

 

Em estúdio vimo-lo expulsando os nervos através do canto. Sempre de Mim, o novo disco (a editar dia 21), nascia, então, da poesia, de fados com tradição, mas sempre surpreendentes. Camané faz-se de fado e espera sempre pela próxima oportunidade para se revelar ao seu público - vasto, apaixonado - como filho do fado, por via familiar e como intérprete único que é. No Centro Cultural Olga Cadaval, em Sintra, transformou a noite de sexta-feira em descoberta arrebatadora. Com os novos fados e uma voz que parece reforçar mais ainda uma personalidade que julgávamos ter encontrado já a maturidade perfeita.

Camané move-se entre a luz que o torna centro do palco e a escuridão que lhe dá conforto. Fadista tímido nas confissões, revela-se por completo a cada verso acompanhado à guitarra. O corpo cede às exigências das rimas, como se fossem episódios recentes da sua memória. E, do lado de cá, cabe-nos seguir o mesmo caminho, encaixando decassílabos como histórias pessoais. Nada de novo, portanto, num nome que sempre fez do fado páginas de um diário. Mas prazer reencontrado, nas palavras recolhidas e tratadas com minúcia para o novo Sempre de Mim. Camané agradece a David Ferreira e Manuela de Freitas "pelo apaixonado trabalho de pesquisa". Olha para os músicos que o acompanham com reverência e foge da fragilidade que é mostrar-se em palavras não cantadas.

Pouco tempo foi dedicado aos discos que até agora construíram o percurso de Camané. A vontade está com o destino cantado em Sei De Um Rio ou Tudo Isso. A confissão que se ouve em Ser Aquele. Ou o reconhecimento de para com quem lhe ofereceu palavras, de Sérgio Godinho (Sonhar Durante o Fado) ou Jacinto Lucas Pires (A Noite e o Dia). O novo Sempre de Mim revelou-se, Camané despiu-o. E nós vimo-lo, completo.|

 

                                                                                                    

Bom Dia Lisboa
Por MIGUEL FRANCISCO CADETE
Sexta-feira, 16 de Novembro de 2001

 

Impôs-se como a voz masculina da nova geração de fadistas. Ao quarto álbum, "Pelo Dia Dentro", já não restam dúvidas e vislumbra-se por fim o percorrer de novos caminhos. A culpa também é do seu produtor, José Mário Branco.

Carlos Manuel Moutinho Paiva dos Santos Duarte, Camané, nasceu em Oeiras há trinta e tal anos. Desde petiz que canta o fado, por via dos pais que possuem uma monstruosa discografia do género, a ponto de, em 1979, ter ganho a Grande Noite do Fado. Uma conquista que lhe abriu as portas para outros voos - a gravação de um álbum (entretanto esquecido) produzido por António Chaínho - mas que, mais tarde, o levaram a abandonar os ambientes de fados e guitarradas.

Voltou depois, já maior e vacinado, para o percurso das casas de fado e para participar no elenco de várias produções de Filipe La Féria.

 

 

As noites de fado no Teatro da Comuna, já na companhia de José Mário Branco, sugeriam qualquer coisa mais séria até que surgiu o convite da EMI-Valentim de Carvalho para gravar um disco. "Uma Noite de Fados" foi editado em 1995, quando o fado ainda não era moda, e marcou o aparecimento de uma nova voz masculina entre a nova geração.

"Na Linha da Vida" e "Esta Coisa da Alma" cimentaram a sua posição no circuito fadista e não só: lá fora começava a ser chamado para mais concertos, posteriormente acompanhados pela edição de discos na Holanda e na Bélgica. Em Julho fechou-se nos estúdios Next com a sua, já habitual, equipa de trabalho: José Mário Branco na produção e direcção musical, José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Carlos Bica no contrabaixo. Manuel de Freitas e Aldina Duarte, autoras de algumas letras, não foram também dispensadas das sessões que deram origem a "Pelo Dia Dentro". O quarto álbum "oficial" de Camané revela, mais uma vez, a faceta mais ortodoxa do fado, ainda que com peculiaridades a que não serão estranhos os temas compostos por José Mário Branco. A par dos fados tradicionais ornamentados com textos de poetas consagrados como Teixeira de Pascoaes, David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello ou Pedro Tamen, "Pelo Dia Dentro" dá também espaço a composições de José Mário Branco e Amélia Muge que procuram novos caminhos. Uma marcha afadistada ("Marcha do Bairro Alto"), um tema com uma marcação jazzística ("Terreiro dos Passos") ou uma canção à anos 70 ("A Cantar É que Te Deixas Levar") revelam um Camané mais lisboeta e universal do que nunca.

Óptimos pretextos para a conversa que se segue.

Apesar do fado ser associado a ambientes nocturnos, este álbum tem um título que parece contrariar esse lado. "Pelo Dia Dentro" quer dizer o quê?

Tal como noutros discos meus, o título foi retirado de um poema. Mas é uma designação que define bem o disco. É um disco que tem algum movimento, que fala de Lisboa nas várias fases do dia e das vivências que o dia nos traz...

É por isso que o disco se divide entre os temas baseados em fados tradicionais, como o "Fado Vianinha" ou o "Fado Noquinhas", e outros originais, na sua maioria compostos por José Mário Branco?

As coisas aconteceram por acaso. Numa conversa entre mim, o José Mário, a Manuela de Freitas e a Aldina Duarte, expressei o desejo de que este fosse um disco a falar de Lisboa e do ambiente da cidade. No álbum anterior, no último tema, já se fazia essa ligação pois eu cantava "quando Lisboa adormece e devagar anoitece, acorda a luz do meu dia". Foi por isso que quis ir buscar poetas mais populares e mais ligados ao fado, como Linhares de Barbosa e Júlio de Sousa. Essa perspectiva de Lisboa tem também a ver com uma marcha que eu sabia que o José Mário Branco tinha feito há seis anos. Esse tema ganhou o prémio da melhor marcha de 1995 e eu disse ao José Mário que gostava muito de cantá-lo. Para tentar uma coisa que algumas pessoas já fizeram e que é transportar a marcha para o fado. Lembro-me de ver a Amália e outros fadistas fazerem isso com "Maria Lisboa"...

As marchas sugerem um ambiente menos introspectivo e mais histriónico do que aquele reconhecido como pertencendo ao fado. Foi uma opção?

O fado, para lá desse lado introspectivo, tem muito da vivência do dia-a-dia. Foi esse lado que quis encontrar, com uma linguagem diferente. Embora tenha recorrido a poetas populares ligados ao fado, aconteceu também uma grande disponibilidade do José Mário Branco para compôr e escrever letras...

Um dos temas mais interessantes é "A Cantar É que te Deixas Levar", que sugere um tipo de canção portuguesa dos anos 70, nomeadamente na voz de Fernando Tordo e Paulo de Carvalho.

Essa canção já foi interpretada pelo José Mário Branco e foi escrita por ele durante os anos 70. É uma canção que faz sentido até porque se dispõe a alguma crítica social, o que não é estranho se soubermos que é uma canção do Zé Mário. A ideia é alertar para o lado excessivamente mediático dos nossos dias. É ir mais fundo, pensar mais, não se deixar levar por coisas fúteis. Falo de Lisboa, que é o sítio que conheço, mas não tem só a ver com Lisboa. Pode-se transpor para Portugal inteiro.

O fado encerra então uma vertente política?

Política não direi, mas todas as músicas têm uma mensagem social, nem que seja para mudar a forma de estar das pessoas. Quando oiço uma canção, penso no poema e como é que me pode servir para a minha vida, para o meu dia-a-dia. Nem que seja para me sentir bem. Esta canção, melodicamente, tem muito de fado, ainda que seja um fado com uma concepção que só aparece nos meus discos. Uma coisa de que gosto muito no meu relacionamento com o Zé Mário foi o facto de ele ter definido muito bem o som dos meus discos. É uma cena minha, criada pelo Zé Mário, por mim e pelas pessoas que trabalham connosco.

O José Mário Branco é o seu produtor desde o primeiro álbum e a equipa de músicos também se manteve nos últimos discos. Encontraram uma química especial?

Acho que sim. A partir do segundo disco, quando entrou o Carlos Bica e com o Custódio Castelo na guitarra portuguesa e o Jorge Fernando na viola, já se conseguiu chegar a qualquer coisa. Mas foi no terceiro disco e, agora, no quarto que se conseguiu uma guitarra a fazer sentido com o poema, uma forma de acompanhamento adequada...

Lembro-me de uma fase do Carlos do Carmo e do Chaínho em que existia uma ligação enorme entre eles. Havia um gosto tão grande naquilo que faziam, que conseguiram gravar discos excelentes, como "O Homem na Cidade" e outros. Naquela altura foi importante, até para o fado, existir essa ligação tão forte. Isso percebia-se nos discos e tudo fazia sentido.

E neste caso, qual é a importância do José Mário Branco?

É meu amigo e, musicalmente, percebeu o que eu queria. Tem uma forma de olhar o fado idêntica à minha. O fado vive de uma determinada autenticidade. Se se quiser mexer no fado, tudo bem; mas é uma música específica. Se se ouve um disco de fado é preciso ser-se capaz de o identificar como um disco de fado. Se misturarmos leite ao café, deixa de ser café. É preciso mudar o fado, é preciso evoluir; mas também é preciso ser fado. A ideia é não retirar o espírito do "Fado Vianinha", do "Fado Margaridas", do "Fado Noquinhas".

E que espírito é esse?

É preciso ser-se fadista a cantar. O fado vive muito da palavra: se não for um fadista a cantar não é fado. Há muitas pessoas que cantam o fado, mas soa lamechas. Um fadista tem uma forma muito séria de lidar com as palavras e de usar as palavras nos fados tradicionais. O que as pessoas sentem hoje é precisamente o mesmo que sentiam há 50 anos e isso, naturalmente, reflecte-se nas letras que escrevem para mim. São coisas intemporais. Neste caso, a recolha que a Aldina fez dos poemas do Linhares de Barbosa e do Júlio de Sousa tem a ver com isso.

É por isso que neste disco há um tema, "Complicadíssima Teia", em que foi dispensado o acompanhamento musical. É cantado a capella, não se ouve a guitarra portuguesa.

O fado é por excelência a música em que a palavra portuguesa melhor se passeia. Nesse tema encontra-se a palavra no seu estado mais puro. Esse tema, com poema de António Botto, é um recado. Fala de amor, de desilusão, de incerteza. Faz sentido porque canto "quem põe certezas na vida facilmente se embaraça na vil comédia do amor". Estou a falar com alguém e, na história do fado, encontram-se muitos temas assim. Existiam muitos fadistas que cantavam muito este estilo de fado, que fala da vida; por serem pessoas mais velhas, cantavam como quem dava conselhos.

A ideia do tema ser cantado a capella foi do Zé Mário e tive dificuldade em aceitá-la. Até porque também foi gravado com acompanhamento e hoje já não saberia que versão escolher.

Há temas que foram gravados e que não aparecem no alinhamento do disco, nomeadamente um da autoria de João Afonso. Porquê?

Os temas que ficaram de fora são muito bons mas não consegui dar-lhes a volta. Para além disso, dos 17 gravados era preciso escolher alguns e ficou assim. De qualquer maneira, vão sair mais tarde, como já aconteceu com o "Linha da Vida" e no disco anterior. São temas que não consegui adaptar ao meu estilo. Não consegui dar a volta às palavras de maneira a que tudo fizesse sentido, de forma a parecer natural.

Há uma marcha, género que remete para a alegria e que se pode relacionar com o facto do Camané de ter feito parte do elenco de produções de Filipe La Féria. Como é que isso se conjuga com o ambiente mais introspectivo das casas de fado, que tão bem conhece?

Essa foi uma boa experiência porque me permitiu cantar para mais pessoas e chegar a um público maior. Foi também importante porque nessa ocasião tive os primeiros contactos para gravar um disco e para pisar um palco, coisa muito diferente de cantar numa casa de fados.

Hoje, há uma maior aceitação do fado por parte das editoras. Isso notou-se neste caso particular?

Quando comecei, era muito difícil. O fado não vendia e a minha estreia foi nitidamente uma aposta da editora. Na altura em que me fizeram o convite para gravar eu já tinha um projecto todo estruturado com o José Mário Branco para um disco. Mas de repente surgiu esse convite que apressou as coisas.

Antes desse primeiro álbum, "Uma Noite de Fados", nunca tinha gravado?

Gravei quatro singles e um LP quando era miúdo, entre os 10 e os 14 anos. Um desses discos, que gravei aos 14, foi produzido pelo António Chaínho. Tinha fados tradicionais, mas também alguns originais do Chaínho, do Pedro Osório e do Carlos Macedo. É engraçado porque a forma de cantar já é a mesma, até a divisão das frases, mas depois ganhei uma forma de cantar mais serena.

As casas de fado ainda são o habitat do fado e o lugar privilegiado para se cantar e ouvir o fado?

Depende. Comecei a cantar com dez anos e aos 18 fui para as casas de fados, por onde andava todas as noites. As casas de fado são importantíssimas para se aprender a cantar o fado, porque é uma coisa que vai crescendo connosco. Lembro-me de ir ao Senhor Vinho, ao fim da noite, e estar a cantar e, às duas da manhã, chegar um grupo de pessoas e aquilo transformar-se numa noite fabulosa, até às cinco da manhã. As casas de fado são isso, não se sabe o que pode acontecer porque vivem do momento. Há noites em que os fadistas cantam bem, porque estão bem dispostos ou porque o público ajuda e há empatia. Outras vezes, nada disso existe, porque há muitos estrangeiros e eles estão noutra.

As casas de fado, no entanto, têm de sobreviver. São a única escola que existe para o fado.

 

Comentário
PURISTAS E REFORMISTAS, UMA ABSTRACÇÃO
PUBLICO
Sexta-feira, 16 de Novembro de 2001

     

 

Apesar de emparceirar com a nebulosa de novas cantadoras do fado apresentadas como herdeiras de Amália, ao ser distinguido com o galardão de representante de uma nova geração Camané tem evidentes vantagens face à concorrência. Logo à partida, até porque Carlos do Carmo tem permanecido em pousio, Camané irrompe como a voz masculina que melhor representa o fado nos dias que correm. Depois de quatro álbuns e uma carreira que ameaça, ainda que timidamente, internacionalizar-se decisivamente, ele é considerado, quase num coro unânime - e com todo o perigo que isso implica -, o fadista do novo milénio. Fiel à tradição fadista da segunda metade do século XX, Camané impôs-se com firmeza nos meios do fado, integrando a facção que não ousa a modernização do género, antes preferindo seguir os preceitos tidos como inultrapassáveis por alguns.

 

Por tudo isto, Camané é um óptimo exemplo para atestar das virtudes e desventuras do fado nos dias que correm.

É que apesar de consensualmente considerado o maior fadista do nosso tempo, não chega aos topes de vendas, a juventude portuguesa não pendura cartazes com o seu retrato nas paredes do quarto e o seu álbum anterior, "Esta Coisa da Alma", não conseguiu transcender a marca, ainda assim considerada invejável, de doze mil cópias vendidas; algo distante dos campeões de vendas portugueses como Silence 4, Delfins ou Pedro Abrunhosa, capazes de se aproximarem das 200 mil unidades.

Ou seja, o fado não desfruta hoje da popularidade que alcançou durante os dias da rádio, sendo incapaz de criar um mercado que ultrapasse os seus círculos mais estritos a ponto de possibilitar carreiras condignas aos seus mais distintos intérpretes e autores, quase todos obrigados a manter actividades extra-currículares como modo de subsistência.

Tal situação mereceria um sério debate que procurasse desvender as causas e soluções do problema que, no entanto, não parece ter lugar na já vulgarizada discussão entre puristas e reformistas. Essa questão, que o tempo se encarregou de provar como cada vez mais abstracta, sinaliza porém a necessidade da abertura do fado a novos mercados, tornando urgente a captação de outros públicos que engrossem o número de amantes de fados e guitarradas. Ora, a conquista de novas plateias só pode surgir de uma maior penetração do fado no mercado nacional - onde urge captar novas gerações - e no mercado internacional - onde continua a ser o cartão de visita da música portuguesa, como provam os feitos dos Madredeus, Mísia e Dulce Pontes. Uma política menos provinciana de alguns meios de comunicação social, como tem sido frisado parcialmente por Nuno Galopim [suplemento DN +] com o exemplo da rádio Nostalgia, também seria desejável, assim como acções concertadas que visassem uma maior divulgação do género nos mercados externos.

Regressando a Camané, o seu exemplo é extremamente útil, não só porque é um indicador preciso do actual estado do fado, mas também porque torna gritante a necessidade de coexistência - e mais do que isso, colaboração - entre puristas e reformadores no sentido de conquistarem mercados dentro e fora de portas.

Sem novas gerações de ouvintes que admirem os grandes ídolos de sempre, o fado entrará definitivamente num estado moribundo. E esse é, inquestionavelmente, um processo a ser despoletado por fadistas que conduzam o género a um novo estado e a uma nova forma que escapa, de todo, à ortodoxia.

  Miguel Francisco Cadete                   

 

 

Camané, Cantador de Histórias
PUBLICO Sexta-feira, 27 de Julho de 2001

Espreitámos Camané nas sessões de gravação do seu próximo disco. Espreitámos um fadista à procura do tempo justo para as palavras. E de uma singularidade musical, entre o fado, o jazz e as músicas tradicional e ligeira. Aguardamos, então, "Pelo Dia Dentro". Ricardo Gross

 

 

Portas de Benfica, Venda Nova, Amadora... Numa praceta, nem mais nem menos reservada do que outras (mas com a vantagem de possuir um óptimo restaurante), situam-se os estúdios Next, local escolhido para a gravação do quarto disco de Camané, a editar no último trimestre deste ano.

As sessões decorreram em ambiente familiar, nas duas primeiras semanas de Julho. Nunca se encontravam mais de seis pessoas no estúdio, incluindo os imprescindíveis José Mário Branco (produtor, director musical, arranjador, compositor, letrista...), António Pinheiro da Silva (responsável pela gravação, mistura e masterização) e Joe Fossard (assistente, operador de Pro-Tools); os músicos (Carlos Bica, Carlos Manuel Proença e José Manuel Neto), que transitam do anterior CD, "Esta Coisa da Alma"; duas poetas, sobretudo fãs, companheiras e amigas (Aldina Duarte e Manuela de Freitas); e o produtor executivo Paulo Salgado. Alguém que desejasse infiltrar-se neste ambiente informal e cúmplice, fazendo-se passar ora percebido, ora despercebido, tinha pela frente um desafio.

 

 

Segredando histórias. Ao quarto dia de gravações ainda se procuravam nomes para aquele que se irá chamar, ao que tudo indica, "Pelo Dia Dentro". Não fugindo a uma tradição iniciada com "Na Linha da Vida" (o segundo álbum), o núcleo de colaboradores do fadista só admitia sugestões para o título que tivessem origem nas letras dos fados do CD.

A base musical com voz de referência já estava, à altura, construída para a maioria dos 17 temas (seis musicados e 11 fados tradicionais). Dos tradicionais, alguns ficarão pelo caminho, mas, pelo que foi dado a ouvir, a selecção apresenta-se difícil.

O acaso ditou que um primeiro contacto ocorresse com a versão, ainda por finalizar, de "Sem Deus nem Senhor", tema que irá encerrar "Pelo Dia Dentro" - letra e música de José Mário Branco, que comandava o tempo dos músicos (o contrabaixo de Bica e a viola de Carlos Manuel) e a intensidade do intérprete.

A voz e os instrumentos encontravam-se em divisões separadas. O segredo residia na ilusão de que partilhavam o mesmo espaço. Talvez até partilhassem... um mesmo espaço interior? Camané cantava sempre de auscultadores - através deles ouvia a música - como se segredasse uma história. José Mário Branco pedia aos músicos para se libertarem da melodia e pensarem nas palavras. A música já lá estava, dizia ele, e eles sabiam-na de cor. A música, esta música (!), nesta voz e com este arranjo, é arte. Que acaba depressa, deixando em suspenso uma emoção que escapa ao domínio da razão. Um misto de tristeza, lucidez, serenidade.

Veio a calhar que em seguida se passasse a outro tema de José Mário Branco (com letra do próprio e de Manuela de Freitas), "A cantar". "Ai Lisboa quem te dera estar segura/ Que o teu canto é sem mistura/ E nasce mesmo de ti." José Mário Branco advertia: "Não esperem pelo cantor. Estendam o tapete ao cantor..." A marcação rítmica, jazzística, da viola e do contrabaixo, insinuava-se. Os músicos aceleravam o tempo, embora Camané se mantivesse sereno na sua cadência de "cantador" de histórias. Essa serenidade era paga com uma atenção exclusiva ao canto. Camané teria por certo uma opinião sobre a intervenção de cada músico, mas esta nunca se fazia ouvir directamente. Depois de muitas palavras "a cantar", o silêncio...

"Pelo Dia Dentro" poderá surpreender os que procuram a novidade e os que anseiam pela continuidade. As interpretações do cantor há muito que caminham para a criação de um distanciamento entre voz e palavras. Quer isto dizer que o objectivo proposto volta a ser o de que as histórias, os fados, não pertençam necessariamente a quem os canta e possam ser as histórias, os fados, de qualquer um de nós.

Camané nunca partia para uma nova música sem uma opinião formada sobre o que acabara de gravar. A opinião quase se adivinhava nos seus diferentes estados de humor, embora fosse pouco verbalizada. A pose algo introvertida (outros diriam, concentrada) escondia o parecer que Camané preza acima de qualquer outro: o seu próprio. José Mário Branco, que sabe lidar com eles (o fadista e o seu carácter) melhor do que ninguém, trabalhava ao teclado nas harmonias da guitarra portuguesa que figurariam na "Marcha do Bairro Alto", composição de sua autoria que venceu, em 1995, o concurso de marchas do mesmo bairro.

De olhos fechados. Os dias mudaram-se, os fados trocaram-se. "Redond/ilha" casa um poema belíssimo de Pedro Támen com o "Fado popular coimbrão". Na altura, a boda ia ainda a meio, embora a união pudesse vingar uma vida inteira... A guitarra portuguesa tem um protagonismo determinante neste "Redond/ilha". Camané ia cantá-lo outra vez, tendo por referência uma gravação anterior que parecia perfeita. Inultrapassável? Uma vez definidas a parte instrumental e a linha melódica, o fadista trabalhava sobre a sua interpretação. Era altura para cuidar dos detalhes. Entrar sereno e descontraído. Deitar o canto sobre uma confortável cama musical já feita. Doutro modo, as palavras não repousariam. "Cada lugar minha cama/ Cada cama é lua alta." Dicção perfeita.

O canto de Camané vê-se, porque clarifica o(s) sentido(s) das palavras. Ao ouvi-lo apenas - temos tendência para o fazer como Camané canta, de olhos fechados -, cria-se a mesma disponibilidade de quem se entrega à leitura. Ele procura o tempo justo para a relação com as palavras. Se outros podem ser fadistas, embora não cantem o fado (porque sabem viver a sua verdade emocional), Camané, apesar de não escrever (que se saiba...), é um poeta.

"Sem abrigo", com letra e música de João Afonso, é mais uma das 17 hipóteses para o alinhamento final. Por baixo da mesa de gravação, os pés de José Mário Branco e Camané batiam a compasso. Ainda nessa noite, foi tempo de ouvir apressadamente mais três fados: a "Vendedeira", com o privilégio de ter Aldina Duarte, autora da letra, na plateia (não é apenas por ser mulher de Camané que a sua opinião é constantemente solicitada; Aldina tem uma relação algo masoquista com a sua parcialidade: podia ouvir Camané cantar dezenas de vezes o mesmo fado que gostaria de o ouvir sempre... embora gostasse definitivamente de umas interpretações e menos de outras - a música era a "Marcha Manuel Maria"). Depois, foi a vez do "Templo dourado", mantendo-se Aldina presente.

A outra autora, Manuela de Freitas, prestava especial atenção às suas palavras. A música, tradicional, era do "Fado Margaridas". A ela decidiram voltar mais tarde José Mário Branco e Camané. Por último, o "Prisioneiro", outro dos poemas de Manuela de Freitas, com música do "Fado das horas". Letra de fonte segura. Camané já lá bebeu muitas palavras que sempre lhe fizeram bem à saúde. A base musical estava excelente!

Despedida. Nono dia de gravações, final de tarde. Camané cantava na música "Eu lembro-me de ti", de Alfredo Marceneiro, o texto "Noite apressada" de outra referência importante para o artista: o poeta David Mourão-Ferreira. Letra enorme na proporção da responsabilidade. Uma maratona de poesia. Não era, obviamente, uma "escada" - a "Escada sem corrimão", interpretação dilacerante no disco "Esta Coisa da Alma" (o terceiro de Camané) -, mas o desfilar das palavras sugeria ainda a forma da espiral.

Não por acaso, o poema "Noite apressada" terminava nos versos: "Era afinal quase nada/ E tudo parecia imenso." A porta do estúdio de gravação estava quase fechada para não perturbar a concentração de músicos e técnicos. A interpretação, apesar de escutada na clandestinidade, parecia definitiva. Camané, insatisfeito, arriscaria um registo mais recolhido, mas resignou-se à qualidade da prestação anterior. Para, em seguida, regressar ao "Prisioneiro". "Que estranha contradição/ Eu pedir-te liberdade/ Sabendo que a condição/ É ficar preso à saudade." Feito de palavras simples e sentidos complexos...

Com destreza libertados do "Prisioneiro", produtor e artista conversavam sobre a intencionalidade a dar ao "Templo dourado", mais um fado que ficara em "banho-maria" das sessões anteriores. Este fado seria uma espécie de conversa entre mestre e discípulo, como no "Siddhartha", de Herman Hesse (José Mário Branco também dá conselhos de leitura às pessoas que estima). A tarefa do mais jovem - Camané é discípulo, enquanto escuta José Mário Branco, e será mestre ao interpretar o fado ("que estranha contradição" mesmo... ) -, não sendo simples, terá no final a sua recompensa: a liberdade.

Finalmente, a propósito de intencionalidade, alguém lembrou um senhor cujo regresso aos palcos se anuncia para breve: Carlos do Carmo, que em matéria de canto convicto é, no fado, a referência. "Templo dourado" não era de todo o "Fado Alberto", mas andava muito perto...

A "Marcha do Bairro Alto", que pede pulmão que baste e é dos temas mais alegres de "Pelo Dia Dentro" sai finalmente limpinha, sem osso. Talvez na procura de um contraste mais brusco, Camané atacaria em seguida o "Terreiro dos Passos", outro "tour de force" a exigir disponibilidade vocal particular. A letra e música são de Amélia Muge e a marcação inicial assaz jazzística pertencia, está claro, a Carlos Bica. Este tema, neste disco, é sintomático de uma heterogeneidade que Camané persegue entre o fado, o jazz (?) e as músicas tradicional e ligeira.

"Terreiro dos Passos", com a sua enorme complexidade, traduzida nos arranjos de José Mário Branco, que já havia colaborado com Amélia numa anterior gravação do tema (no álbum "Todos os Dias"), as harmonias em desafio à voz, o refrão, épico, intimista, a ameaça no canto, assombrado, como que chegado das trevas, foi a despedida possível, um até breve, a este "Pelo Dia Dentro" que, apesar da familiaridade estabelecida, manter-se-á tão ou mais ansiado do que se sobre ele pairasse o mais profundo mistério. Como aquele de que é constituída "a matéria dos sonhos", primeira hipótese de título para o novo disco - entretanto descartada.

 

"Não me imagino a fazer outra coisa"


Fadista Camané lança hoje o seu novo trabalho discográfico, o quarto de uma carreira de êxito, intitulado "Pelo Dia Dentro"

DINA MARGATO

"Uma Noite de Fados", "Na Linha da Vida", "Esta Coisa da Alma" e agora "Pelo Dia Dentro", os quatro discos de Camané que assinalam quatro passos no seu reconhecimento como fadista. Agora que já não canta regularmente em casas de fados, dedica este trabalho ao dia, ao bulício quotidiano da cidade onde vive, Lisboa. "Pelo Dia Dentro" resulta de uma continuação natural, mas também representa o porto de chegada num qualquer manhã, o disco da maturidade, como em escassas palavras admite: "Sim, acaba por ser isso". O novo álbum é hoje lançado no mercado nacional.
Os discos não resumem a sua carreira iniciada muito antes disso, lembra que com dez anos cantou na televisão num programa "Páscoa dos Hospitais". Em 1979, sai vitorioso no concurso "Grande Noite do Fado"; a participação nos espectáculos de Filipe La Féria, serviram-lhe de alavanca, deu mesmo nas vistas em "Grande Noite", "Maldita Cocaína", "Cabaret". O primeiro convite para gravar um disco surge na sequência do espectáculo "Maldita Cocaína". Depois, no Teatro da Comuna conhece José Mário Branco, e a par da relação de amizade desenvolvem um compadrio profissional que os leva a conceber o primeiro disco em 1995. Este trabalho foi gravado ao vivo, durante quatro noites seguidas no Palácio de Alcáçovas.

Bisavô e pai cantavam
Como é que tudo começou? Camané faz o prefácio à resposta dizendo: "Só sei fazer isto, não saberia fazer outra coisa, não me imagino a fazer outra coisa". As raízes do interesse pelo fado vêm da infância: o bisavô era fadista profissional, o pai também cantava, embora nunca tivesse vivido do fado, a família sempre esteve ligada ao meio. Entre os discos lá de casa, constavam os êxitos de Amália (a quem se refere com frequência), de Carlos do Carmo, Fernando Maurício, Maria Teresa de Noronha e Lucília do Carmo. Sempre os ouviu. Um dia, a convalescer de um doença que o retém em casa, começa a prestar-lhes outra atenção e a sua ligação com o fado reforça-se.
Nos anos 80, como qualquer adolescente, entusiasma-se pelos "hits" e ritmos da época, refere as preferências pelos Spandau Ballet ou Rolling Stones. O fado não era propriamente um género na moda e acaba por recalcá-lo, remetê-lo a um segundo plano. Até porque a mudança de voz dificultava-lhe a interpretação que gostaria de dar às canções.

"Lá vai o fadista"
Por volta dos 18 anos, dá-se a viragem, volta a acreditar no fadista que há em si e começa a cantar regularmente no Arsenal do Alfeite. Recorda desses tempos ser gozado pelos colegas e vizinhos da mesma idade, que lhe diziam quando passava: "Lá vai o fadista". Na altura, o fado não tinha o estatuto que hoje voltou a adquirir. "Hoje está na moda, mas naquela época não tinha grande aceitação: só gostavam do fado as classes muito baixas ou uma reduzida elite".
A distinção recebida em Outubro pelos Prémios Blitz, de melhor voz masculina nacional, é descrita por Camané como uma satisfação ímpar. "Ter sido reconhecido, pertencendo ao fado, num universo onde se privilegia outros géneros, foi muito importante". Fala do disco de prata da venda de "Esta Coisa da Alma", enaltecendo o trabalho da editora, aproveitando para apontar as apostas que estas empresas têm feito ultimamente no fado. A elas se deve também a divulgação de uma nova geração, onde, no entanto, não se inclui, apesar dos 35 anos que vai fazer em Dezembro. "Já ando nisto há muito tempo, tem sido a minha vida".
Camané conheceu a internacionalização em vários espectáculos, em França, Espanha, Macau, Bélgica, Holanda. O lançamento de " Na linha da Vida" em 1999, na Coreia, marcou o seu lançamento no mercado oriental. O fadista não colecciona só discos de fado, em sua casa costuma ouvir sobretudo jazz e música brasileira. As tendências electrónicas nas suas várias "nuances" não lhe despertam atenção suficiente para adquirir esses discos, mas gosta de ouvir esses ritmos quando sai à noite, nos bares da capital.

Jornal de Notícias – 19-11-2001      

Na linha da vida

  

Aos 12 anos ganhou a Grande Noite do Fado. Desistiu de cantar aos 14. Descobriu depois o lado negro da vida, até que encontrou os melhores palcos e o caminho da alma. Camané explica como

Entrevista de Ana Soromenho e Vítor Rainho
 

Onde nasceu?

Em Oeiras, em 1967, onde vivi até deixar a casa dos meus pais. Tenho dois irmãos, o Hélder e o Pedro, mas sou o mais velho. Andava num infantário e o padre que tomava conta de nós dizia à minha mãe que gostava que eu viesse a ser padre, mas logo perceberam que isso nunca viria a acontecer porque era muito rebelde. Depois fui para a escola, foi nessa altura que ouvi fados pela primeira vez...

Adoeceu e ouviu todos os discos que havia em casa.

É verdade, só havia discos de fado. A família toda da parte do meu pai, desde o meu bisavó, cantava fado. Trabalhavam e cantavam aos fins-de-semana.

Que faziam os seus pais?

A minha mãe era doméstica e o meu pai desenhador no Arsenal do Alfeite. Mas foi nessa altura, em que estive 15 dias doente, que ouvi compulsivamente todos os discos de fado. Lembro-me de que não tinha jeito nenhum para cantar mas havia naquela música uma característica diferente com a qual me identificava muito. É estranho um miúdo de sete anos gostar muito de fado. Decorei as letras e comecei a cantar.

Como reagiam os amigos quando cantava?

Tinha o grupo de Oeiras com quem fazia aquelas brincadeiras perigosas de ir para cima da ponte onde passava o comboio, faltávamos às aulas e essas malandrices. Gostava muito dessas aventuras de putos. Só que, entretanto, fui-me fechando um bocado porque fazia uma coisa que era completamente diferente de todos os miúdos da minha idade. Gostava muito de cantar fado mas tinha vergonha porque gozavam comigo. Achava estranho as pessoas rirem-se quando dizia que ia para os fados.

Que idade tinha?

Oito, nove anos. Todos os fins-de-semana ia com os meus pais cantar às colectividades. Havia uns poetas populares que escreviam coisas específicas para a minha idade, que falavam da escola, da mãe, coisas assim.

Tinha muitos amigos?

Bastantes. Mas o fado era uma coisa minha, um segredo. E depois havia tudo o resto, a escola, os amigos, as brincadeiras. Nunca me exibia. Aliás, sempre tive imenso medo de falar do que fazia e ainda hoje tenho. Talvez tenha a ver com esse passado. Era muito reservado e o fado, de algum modo, salvou-me um bocadinho...

O que quer dizer?

Que é uma música de emoções contidas, uma forma de cantar sem grandes exteriorizações, nem grandes ‘performances’. É apenas necessário ter alma e sentido da palavra. De repente, tive a sensação de que o fado não precisava de mim para nada, eu é que precisava do fado porque, se não existisse fado, nunca teria feito da música a minha vida, não poderia cantar outro estilo musical. É difícil explicar... O fado tem a ver com a minha maneira de ser, muito discreta, e facilitou-me a forma de me expressar.

Já fazia noitadas?

Não. Quando ia aos fins-de-semana com os meus pais eles iam cedo para casa, ou então ficava a dormir no carro.

Como é que um miúdo de oito anos vivia esse mundo dos adultos?

Não era só um mundo de adultos, sempre houve muitas crianças a ir aos fados à noite, era um ambiente de famílias. Lembro-me de ver, nessa altura, a Marina Mota a cantar. Cada colectividade tinha a sua criança.

Quantos anos tinha quando ganhou a Grande Noite do Fado?

Tinha 12 anos, em 1979. Um amigo do meu pai, que era um fadista amador, convenceu-me a ir dizendo que era um grande espectáculo e que iam assistir seis mil pessoas. Achei graça, fui e ganhei. Nem sabia que era um concurso. Mas fui para o palco e cantei um fado tradicional à minha maneira. Claro que fiquei muito nervoso, com os joelhos a tremer. A Grande Noite do Fado é um acontecimento muito popular e as pessoas, quando gostam, batem com os pés no chão, estamos a falar do Coliseu, que faz um barulho ensurdecedor. Saíram umas reportagens numas revistas, achei muita graça ver a fotografia, mas depois, claro, desliguei.

Gravou discos.

Sim. Fiz quatro ‘singles’ e um LP. Na altura existiam umas editoras pequenas que convenceram o meu pai. É engraçado porque o meu pai levava os discos lá para o trabalho e os colegas compravam todos. Ainda hoje encontro pessoas desse tempo que têm discos que eu não tenho. Não gosto de ouvir esses registos, faz-me impressão essa voz de criança.

Era considerado um menino-prodígio?

Acho que sim, com exagero. Penso que percebiam que eu tinha qualquer coisa. De repente, há uma criança que tem uma grande capacidade intuitiva de interpretar.

Não consegue separar as suas memórias do fado?

Não, não consigo. Está tudo ligado. Só houve um período na minha vida em que me desliguei, entre os 14 e os 18 anos. A voz começou a modificar-se e a perder a expressão. Não sabia o que fazer com ela. Nesse período descobri outras músicas, comecei a ouvir e a gostar de outras coisas. Simplesmente, resolvi parar de cantar.

Aos 14 anos perdeu esse estado de alma?

Não. Mas também tinha ganho outra consciência. Era já um adolescente. Houve um desinteresse normal, tinha também a ver com a influência das outras músicas, dos amigos, das namoradas, de tudo. Queria descobrir outras coisas, queria curtir e, principalmente, já não queria ir aos fados com os meus pais. Queria era estar com o pessoal da minha idade.

Que fazia nessa altura?

Estudava, mas passei a fazê-lo à noite.

Com que idade?

Com 16 anos. Nunca fui bom aluno. Chumbei e resolvi começar a trabalhar. Fui para o Arsenal do Alfeite, onde estava o meu pai, que era o chefe de construção naval, e arranjou-me lá um emprego. Trabalhava de dia e estudava à noite, mas por pouco tempo. Fiz só o 9º ano.

No Arsenal fazia o quê?

Era ajudante de calafate, mas só fiquei dois anos. Percebi que não tinha jeito para aquilo e não era o que queria para a minha vida. Nessa altura comecei a pensar como é que poderia voltar ao fado.

E como voltou?

Um dia, o Carlos Zel telefonou para minha casa a dizer que ia haver um programa do Joaquim Letria dedicado aos novos talentos e desafiou-me. Fui, cantei uma música do Thilo Krasman com letra da Rosa Lobato Faria.

Porque é que se lembraram de si?

Eu tinha começado, aos fins-de-semana, a ir a restaurantes onde se cantava o fado. Foi nessa altura que voltei a cantar. O Carlos Zel costumava aparecer por lá e ouviu-me. Lembro-me de, nessa época, tinha já 18 anos, ir à noite, apanhar o comboio, com o meu fatinho completo de cantar o fado e as pessoas gozarem comigo na rua: ‘Ó fadista!!’. Tinha muita vergonha. Entretanto, o irmão do Carlos Zel, o Alcino Frazão, era um excelente guitarrista, estava a gerir o Fado Maior, o antigo Senhor Vinho, e arranjou maneira de eu cantar lá todas as noites. Cantava até às duas da manhã, deitava-me às quatro e depois levantava-me às duas da tarde. Às vezes, saía dos fados e ia para as discotecas.

Como era o ambiente das casas de fados?

Aprendia-se muito. Estava com pessoas muito mais velhas que eram músicos muito experientes. Foi nessa aprendizagem que me formei e adquiri a minha escola. Fazia o que mais gostava de fazer na vida. Era um ambiente muito engraçado porque, quando acabávamos de trabalhar, ao fim da noite, juntava-se a malta das casas todas e eram momentos íntimos e muito criativos onde se contavam histórias do passado. Muitas vezes ficávamos ali a cantar uns para os outros, até às sete, oito da manhã.

Que histórias eram?

Sobre o fado, sobre fadistas, sobre pessoas que eu nunca tinha conhecido mas que gostava imenso, como o Alfredo Marceneiro ou o Manuel de Almeida. Ainda hoje tenho saudades deles. A música é o elemento que une aquele ambiente de vivências muito particulares. Essa é a essência do fado. Gostava de ficar naquelas conversas, tratavam-me como um puto que estava ali a aprender e eu tinha um grande respeito pelos fadistas mais velhos.

Não convivia com pessoas da sua idade?

Sim. Mas sempre vivi muito no meio das pessoas mais velhas. Nessas noites, às vezes acontecia os meus amigos irem ter comigo e depois sairmos, mas eles não frequentavam as casas.

Quantos anos esteve nas casas de fados?

Mais de dez. Até aos 31. Há seis, decidi que só iria fazer concertos. Começaram a surgir mais oportunidades e a haver um circuito de trabalho mais interessante para mim. Gosto de fazer espectáculos e discos porque tenho mais disponibilidade para desenvolver o meu projecto. A rotina das casas torna-se limitadora e acontece que, muitas vezes, as pessoas não estão lá para ouvir cantar. O fado vem com o menu do jantar. E havia muitas noites em que não me apetecia ir.

Quanto ganhava?

Pouco. Talvez dez contos por noite.

Alguma vez sentiu que podia perder o rumo à sua vida?

Várias vezes. Na fase dos 16, 17 anos, comecei a portar-me mal, a chumbar, a faltar às aulas, tinha a mania de beber copos, até às tantas e... entrei numa fase complicada...

Complicada? Com álcool e drogas duras?

Sim. Muito puxada. Durante muito tempo a minha vida foi sempre pautada por grandes tentativas de deixar a dependência das drogas e do álcool. Tinha sempre o sonho de fazer uma vida normal como os outros que trabalhavam, estudavam. Achava que era especial, diferente, sentia-me sozinho, era uma coisa estranha. Não conseguia relacionar-me com o mundo sem ter a ‘cabeça cheia’.

Como foi, nesse período, a sua vivência nas casas de fado?

Sempre houve gente que me apoiou, mas enfrentar as pessoas quando cantava foi difícil. Se estivesse limpo começava a tremer, sentia muito medo de falhar. Ao princípio, quando se entra nessa vida, é tudo fácil, muito cor-de-rosa, sentia-me o maior. Só que, depois, existe a fase seguinte da dependência e é extremamente complicada. Não se consegue desenvolver absolutamente nada, vive-se totalmente obcecado. Passou a ser uma aflição, nunca conseguia ter paz de espírito.

Mas tinha períodos em que tentava sair?

Sim. Sempre andei dentro e fora. Havia períodos em que conseguia parar e tentava organizar-me. Mas era sempre difícil, houve alturas em que deixei de acreditar que iria conseguir.

Nessa altura conseguia ter uma vida de trabalho regular?

Sim. Porque enquanto estava a cantar conseguia controlar as doses. Muitas vezes substituía a droga pelo álcool. Mas, mesmo nesse período, tive a oportunidade de ter aquela experiência nas casas de fados, com aquelas pessoas e fui assimilando tudo o que era para assimilar artisticamente. Mais tarde, consegui aplicar essas experiências, de uma forma muito produtiva, no meu trabalho. Eu digo que cantar o fado foi uma forma de salvação e é verdade, porque gostava tanto de cantar, queria tanto, que nunca deixei de ser profissional. Nunca perdi o pé. Poucas pessoas que estão hoje a cantar tiveram a oportunidade que eu tive. Sabia que era um trunfo e que um dia teria de o aproveitar da melhor forma.

Quando começou a conseguir deixar as drogas duras e o álcool?

Nos últimos oito anos. Os primeiros dois foram muito difíceis, com altos e baixos, mas houve um momento do ‘clic’. Comecei a tratar-me, a deixar a droga aos poucos e a perceber que conseguia mudar a minha vida. Tentei arriscar viver de outra maneira. Felizmente, essa fase coincidiu com o período em que começaram a surgir outras oportunidades e esse impulso ajudou-me muito.

Novos projectos?

Sim. Há sete anos conheci o José Mário Branco, foi um grande incentivo para mim. A Aldina Duarte, minha ex-mulher, organizou umas noites de fado no Teatro da Comuna. Também fui convidado pelo Filipe La Féria para fazer uns programas e participar na peça "Maldita Cocaína". Foi uma fase em que me expus mais e tentei encontrar outro tipo de público. Começaram a aparecer nos espectáculos da Comuna pessoas da minha idade, uma malta que nunca tinha ouvido fado, gente ligada ao teatro. De repente, já não era aquela coisa de cantar só dois ou três fadinhos, tinha que aguentar um repertório grande. Comecei a cantar versos de outros poetas, como Fernando Pessoa. Comecei a ler poesia contemporânea para melhorar o fado que cantava, tentei procurar outros caminhos e a fazer as minhas escolhas. Percebi que estar no palco me podia fazer sentir descontraído. Nunca teria imaginado que aguentaria tanto tempo a cantar sem o recurso a drogas e ao álcool...

É por isso que aparece um disco que se chama Na Linha da Vida?

De algum modo. Foi um disco que fiz já totalmente recuperado. E embora "Noite de Fados", o primeiro disco, fosse um trabalho que já reflectia alguma maturidade, no outro já me sentia uma pessoa completamente diferente. Comecei a fazer espectáculos no estrangeiro e a viver situações de stresse e de muito medo, mas percebi que conseguia lidar com elas.

Como?

Lembro-me de telefonar para amigos antes dos espectáculos a dizer que não conseguia entrar, que tinha imenso medo de cantar sem ajuda de nada. Claro que qualquer artista pode sentir isso, todos temos inseguranças. Nunca perdi os meus medos, nem as minhas angústias, apenas arranjei uma forma de lidar com elas sem precisar de mais nada. E hoje em dia prefiro o meu pior dia como eu sou do que o meu melhor dia como eu era. Tenho sempre medo, mas quando acontece e corre bem, vale a pena o risco. É um prazer enorme.

Como é sentir o público todo a aplaudir de pé?

Melhor do que isso é estar a cantar e ouvir o silêncio. É uma coisa estranhíssima conseguir ouvir as pessoas a susterem a respiração. É engraçado porque, hoje em dia, acho que é muito mais fácil conseguir empatia com público nos espectáculos do que nas casas de fados. Geralmente, as casas de fado são uma incógnita, há dias em que as pessoas estão disponíveis para ouvir e outros em que não. E aos fadistas nem sempre apetece cantar. Para ouvir fado é preciso estar com espírito, é poesia e faz reflectir. Num espectáculo ao vivo há toda uma preparação para que isso aconteça.

No estrangeiro actua maioritariamente para portugueses?

Raramente. Só cantei três vezes para emigrantes. O fado lá fora é cada vez mais consumido em festivais de ‘World Music’. Claro que há sempre alguns portugueses na sala.

Como conseguiu reunir em torno de si a unanimidade da crítica?

Sempre acreditei no fado, é preciso ser fadista para se cantar o fado. Não se pode ser outra coisa. Há uma característica própria neste cantar que se identifica imediatamente. Depois é um trabalho que se constrói, mais pessoal, mas onde nunca se pode perder o fio condutor. Li imensa poesia, aperfeiçoei o meu conhecimento da língua portuguesa, da métrica — a Aldina Duarte fez uma recolha de poetas populares e clássicos que introduzi no meu repertório. Comecei a trabalhar com músicos que vinham de outras áreas. Consegui juntar ao fado tradicional a minha história. Talvez seja por isso que reúno unanimidade.

Ganhou o prémio Blitz.

É verdade. É um prémio do rock e isso foi muito bom.

O fado está na moda?

Conquistou um lugar. Sei que contribui para isso, de alguma forma. Claro que já existia a Amália, o Carlos do Carmo e outros. Mas, quando comecei, estava sozinho. Havia a Mísia, que era muito mais conhecida lá fora, e o Paulo Bragança, que também era muito particular. Do fado tradicional era só eu. Só mais tarde apareceram outros fadistas novos que começaram a ganhar lugar. E, claro, foi esse conjunto de pessoas que fez com que o fado voltasse.

Vende muitos discos?

Cerca de 20 mil. Tem vindo sempre a crescer, o primeiro vendeu 1500...

Consegue viver dos discos que vende?

E dos espectáculos que faço. Consigo fazer uma média de 40 por ano.

Só ouve fado?

Não, claro que não! Oiço jazz, autores brasileiros, adoro bossa nova, também posso consumir música actual, house, um tecno mais misturado com jazz. Mas oiço muito fado.

Nunca canta em casas de fado?

Não.

Mas frequenta?

Às vezes. E gosto! E se me apetecer cantar, até canto, há coisas que acontecem numa cada de fados que não acontecem num espectáculo.

Os seus irmãos também são fadistas. Nunca fez nada com eles?

Trabalhei com o meu irmão Hélder, foi meu produtor e empresário durante uns meses. Mas, entretanto, as coisas foram mudando e, de repente, decidi trabalhar com outro produtor. Ambos estávamos a começar e evoluímos muito a fazer coisas diferentes.

Durante dez anos foi casado com uma fadista e sempre trabalharam juntos, Não é complicado?

A Aldina sempre participou nos meus discos, fazia a recolha de material e foi assistente de produção em todos eles. O percurso dela no fado é muito diferente do meu. Começou mais tarde e, se calhar, o seu tempo virá depois. Um dia que queira fazer uma carreira para se tornar mais conhecida vai fazê-lo, naturalmente, tem todas as condições para isso.

Porque tem tanto medo de falhar?

Sempre fui assim. Vou tentando aprender a viver de outra maneira e tentar enfrentar os meus medos. Já consegui muita coisa. Agora estou novamente noutra fase, mais solitária. Estou a aprender a viver sozinho e a organizar-me. Nunca tinha tido essa experiência. Sempre vivi em casa dos meus pais. Saí com 24 anos para casar. Mas estou a gostar imenso desta experiência.

Algum dia imaginou que seria famoso como fadista?

Acreditava que era possível. Não que tivesse uma necessidade enorme de que isso acontecesse mas achava que seria reconhecido pelo fado. Desde miúdo, tive o ‘feeling’ de que iria acontecer. Apesar das inseguranças, há qualquer coisa que a gente faz e que sabe que é só nosso.

 

EXPRESSO, VIDAS – 18-5-2002

 

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Letras de Fados de Camané