5-8-2012
Um mártir da Fé Judaica
Processo n.º 9776 – Heitor Dias da Paz (1679-1706)
Heitor Dias da Paz, de 24 anos à data da sua prisão em Agosto de 1703, estudante de Medicina em Coimbra, foi um mártir da Fé Judaica que não temeu enfrentar a morte na fogueira (e foi queimado vivo), antes que renunciar à sua crença na Lei de Moisés. Recusou absolutamente entrar na palhaçada da Inquisição, denunciando o maior número de pessoas, de modo a acertar nos que tinham jurado contra ele. Quando confessou, disse apenas o que tinha acontecido em sua casa, quando o pai tinha feito um jejum judaico. A sua teimosia e persistência (que os Inquisidores chamaram impenitência) deixou os Inquisidores completamente baralhados e tudo fizeram para o vergar, sem o conseguirem. Nunca lhes tinha aparecido um preso assim, que não tinha nenhum medo deles e lhes respondia sempre frontalmente que era judeu e queria viver e morrer como tal. Chamaram os melhores teólogos e pregadores de Lisboa para conversar com ele, mas nenhum conseguiu convencê-lo.
fls. 4 img. 7 – 22-8-1703 – Mandado de prisão
fls. 5 img. 9 – 23-8-1703 – Entregue na prisão pelo familiar Dom Filipe de Sousa
fls. 5 v img. 10 – Planta do Cárcere
Culpas de judaísmo no processo:
fls. 6 img. 11 – Depoimento de 8-3-1703, de Josefa de Valença- pr. n.º 547 - , casada com Leandro Cardoso, ela natural do Porto e residente em Lisboa.
fls. 7 v img. 14 – Dep. de 9-7-1703, de Clara Rodrigues de Chaves – pr. n.º 4544-. casada com Martinho Mascarenhas, ela natural do Porto e residente em Lisboa
fls. 9 img. 17 – Dep. de 6-8-1703, de Mariana de Chaves – pr. n.º 4554 -, solteira, filha de João Rodrigues de Valença, natural do Porto e residente em Lisboa
fls. 11 v img. 22 – Dep. de 25-9-1703, de D. Inês Mendes de Campos – Pr. n.º 5094 - , casada com Francisco da Costa Pessoa, ela natural e residente em Lisboa . O termo de ida e penitências tem a data de 20-9-2012, mas não a deixaram vir embora sem antes lhe tirarem mais algumas denúncias como é o caso desta.
fls. 13 img. 25 – Dep. de 19-10-1703, de Pedro Álvares, cunhado do réu – Pr. n.º 2794 - , natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 16 v img. 32 – Dep. de 6-12-1703, de Pedro Álvares, cunhado do réu – Pr. n.º 2794 - , natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 17 v img. 34 – Dep. de 10-1-1704, de Pedro Álvares, cunhado do réu – Pr. n.º 2794 - , natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 18 v img. 36 – Dep. de 11-10-1703, de Isabel Cardosa, solteira, - Pr. n.º 11481 - , filha de Clara Rodrigues de Chaves, natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 20 v img. 40 – Dep. de 12-2-1704, de Guiomar Sanches da Rosa, - Pr. n.º 2356 - , casada com José de Macedo Correia, natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 22 img. 43 – Dep. de 26-4-1704, de José de Chaves – Pr. n.º 4700 - , solteiro, filho de Clara Rodrigues de Chaves, natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 24, img. 47 – Dep. de 24-7-1704, do médico Diogo Nunes Ribeiro – Pr. n.º 2367 – natural da vila de Idanha-a-Nova e residente em Lisboa.
fls. 25 v img. 50 – Dep. de 20-8-1704, de Diogo Ribeiro, homem de negócio – Pr. n.º 2096 -, natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 27 img. 53 – Dep. de 7-10-1704, de José Macedo Correia, estudante de medicina em Coimbra – Pr. n.º 2363 - , natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 28 v img. 56 – Dep. de 9-10-1704, de José Macedo Correia, estudante de medicina em Coimbra – Pr. n.º 2363 - , natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 29 v img. 58 – Dep. de 4-10-1704, de Branca Cardosa, irmã do réu – Pr. n.º 9435 -, casada com Pedro Álvares, ela natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 31 v img. 62 – Dep. de 3-10-1704, de Brites da Rosa – Pr. n.º 9033 - , solteira, fila de Diogo Rodrigues Lopes, natural e residente na cidade de Lisboa.
fls. 33 v img. 66 – Dep. de 14-10-1704, de Francisco Cardoso – Pr. n.º 2690 - , solteiro, filho de João António Monteiro, natural da cidade do Porto e morador na de Lisboa.
fls. 35 img. 69 – Dep. de 22-9-1705 de Manuel Jorge Arroja – Pr. n.º 3404-, solteiro, filho de Manuel Nunes, natural da vila do Fundão e residente na cidade de Lisboa. Também aqui o depoimento foi dado depois do auto da fé.
fls. 36 v. img. 72 – Dep. de 7-2-1705 de Maria Soares Pereira – Pr. n.º 2795 -, casada com Manuel Franco, ela natural da vila de Fronteira e residente em Lisboa.
fls. 38 v img. 76 – Dep. de 10-9-1704 de Francisco Morais Taveira, pai do réu – Pr. n.º 3593, da Inq. de Évora, transcrito a fls. 40 img. 79 do pr. n.º 7164, de Clara Maria da Paz, sua filha - , ele natural da cidade do Porto e residente na vila de Serpa.
fls. 40 img. 79- Dep. de 16-4-1705, de Guiomar Maria Rodrigues – Pr. n.º 3682 - , solteira, filha de Diogo Rodrigues Lopes, natural e residente na cidade de Lisboa
fls. 41 v img. 82 – Dep. de 23-6-1705, de Manuel Franco – Pr. n.º 3406 - , natural e residente na cidade de Lisboa
fls. 43 img. 85 – Dep. de 12-8-1705, de Clara Maria da Paz, irmã do réu – Pr. n.º 7164 - , solteira, filha de Francisco Morais Taveira, natural da vila de Messejana e residente em Lisboa.
fls. 45 img. 89 – Dep. de 10-9-1705, de Francisco de Sá e Mesquita – Pr. n.º 11300 -, solteiro, estudante de Medicina, natural da cidade de Faro e residente na de Lisboa.
fls. 47 img 93 – Dep. de 5-1-1705, de Leonor Dias Henriques, mãe do réu – Pr. n.º 10437, da Inq. de Évora, natural da cidade do Porto, moradora na vila de Serpa.
fls. 48 v img. 96 – Dep. de 13-11-1704, de Francisco Lopes Henriques – Pr. n.º 5694 , da Inq. de Évora - , natural e morador na cidade de Beja.
fls. 49 v img. 98 – Dep. de 20-11-1704, de Maria Antónia, casada com o anterior – Pr. n.º 7141, da Inq. de Évora – natural da cidade de Lisboa e moradora na de Beja.
fls. 51 img 101 – Dep. de 15-9-1705, de Vitoriano Galvão – Pr. n.º 9215, da Inq. de Évora – solteiro, estudante de Coimbra, filho de Rodrigo Machado, natural da cidade de Lisboa e morador na vila de Avis.
fls. 54 img. 107 – Dep. de 18-6-1705, de João Esteves Henriques Samuda – Pr. n.º 8337 - , solteiro, filho do médico Simão Lopes Samuda, defunto, natural e residente em Lisboa.
fls. 55 img. 109 – Dep. de 18-2-1706, de Manuel de Samuda Leão, médico – Pr. n.º 7178 - , solteiro, filho do médico Simão Lopes Samuda, defunto, natural e residente em Lisboa.
São três as denúncias antes da sua prisão. Possivelmente, correu nos Estaus a notícia da sua prisão e começaram todos os detidos a “dar nele”. Entre os denunciantes, seu pai, sua mãe, as duas irmãs mais velhas e o seu cunhado. Seria preciso que ele representasse muito bem, para se livrar da ratoeira que lhe tinham montado.
fls. 58, img. 115 - Certidão do baptismo do réu em 21 de Julho de 1679.
fls. 60 img. 119 – 26-9-1703 – Inventário - Não tem quaisquer bens, “vive às sopas” de seu cunhado Pedro Álvares, que também lhe paga os estudos em Coimbra.
fls. 62 img. 123 – 23-10-1703 – Termo de curador. Por ser menor de 25 anos, foi nomeado seu curador o Padre João de Morais e Castro, Sacerdote do hábito de S. Pedro.
fls. 63 img. 125 – 23-10-1703 – GENEALOGIA – Não tem culpas que confessar. Chama-se Heitor Dias da Paz, é estudante de Medicina e tem “de 21 a 22 anos de idade” (sic). É filho de Francisco de Morais e de Leonor Dias, não sabe de onde são naturais e residem em Serpa. Os seus avós paternos são já defuntos e não lhes sabe o nome. Os avós maternos também já faleceram e chamavam-se José Cardoso e Branca Rodrigues, não sabendo donde fossem naturais. Ouvira dizer que teria um tio por parte de seu pai, mas não sabe o nome dele nem da esposa, mas apenas que não tiveram filhos. E também ouvira dizer que por parte de sua mãe tivera uma tia de que “não tem notícia alguma”.
Tem quatro irmãs chamadas Branca Cardosa, de 28 anos, Clara Maria, de 20, Josefa, de 16 e Rosa, de 10 anos. Branca Cardosa é casada com Pedro Álvares e moram em Lisboa. Clara Maria é solteira e mora com a irmã mais velha. As duas mais novas são ainda pequenas e moram com seus pais em Serpa.
Foi baptizado e crismado, tem vivido como cristão. Soube dizer as orações o catecismo. Nunca foi preso e não sabe as razões da sua prisão. O Inquisidor fez-lhe então a habitual admoestação “Foi-lhe dito que está preso por culpas cujo conhecimento pertence ao Santo Ofício, e lhe fazem saber que desta Mesa se não manda prender pessoa alguma, sem preceder bastante informação de haver cometido culpas que a ela pertençam; e que certamente houve para ele Réu ser preso pelo que o admoestam com muita caridade, da parte de Cristo Senhor Nosso, trate do descargo da sua consciência confessando inteiramente a verdade de suas culpas, declarando todas as pessoas com quem as comunicou e sabe andarem apartadas da fé, não impondo porém a si nem a outrem falso testemunho, por ser o que lhe convém, para descargo de sua consciência e salvação de sua alma, e bom despacho de sua causa e por tornar a dizer que não tinha culpas que confessar nesta Mesa, foi outra vez admoestado em forma e mandado a seu cárcere. “
fls. 66 img. 131 – 26-10-1703 - Termo de 2.º Curador – Por impedimento do primeiro Curador, foi nomeado nesta data, João Cardoso, Notário da Inquisição.
fls. 67 img. 133 – 26-10-1703 – Interrogatório in genere – Disse que não tem culpas que confessar e respondeu negativamente a todas as perguntas.
fls. 71 img. 141 – 8-2-1704 – Interrogatório in specie – Repetiu que não tinha culpas que confessar e disse serem falsos todos os conteúdos das denúncias que lhe foram comunicadas, omitindo nomes, tempos e lugares.
fls. 75 img. 149 – 6-3-1714 – Admoestação antes do libelo (n.º I, Tit. VIII, Liv. II do Regimento de 1640)
fls. 76 img. 151 – Libelo (Acusação). O réu disse que contestava por negação toda a acusação e queria que lhe fosse nomeado um defensor (Procurador).
fls. 80 img. 159 – 13-3-1704 – Juramento do Procurador, Licenciado Francisco de Quintanilha.
fls. 81 img. 161 – 13-3-1704 – Estância com o Procurador.
fls. 82 img. 163 – Traslado do libelo, que fora entregue ao Procurador do réu. No final deste, a fls 84 img. 167, este escreve as alegações da defesa e indica as testemunhas. A defesa tem dois artigos:
1 - O réu sempre foi bom católico frequentando a Igreja, ouvindo Missa nos dias de preceito, venerando as Imagens e recebendo os Sacramentos.
2 – O réu servia em muitas Irmandades: a de S. João em Serpa e a do mesmo Santo na Igreja de S. Julião; a do Espírito Santo em Mértola; a de N.ª Sr.ª do Amparo, em Serpa; a de N.ª Sr.ª da Esperança em Coimbra, o que fazia com muito dispêndio.
Indica oito testemunhas.
fls. 85 img. 169 – 13-3-1704 – Despacho recebendo a defesa.
Depoimentos das testemunhas de defesa
fls. 86 img. 171 – 15-3-1704 –
- P.e Francisco Ferreira Simões, Sacerdote do hábito de S. Pedro, residente na Rua Nova, de 29 anos. Conhece o réu há cerca de 8 anos, por ser seu condiscípulo na Filosofia e conviver com ele. Tem-no na conta de bom católico, confirma que o conteúdo do artigo 1.º “passa” na verdade excepto o de ver confessar-se o réu. Nada sabe do conteúdo do art.º 2.º.
- P.e Manuel da Costa, que foi Cura de S. Julião, de 44 anos – Disse que tem o réu na conta de bom católico, mas nada sabe sobre o conteúdo dos artigos da defesa.
- P.e Pedro Paulo de Araújo, Cura da Igreja de São Julião, de 35 anos – Conhece o réu há cerca de cinco anos, por o encontrar em casa do cunhado dele, Pedro Álvares. Porém, não tem conhecimentos suficientes para responder à 1.ª questão e nada sabe sobre a 2.ª.
- P.e Manuel Martins, Sacerdote do hábito de S. Pedro, residente em Lisboa, de 29 anos. – Conhece o réu há 8 ou 9 anos, por ser seu condiscípulo na Filosofia. Disse que no tempo em que lidava com ele “no exterior o tinha em boa conta e por verdadeiro católico”. Disse também que alguns domingos e dias santos via o réu em São Julião a ouvir Missa.
Não foram ouvidas as outras quatro testemunhas.
fls. 90 img. 179 – 7-4-1704 – Confissão
Heitor Dias da Paz dispôs-se a confessar. A sua confissão, porém, terá ficado bastante perto da verdade, mas muito longe da confissão que os Inquisidores pretendiam. Para os satisfazer, seria necessário que ele narrasse as pretensas situações constantes das trinta denúncias efectuadas contra ele! Em vez disso, vejamos o que ele contou.
Disse ele que, catorze anos antes, em Beja, onde a família morava, estava ele com seus pais, sua irmã Branca e sua avó materna Branca Rodrigues, viúva de José Cardoso Pereira (Processo n.º 2876, de Évora) e uma das pessoas adultas lhe disse para não comer, até que, pelo fim da tarde, seu pai lhe disse que já podia comer. Está convencido de que nesse dia fez, sem o saber então, um jejum judaico.
Que, doze anos antes, em Serpa, estavam os mesmos em casa e falaram em fazer o jejum do Dia Grande no mês de Setembro, o que de facto fizeram; mas, dada a sua pouca idade, não tem ideia que então se afastasse da Fé católica.
Pouco tempo depois fizeram em sua casa os mesmos outro jejum judaico e foi então, segundo pensa, que se apartou da Fé católica e passou para a crença na Lei de Moisés, fazendo jejuns judaicos com os ditos seus pais, e, depois de vir para Lisboa com a referida sua irmã.
Disso está agora muito arrependido e pede perdão.
Que há cerca de cinco anos, em Lisboa em casa de sua imã Berta Cardosa e com a outra sua imã Clara Maria da Paz, decidiram fazer um jejum judaico e se declararam como crentes na Lei de Moisés.
Que pouco depois, também seu cunhado Pedro Álvares, participou nos mesmos jejuns com ele e as ditas suas irmãs.
A confissão mereceu o crédito do Inquisidor e Notário, mas estava longe de ser completa segundo os critérios da Inquisição.
fls. 94 img. 189 – 21-8-1704 – Mais confissão
O processo ficou parado durante alguns meses. O réu pediu então audiência para fazer mais confissões, tendo já consciência que eram insuficientes as feitas em Abril.
Disse que cinco anos atrás, na cidade de Lisboa, em casa de Clara de Chaves casada com Martinho Mascarenhas, se achou com a mesma e com duas irmãs, Mariana de Chaves, solteira e Josefa de Valença, casada com Leandro Cardoso, ourives de ouro, e todos conta deram-se conta mutuamente da sua crença na Lei de Moisés para salvação de suas almas, mas não falaram em cerimónias nem “passaram” mais.
Disse mais que vindo ele de Serpa da romaria de S. Caetano que fica sete léguas, na companhia de Diogo da Costa (Pr. n.º 8685, de Évora), casado com Ana de Miranda e ainda de uma mulher chamada Isabel, filha de David Brandão, conversando pelo caminho dissera o Diogo da Costa a ele confitente e à dita Isabel (que vinha a cavalo na mesma besta em que ia o dito Diogo da Costa) que Cristo Senhor nosso não será o verdadeiro Messias, ao que ele confitente não respondeu coisa alguma. E mais não disse.
fls. 97 img. 195 – 26-8-1704 - Crença
Declarou que não tinha mais culpas que confessar.
Disse que foi há onze anos mais ou menos que se apartou da Fé Católica para abraçar a Lei de Moisés, tendo sido ensinado pelas pessoas que disse em suas confissões.
Não comunicou essa crença com outras pessoas nem fez mais cerimónias que as que referiu.
Disse que no tempo dos seus erros não cria no mistério da Santíssima Trindade.
Mas daí a pouco diz: ”sem embargo de que ele observava a Lei de Moisés, não deixava de crer no mistério da Santíssima Trindade”.
Disse que cria nos Sacramentos da Igreja e os julgava necessários para a salvação da sua alma.
Não sabia que era pecado crer na Lei de Moisés. Sem embargo de viver na dita Lei, não dava conta ao confessor, cuidando que não era pecado.
A crença na Lei de Moisés durou-lhe até haverá dois anos, em que teve conhecimento das Fé em Cristo Senhor nosso.
“Foi-lhe dito que suas confissões têm ainda algumas faltas e diminuições, encontros e inverosimilidades, quais são não declarar todas as pessoas com que há informação comunicara a crença da Lei de Moisés, e outrossim afirmar que no tempo de seus erros cria no mistério da Santíssima Trindade e em Cristo Senhor nosso, tendo-o por Deus verdadeiro, e que cria nos Sacramentos que o mesmo instituíra e que fazia as obras de cristão com boa tenção, tendo afirmado nesta Mesa em suas confissões que a crença dos ditos erros lhe durara até ao tempo em que iniciara a confissão das suas culpas e agora afirma que nunca tivera seus erros por pecado nem deles dera conta ao seu confessor e que a crença da Lei de Moisés lhe durara até haverá dois anos…”
Aqui temos de dar alguma razão aos Inquisidores: o rapaz estava a meter os pés pelas mãos…
No final da sessão da Crença, Heitor Dias da Paz recusou-se a assinar a respectiva acta, dizendo que não assinava “umas coisas desencontradas como eram as que se continham na dita sessão”.
Foi deixado na prisão mais uns meses, ficando parado o seu processo.
fls. 101 img. 203 – 16-4-1705 – O notário Jácome Esteves Nogueira certifica que nesta data, foi o réu chamado à mesa pelo Inquisidor Nuno da Cunha de Ataíde que lhe perguntou como se achava das suas queixas para o processo poder prosseguir. O réu respondeu que não sabia como se achava. Perguntado pela sua crença, “respondeu que ele crera e vivera muitos anos na Lei de Moisés, e de presente cria e vivia na mesma Lei, por entender que era a boa para a salvação da sua alma, e isto repetiu por quatro ou cinco vezes”.
fls. 103 img. 207 – 15-5-1705
Foi mandado vir à mesa para ser interrogado.
Disse que não tinha culpas que confessar, nem fazia caso das que se lhe dizia havia confessado. Sempre vivera na Lei de Moisés e nela queria morrer.
Que não cria no mistério da Santíssima Trindade, nem em Cristo Senhor nosso.
Esperava pelo Messias, que havia de ser quem quisesse o Senhor dos Céus.
Que a Lei de Moisés não só fora boa, mas que ainda agora era a verdadeira.
Que não queria crer em coisa alguma que pertencesse à Lei de Cristo.
Que recebia os Sacramentos da Igreja para não publicar a sua crença.
Que a sua vontade é declarar ser observante da Lei de Moisés, em que crê.
Que por observância da Lei de Moisés guardava e fazia os preceitos dela.
Que para salvação de sua alma, queria seguir a Lei de Moisés, sem ensino de pessoa alguma.
Recusou-se a assinar a acta deste interrogatório.
fls. 105 img. 211 – 15-5-1705 - Termo de curador (3.º)
Por impedimento do anterior, foi nomeado novo curador o Licenciado Manuel da Costa de Oliveira. Esta nomeação não tem sentido, porquanto o réu nesta altura já tinha mais de 25 anos, como se constata pela certidão de baptismo.
fls. 106 img 213 – 6-7-1705 –
Perguntado pelo Inquisidor Nuno da Cunha de Ataíde, declarou que não tem culpas que confessar.
Só quer crer na Lei de Moisés para salvar-se.
Só a lei de Moisés é verdadeira, a de Cristo é falsa.
Não queria ouvir ler as suas confissões, nem se lhe dava do que nelas estivesse escrito, porquanto, no que declarou e afirmou, era crer em Deus verdadeiro, uno sem ser trino.
Desde que teve entendimento, creu sempre na Lei de Moisés. Ninguém lhe ensinou a dita crença, tomou-a por sua vontade.
Que seus pais lhe não ensinaram a ter crença na Lei de Moisés e afirma isso por escrito. Basta declarar que a resolução de seguir essa crença tomou-a somente por sua livre vontade.
Que não é necessário declarar se foi instruído nos mistérios da Fé, nem se recebia os Sacramentos.
Que a sua vontade é crer na Lei de Moisés, o que agora declara e afirma.
Basta que o Deus verdadeiro o saiba se ele Réu observou os preceitos da Lei.
Que tem grande pesar de não os ter observado todos.
Mais uma vez se recusou a assinar a acta deste interrogatório.
fls. 108 A img. 219 – 10-9-1705
Perguntado pelo Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque, disse que ele Réu queria viver e morrer segundo a Lei de Moisés e que isto era o que tinha de afirmar nesta Mesa de todo o seu coração.
Disse que a Lei de Moisés não só foi boa, mas ainda agora o é, e esta é a que existe, e a em que ele Réu crê firmemente.
Disse que nenhumas pessoas lho afirmaram, e que não sabe se o leu em alguns livros; mas que ele Réu assim o entende; e que o Messias verdeiro ainda não veio ao Mundo, não obstante dizer-se-lhe ser Cristo o verdadeiro Messias e a 2.ª pessoa da Santíssima Trindade, o que ele não crê.
Disse que sabia muito bem que o negócio mais importante é o da salvação da alma; e que sabe que a pessoa está obrigada a seguir o que lhe dizem as pessoas doutas e de sã consciência.
Porém, não quer dar crédito ao que se lhe afirma nesta Mesa, por entender que ainda existe a Lei de Moisés.
Sabe que os Católicos entendem ser de Fé que a 2.ª pessoa da Santíssima Trindade veio ao mundo e encarnou, e que Cristo morreu para remir os homens e é o Messias verdadeiro.
Porém, ele Réu em nenhuma dessas coisas quer crer e tem por falso o mistério da Santíssima Trindade e a Encarnação do Verbo Eterno, e que só é verdadeira a Lei de Moisés em que ele Réu quer viver e morrer.
Desta vez assinou a acta, talvez porque o Inquisidor era outro.
fls. 111 img. 226 – 17-5-1705
Despacho dos Inquisidores para que o réu seja inquirido sobre a sua capacidade; que seja observado pelos médicos e que sejam perguntados sobre o assunto o Alcaide, guardas e companheiros que com ele estiveram no cárcere bem como os presos seus vizinhos e que para isso sejam chamadas à Mesa.
fls. 112 img. 227 – 18-5-1705
Certifica o Notário Jácome Esteves Nogueira: “Faço fé que, escrevendo várias sessões na Mesa que se fizeram ao Réu (…) me pareceu sempre estar em seu juízo e entendimento perfeito, e não padecer nele lesão alguma, sem embargo das teimas que por vezes tem em não querer assinar as ditas sessões, o que entendo procedia da raiva que concebia em responder às perguntas que se lhe faziam, mas contudo eram coerentes as respostas.”
fls. 115 img. 229 – 2-10-1705 –
Agostinho da Costa, Alcaide dos Secretos da Inquisição, de 68 anos – Alguns meses após a sua prisão, o réu fingiu-se vário e louco; por isso, os médicos mandaram-no sangrar e deram-lhe alguns medicamentos e, deixando o dito fingimento, tornou a falar a propósito como dantes, só deixando de comer e de beber alguns dias, dizendo que jejuava judaicamente, por ser observante da Lei de Moisés; dizia que cada um podia viver na Lei que quisesse e escolhesse; e continuou a fazer vários jejuns, como ele mesmo disse e seus companheiros José de Chaves Henriques (Pr. n.º 8433) e António Tavares (Pr. n.º 9112). Está continuadamente rezando os Salmos de David, sem Gloria Patri, de joelhos todo o tempo e com os olhos postos no tecto do cárcere e a cabeça coberta com uma ponta do capote. Faz muitas outras rezas em Latim e Português, oferecendo-as ao Deus todo poderoso para que acuda e se lembre do seu Povo, e o livre do cativeiro; e de ordinário ao jantar não come a ração, e só a pede para de noite que é quando come. E o que ele testemunha julga da capacidade do réu, é que ele a tem e juízo; e que a louquice com que no princípio se portou fora fingimento a fim de se declarar profitente da Lei de Moisés, como continuadamente declara.
Manuel Fernandes, Guarda dos Cárceres Secretos, de 57 anos – Disse que depois de alguns meses da sua prisão, o réu se fingiu doido, por cuja causa o mandaram sangrar os médicos e lhe aplicaram alguns remédios e passado algum tempo, deixou o dito fingimento e se tornou à capacidade que de antes tinha; de ordinário, está em oração posto de joelhos, nomeando Abraão, Isaac e Jacob, e parte da Lei Velha, de que agora formalmente se não lembra. Pede a Deus que acuda ao seu povo de Israel e também ouviu ao réu por uma ou mais vezes que vivia na Lei de Moisés. Entende que o réu se fingiu doido, por ter feito nesta Mesa algumas declarações de que se veio a arrepender e depois usava do dito fingimento para melhor as desculpar. Sempre teve e tem o Réu por pessoa de bom juízo e capacidade.
Bartolomeu Rodrigues, Guarda dos Cárceres Secretos, de 40 anos – Disse que passados alguns meses depois da sua prisão, o réu fingiu estar doido e louco de tal forma que teve a assistência de médicos com sangria e remédios e ele testemunha se persuadiu então ser verdadeira a louquice. Depois conheceu pelo decurso do tempo os fingimentos e embustes do réu e que a louquice era afectada. E indo uma noite a levar-lhe o jantar, ele disse que não comia porque fazia jejum judaico naquele dia; e que se ele estava preso por judeu, queria guardar e observar a Lei de Moisés. Disse que a sua louquice era fingimento; e ordinariamente quando lhe vão levar alguma coisa de comer, o vêem estar ao canto da casa salmeando; e muitas vezes, para se não divertir da oração, não vem tomar o comer e lho tomam os companheiros; e há tempos a esta parte, não aceita coisa alguma feita na cozinha, e a ração a pede em queijo e frutas.
José Moreira, Guarda dos Cárceres Secretos, de 34 anos – Disse que quando viera para guarda da Inquisição, encontrara Heitor Dias da Paz, com uma epicundria, e perguntando aos guardas seus companheiros que doença e queixa era a do réu, os mesmos lhe responderam que era fingimento e afectação de louquice o que ele no decurso do tempo concluiu ser assim pelo que viu, observou e vigiou no dito Heitor Dias da Paz. Viu o réu no cárcere posto de joelhos em oração, virado para a parede, rezando os Salmos de David sem Gloria Patri, a cabeça coberta com a ponta do capote. Não aceita o réu mantimento guisado e toma a ração em queijo e fruta. Ouviu aos companheiros do réu que ele deixa de comer e beber dias continuados e só come à noite. Que o réu dissera a um companheiro do cárcere que havia de dizer que estava doido em resposta a o mesmo estranhar fazer tais jejuns, sem medo de que a Mesa o castigasse rigorosamente.
João Álvares, Guarda dos Cárceres Secretos, de 41 anos – Disse que quando o réu veio para a prisão demonstrava juízo e capacidade; depois, começou a fingir estar doido. Examinou-o o Dr. Manuel da Costa e disse que lhe não achava coisa por que conhecesse estava doido; no entanto mandou sangrá-lo algumas vezes e deu-lhe alguns remédios mas não aqueles que se costumam dar aos doidos. Depois, em diversas ocasiões, deixou de comer e querendo o Alcaide e os guardas obriga-lo a comer, ele disse que comeria quando quisesse. Entenderam então eles que ele deixava de comer por fazer jejuns judaicos, sendo observante da Lei de Moisés. Tendo o réu por companheiro Diogo Nunes Brandão, médico (auto da fé de 19-11-1704 – não aparece o processo), e outos de que não lembra o nome, diziam que ele não era louco mas fingia sê-lo. Depois que foi para a companhia de José de Chaves Henriques, começou o réu a jejuar judaicamente alguns dias e em algumas ocasiões a estar sem comer três dias continuados; e desde Outubro de 1704 até ao presente, viu ele testemunha o réu repetir em latim os salmos de David sem Gloria Patri e estar em oração ao canto do cárcere virado para a parede, repetindo louvores ao Senhor, e que lhe ouviu repetir muitas vezes, pedindo ao mesmo Senhor que o livrasse a ele, a seu Pai, irmãs e mais família, amigos e toda a nação. Não quer aceitar a ração a jantar, e a reduz a queijo, frutas, amêndoas, doce e outros géneros semelhantes; e pelo que sabe, julga o réu em seu juízo e entendimento perfeito.
fls. 124 img. 251 – 13-10-1705
Manuel da Costa Pereira, Médico da família de Sua Majestade e dos Cáceres Secretos da Inquisição, de 45 anos – Disse que o réu Heitor Dias da Paz tem todo o juízo e capacidade, sem nele mostrar lesão alguma, e que este lhe respondeu com toda a advertência nas matérias em que lhe falou, com respostas muito adequadas às perguntas que lhe fez. Perguntando-lhe porque não comia, respondeu ele que o fazia por jejuar ao modo judaico.
Manuel de Pina Coutinho, Médico dos Cárceres da Inquisição, de 63 anos – Depoimento igual ao anterior. Perguntando ainda ao réu se tinha alguma queixa na saúde, no estômago ou na cabeça, ele lhe respondeu negativamente. Entende que o réu tem todo o juízo e a capacidade necessária.
fls. 128 – img. 259 – 15-10-1705
Manuel Alves Sousa, mercador, familiar do Santo Ofício, de 37 anos – Disse que Heitor Dias da Paz é pessoa de bom juízo e capacidade, sisudo e quieto e sempre o conheceu assim e o ouviu dizer e nunca ouviu nem viu que ele tivesse lesão alguma no entendimento.
António Rodrigues de Aguiar, mercador, familiar do Santo Ofício, de 38 anos –Depoimento totalmente igual ao anterior.
Manuel Mendes Nemão, mercador, familiar do Santo Ofício, de 34 anos – Depoimento totalmente igual aos anteriores
Pedro Dias, oficial de sirgueiro, natural de Agilde termo de Celorico de Basto e residente em Lisboa, junto à Igreja de São Julião, de 57 anos – Conhece o réu há 10 anos, por serem vizinhos. Depoimento totalmente igual aos anteriores.
fls. 132 – img. 267 – 16-10-1705
Manuel Franco, mercador, residente em Lisboa, de 42 anos (Pr. n.º 2795) – Disse que esteve na mesma cela que o réu, juntamente com José de Chaves Henriques (Pr. n.º 8433) e Álvaro Henriques Ferreira (Pr. n.º 5334), da Covilhã; e já o conhecia há cerca de sete anos, antes de estarem presos. Disse que o réu tem bom juízo e capacidade que sempre lhe reconheceu antes de pois de preso; que, no mês e meio em que conviveram na cela, reparou que o réu não lhe queria falar nem aos demais companheiros, e no decurso desse tempo nunca o viu jantar, e só à noite é que comia coisas que não fossem ao lume, como eram pão, queijo e frutas do que ele testemunha presumiu que ele jejuava judaicamente; e ouviu o réu à noite, umas vezes com as mãos levantadas outras com as mãos postas uma contra a outra, dizendo que oferecia aquele jejum e os mais que fizesse ao Deus do Céu, fazendo todos os dias posto de joelhos na mesma forma, três vezes oração, uma pela manhã às 9 horas pouco mais ou menos, de tarde às 3 e ás 5, em que repetia os Salmos de David, sem Gloria Patri, e outras orações judaicas. Isto viu fazer ao dito Heitor Dias da Paz, estando em seu juízo e capacidade na forma que tem dito.
José de Chaves Henriques, advogado, residente em Lisboa, de 36 anos (Pr. n.º 8433) – Foi companheiro do réu no cárcere da Inquisição entre 10 e 11 meses e foi ali que o conheceu. Ao princípio entendeu que ele era maníaco, por o ver fazer diversas caras e ficar deitado na cama dois e três dias com a cabeça coberta sem se querer levantar. Depois percebeu que ele o fazia maliciosamente. Depois, quando ele comia apenas de 24 em 24 horas, coisas que não fossem ao lume, disse-lhe ele testemunha que visse o que fazia pois podia prejudicar-se com um tal comportamento. Respondeu-lhe o réu que fazia aquilo não como cerimónia judaica, mas por um impulso que o vencia per modum tentationis. Persistiu nisso pelo espaço de seis meses, até ao final de Abril de 1705, jejuando em muitos dias na dita forma. Depois disso, declarou-se o réu profitente da Lei de Moisés e que nela queria viver e morrer. Fez assim jejuns judaicos desde o mês de Abril até 20 de Agosto. Em uma ocasião, deixou de comer e beber durante seis dias. De 3 de Junho passado até 15 de Julho último, em que estiveram ambos sós, fazia os mesmos jejuns, recitava os salmos de David e oferecia-os ao Deus do Céu com várias palavras, entre as quais dizia que Deus o fizesse na Lei de Moisés tão constante como Abraão, tão penitente como David e tão paciente como Job. Concluiu que ele tem todo o juízo e capacidade e se ao princípio se fingia maníaco era por maldade a ver se podia escusar-se de ser observante e profitente da Lei de Moisés.
fls. 138 img. 279 – 31-10-1705
António Tavares da Costa, residente em Lisboa, preso nos cárceres da Inquisição (Pr. n.º 9112), de 28 anos – É companheiro de cela do réu, desde há dois meses e meio. Disse que o réu tem bom juízo e capacidade e por tal o julga e tem, respondendo com palavras concernentes às perguntas que ele testemunha lhe faz. Diz muitas e repetidas vezes e quase continuadamente que é observante e profitente da Lei de Moisés e nela há-de viver até que o metam em uma fogueira. Antonio Tavares da Costa disse-lhe do mal que ele obrava, que se reduza à Fé de Cristo Senhor Nosso, vindo confessar as suas culpas nesta Mesa, pois de outro modo o hão-de queimar. Ele respondeu o mesmo: que há-de ser judeu até que o ponham numa fogueira. Durante o dia, reza os Salmos de David sem Gloria Patri no fim e outras orações judaicas, estando de joelhos virado para a parede. Não come senão de 3 em 3 dias, e algumas vezes de 24 em 24 horas, coisas que não foram ao lume, e assim não aceita do Alcaide e dos guardas mais do que pão, queijo, fruta e doce, e oferecendo-lhe ele testemunha o seu jantar como carneiro a coisas semelhantes, ele lho não quis nunca comer. E há dias, perguntando-lhe o médico que o viera ver, se tinha fastio, ele disse que não tinha fastio e que não comia porque jejuava judaicamente. Que ele réu cria em Deus e não adorava ídolos, referindo-se a uma cruz que ele testemunha fez na parede e a uma Senhora da Graça que ele testemunha debuchou, e um Santo António. Que o réu passa a maior parte do dia em oração.
fls. 141-A img. 287 – 30-10-1705
Em Informação ao Conselho Geral os Inquisidores sugerem que o réu seja doutrinado por alguns religiosos doutos, a ver se muda de opinião sobre a sua vinculação à fé judaica.
Na mesma data, despacha o Conselho Geral no sentido de serem chamados para o efeito o P.e Francisco de Santa Maria, Geral dos Loios, o P.e Frei João de São Domingos e os Padres qualificadores João Ribeiro e Francisco Pedroso.
Pessoas doutas com que o réu esteve
fls. 143 img. 291 – 2-11-1705
P.e Doutor João Ribeiro, da Companhia de Jesus – Por ordem desta Mesa, esteve com o réu. Quis persuadi-lo ao verdadeiro conhecimento da nossa Santa Fé Católica. Porém perseverava o réu na sua obstinação, dizendo que queria viver e morrer na Lei de Moisés, por ser ali seu gosto. Que não havia de crer em coisa alguma que neste Tribunal se lhe aconselhasse, nem os Padres da Companhia. Disse que só pedia a Deus o fizesse verdadeiro observante da Lei de Moisés. Disse ainda a testemunha que o réu é de juízo e capacidade sem nele ter lesão alguma e a respeito da sua ciência que sabe pouco mais que a língua Latina.
fls. 145 img. 295 – 10-11-1705
P.e Francisco Pedroso, Religioso da Congregação de São Filipe Neri, de 55 anos – Disse que procurou persuadir o réu ao conhecimento da Fé Católica. Este disse-lhe que seguia a Lei de Moisés porque queria e por ser inspiração de Deus e que nela queria viver e morrer. Instando-lhe ele que declarasse quais os seus fundamentos para seguir a Lei de Moisés, não declarou quaisquer fundamentos, persistindo nos ditos erros e em sua obstinação. Perguntando-lhe se cria no mistério da S.ma Trindade, respondeu que não; e argumentando-lhe com o Salmo 109 de David “Dixit Dominus Domino meo” e com o 2.º Salmo “Quare fremuerunt gentes” nos quais se faz distinção das duas Pessoas Divinas, Pai e Filho, negou primeiramente ser o dito Salmo “Dixit Dominus” de David, e mostrando-se-lhe na Escritura, disse que não cria naquela Escritura, por ser do Santo Ofício. Lembrando-lhe o dito Padre o perigo a que se expunha e que acabaria numa fogueira, respondeu que não havia de fugir dela e não quis mais argumentar.
Disse que o preso é pessoa de bom juízo e capacidade, sem que tenha lesão alguma no entendimento. e o juízo que formou é que está o dito preso sumamente cego e obstinado em seguir os ditos erros.
fls. 147 img. 299 – 11-11-1705
P.e Frei João de São Domingos, Religioso do mesmo Santo, e Qualificador do Santo Ofício, de 58 anos – Esteve com o réu e procurou persuadi-lo ao conhecimento da Fé Católica. Respondeu o réu que cria e queria morrer na Lei de Moisés, sem querer dar razão alguma ou fundamento por que a seguia. Disse que se estavam verificadas as profecias acerca da pessoa de Cristo, mas que contudo não queria crer no mesmo Cristo.
Disse que o preso é pessoa de bom juízo e capacidade, sem que tenha lesão alguma no entendimento, só muito obstinado na sua cegueira tanto assim que o mesmo referiu que estando com outro Padre, lhe argumentara este com o texto do Salmo de David “Dixit Dominus” e que dizendo o Salmo no pretérito dixit, não podia David afirmar que o Senhor dissera a seu Senhor se sentasse à sua direita, porque o Verbo Divino como diz a Fé ab eterno estava in Sinu Patris; e explicando-lhe ele o sentido que o texto tinha, a saber que o Verbo Divino ainda que ab eterno estivesse no seio do seu Eterno Pai, contudo feito homem havia de ser in tempore; no que mostrou o dito preso entendimento capaz de perceber se quisesse dar assento ao que se lhe dizia.
fls. 149 v img. 304 –“Certidão para que conste não se reduzir o Réu, acomodando-se com a doutrina de pessoas doutas e que persiste na crença da Lei de Moisés”
O Notário Jácome Esteves Nogueira certifica que apesar dos esforços dos padres que usaram de toda a “diligência para o encaminharem à verdade dela (da Fé Católica) com razões e exemplos morais, não puderam conseguir a sua redução, porque obstinadamente afirmou sempre querer viver e morrer na Lei de Moisés, por ser só a boa para a salvação das almas, e no decurso do tempo que o dito Réu esteve com os ditos Padres, lhes fez algumas perguntas sobre os Profetas, mas nunca se satisfez com suas respostas; e por eu assistir com os ditos Padres fiz e assinei a presente de mando dos Senhores Inquisidores”.
fls. 150 img. 305 3-12-1705
Padre Doutor Francisco de Santa Maria, Qualificador do Santo Ofício, Religioso da Congregação de São João Evangelista, de 52 anos – Esteve com o réu procurou persuadi-lo ao verdadeiro conhecimento da Fé Católica, e argumentando-lhe com o texto “non auferetur sceptrum de Juda”, pelo qual consta já haver vindo o Messias, respondeu u réu que o ceptro não significava Rei; instando-lhe o Padre que o que dizia era contra o literal do texto, que expressamente o declarava, tornou o réu a dizer contra o literal do texto e que se entendia de governador ou mestre. Disse que a certa altura o réu deixou de lhe responder e dizia apenas que cria e vivia na Lei de Moisés o que repetiu diversas vezes com obstinação e pertinácia.
Disse que o réu lhe pareceu pessoa de bom juízo e capacidade, sem lesão alguma no entendimento.
fls. 152 img. 309 – 3-12-1705
O Notário lavra certidão idêntica à de fls. 150, em relação à diligência do Padre Francisco de Santa Maria.
fls. 153 img. 311 – 4-12-1705
O réu assinou um termo em que declarou não querer estar com mais Padres, pessoas doutas que o quisessem elucidar sobre a Fé Católica, pois quer viver na Lei de Moisés e nela morrer.
fls. 155 img. 315 – 11-12-1705 – Exame
Disse o réu que esteve com os religiosos que lhe foram mandados, mas não admitiu as suas persuasões nem deu crédito a elas e declara que quer permanecer na crença da Lei de Moisés que sempre observou e em que quer viver e morrer. Sabe que, como cristão baptizado, tinha obrigação de crer na Fé Católica e obedecer aos Ministros dela, seguindo a doutrina de pessoas religiosas e doutas; mas ele é judeu e como tal é observante da Lei de Moisés que considera a mais certa, segura e verdadeira para a salvação da alma. Não quer estar com mais pessoas religiosas doutas porque não tem dúvidas na sua crença da Lei de Moisés.
fls. 157 img. 319 – 14-12-1705 - Crença e sessão in specie
Os Inquisidores repetem ao réu pela enésima vez que será condenado se persistir na sua posição. Mas ele não arreda pé.
Diz que sem embargo de se expor a algum perigo, o não receia, porque crê na Lei de Moisés em que espera salvar-se. Que lhe têm feito muitas admoestações, declarando-lhe o risco a que se expõe, mas sem embargo disso, quer viver e morrer na Lei de Moisés. Disse ser verdade que o mandaram estar com pessoas doutas que procuraram reduzi-lo, com promessa de misericórdia, e nada foi bastante para apartá-lo da crença na Lei de Moisés, em que espera salvar-se. Que não tem dúvidas nem questões a propor a pessoas doutas, porque a Lei que segue dada por Deus a Moisés as não admite nem pode admitir com fundamento na sua crença e observância, e assim nela espera viver e morrer, e salvar-se.
fls. 161 img. 327 – 15-12-1705 – Admoestação antes do libelo
fls. 162 img 329 – Libelo – Transcrição das denúncias das testemunhas. Perguntado se é verdade o que consta do libelo “ Disse que em quanto ao que se dizia no dito libelo pelo que toca à sua primeira confissão e no haver afirmado que cria e vivia na Lei de Moisés, e nela queria morrer, passava na verdade, e o era também o haver dito se tinha declarado com pessoas que se continham na dita sua confissão, e elas com ele declarante, e só não era verdade o haver dito nas suas confissões se arrependia de haver vivido na dita crença da Lei de Moisés, porque nela cria e vivia e esperava morrer, e não na de Cristo Senhor nosso em que entende não haver salvação e assim requeria que se retirassem aquelas decarações.”
Perguntado se tem defesa com que vir, e se queria estar com um Procurador. Respondeu negativamente às duas questões, mas o Inquisidor tomou a iniciativa de lhe nomear um defensor.
fls. 165 v img. 335 – 10-2-1706 – Estância com o Procurador Licenciado Francisco de Quintanilha.
fls. 166 img. 327 – Traslado do libelo, entregue ao Procurador. No final (fls. 168 v img. 342), o Procurador declara em nome do réu, que não tem defesa com que vir nem contesta o libelo, “e nenhuma outra defesa quer dar senão que persevera no que tem dito e afirmado ser profitente da Lei de Moisés”.
fls. 170 img. 345 – 27-2-1706 - Citação para “formar interrogatórios”, isto é indicar as questões às testemunhas que vão ser reperguntadas.
fls. 171 img. 347 – 1-3-1706 – Estância com o Procurador
fls. 172 img. 349 – Cópia da prova da justiça- No final , o Procurador em nome do réu declara que este não quer “formar interrogatórios e que sem eles quer ser sentenciado”.
fls. 177 img. 359 – Os Inquisidores determinam que, embora o réu não tenha vindo com interrogatórios “ex officio se lhe façam, visto o perigoso estado em que se acha o mesmo réu, para o que sejam as testemunhas chamadas à mesa. Lisboa, em Mesa, 1 de Março de 1706, a) João de Sousa de Castelo Branco. a) Paulo Afonso de Albuquerque”.
fls. 178 img. 361 – Perguntas que os Inquisidores determinaram fossem feitas às testemunhas:
“1- Em que tempo, parte e lugar se declararam com o Réu, e que pessoas estavam presentes.
2 – Se viram que o Réu fizesse alguma cerimónia judaica e em que parte e se disse o Réu por que tenção a faziam.
3 – Que confiança tinham com o Réu, para se haverem de declarar em matéria de tanta consideração, e que tempo havia que entre eles havia esta confiança.
4 – Se são inimigos do Réu e juraram contra ele por ódio ou má vontade que lhe tenham, ou por descargo de sua consciência.”
Foram enviadas as comissões (deprecadas) seguintes:
- para Santarém , para ser interrogada Inês Mendes;
- para Vila Franca de Xira, para ouvir as irmãs Guiomar Maria Rodrigues e Brites da Rosa ou Rodrigues;
- para Beja, a fim de serem interrogados Francisco Lopes Henriques e Maria Antónia.
- para Évora, para ser interrogado Victoriano Galvão
Como é evidente todas as testemunhas confirmaram os elementos que constavam da sua confissão e disseram que não denunciaram o réu por ódio ou má vontade mas sim por descargo da sua consciência. No entanto as reperguntas alongam-se por 183 páginas.
Reperguntas:
fls. 179 img. 363 – 2-3-1706 - Branca Cardosa
fls. 181 img. 367 – Leonor Dias Henriques
fls. 184 img. 373 – Francisco de Morais Taveira
fls. 187 img. 379 – Pedro Álvares
fls. 190 v. img. 386 – 3-3-1706 – Clara Maria da Paz
fls. 192 img. 391 – 4-3-1706 – Josefa de Valença
fls. 194 img. 395 – Mariana de Chaves
fls. 196 img. 399 – Clara Rodrigues de Chaves ou Clara Rodrigues de Valença
fls. 198 img. 403 – Isabel Cardosa
fls. 200 img. 407 – José de Chaves
fls. 202 img. 411 – Manuel de Samuda Leão
fls. 204 v img. 416 – Guiomar Sanches
fls. 206 v. img. 420 – José de Macedo Correia
fls. 209 img. 425 – Manuel Franco
fls. 211 v img. 430 – Maria Soares Pereira
fls. 213 v img. 434 – Manuel Jorge Arroja
fls. 216 img. 439 – Francisco Cardoso Pereira
fls. 218 img. 443 – 6-3-1706 – Diogo Nunes Ribeiro
fls. 220 img. 447 – Diogo Ribeiro de Crasto
fls. 222 img. 451 - 8-3-1706 – João Esteves Henriques
fls. 225 img. 457 – 8-4-1706 – Francisco de Sá e Mesquita
fls. 228 img. 463 – Retorno da comissão enviada para Santarém para interrogar Inês Mendes
fls. 238 img. 483 – Retorno da comissão enviada para Vila Franca de Xira para interrogar Guiomar Maria Rodrigues e Brites da Rosa ou Rodrigues.
fls. 249 img. 509 – Retorno da comissão enviada para Beja para interrogar Francisco Lopes Henriques e Maria Antónia
fls. 260 img. 533 – Retorno da comissão enviada para Évora para interrogar Victoriano Galvão.
fls. 265 img. 543 –
2-6-1706 – Requerimento do Promotor antes da publicação da prova da justiça
7-6-1706 – Admoestação antes da publicação
fls. 266 img. 545 – Publicação da prova da justiça – 27 testemunhos
Perguntado ao réu se era verdade o que se dizia na publicação “Disse que o contido na dita publicação enquanto contestava pela matéria de suas confissões, passava na verdade porque ele viveu e vive na crença da Lei de Moisés; e enquanto a ter contraditas com que vir as não tem e ainda que as tivesse não quer usar delas, e só quer crer, viver e morrer na Lei de Moisés, em que espera salvar-se, sem embargo do que foi mandado estar com o seu Procurador e por ele dissesse o que lhe parecesse…”
fls. 273 v img. 560 – 7-6-1706 – Estância com o Procurador
fls. 274 img. 561 – Traslado da prova da justiça entregue ao Procurador. No final do texto este escreve que o réu nem sequer quer saber onde as testemunhas lhe dão as culpas. Não quer apresentar contraditas, não quer dizer nem alegar nada.
fls. 279 img. 571 – Os Inquisidores dão o seguinte despacho:
“Visto como estando com seu Procurador, o Réu, Heitor Dias da Paz, para lhe formar artigos de contraditas, e não quisesse vir com elas, o lançamos e havemos por lançado das com que pudesse vir. Corra este processo seus termos ordinários. Lisboa, em mesa, 7 de Junho de 1706. a) João de Sousa de Castelo Branco. a) Paulo Afonso de Albuquerque”
fls. 280, img. 573 – 15-6-1706 –
Padre Doutor Francisco de Santa Maria, Superior Geral da Congregação de São João Evangelista e Qualificador do Santo Ofício, de 52 anos – Perguntado se esteve de novo com o réu, disse que estivera com o réu pela segunda vez para falar no tocante à sua salvação e crença e procurou reduzi-lo ao conhecimento da fé católica. Que lhe argumentou com a profecia de Daniel que disse que o verdadeiro Messias e o seu reino principiariam depois da destruição dos quatro impérios. Que o réu respondeu que os quatro impérios não estavam acabados, porque perdurava o Pontífice em Roma que era a cabeça da idolatria. Disse que o Messias ainda não tinha vindo e que Cristo Senhor Nosso era o anti-Cristo.
Perguntado que ideia tem do juízo e capacidade do ré e se tem alguma lesão no entendimento, “Disse que pelo que o dito preso diz e responde às perguntas que se lhe fazem, entende que tem todo o juízo e capacidade, só muita tenacidade na sua cegueira, e isto é o que tinha que depor.”
fls. 282 img. 577 – 15-6-1706 - O notário Manuel Rodrigues Ramos, que assistiu ao colóquio, confirma as declarações do Padre e anota que o réu disse que o Messias ainda não era vindo e que cria na Lei de Moisés em que havia de viver e morrer.
fls. 283 img. 579 – 18-6-1706 –
P.e Francisco Pedroso, da Congregação de S. Francisco de Néri, Qualificador do Santo Ofício, de 55 anos – Disse que falou com o réu, com quem já tinha falado noutra ocasião, procurando reduzi-lo ao conhecimento da Fé Católica. Argumentou com diversos textos do Antigo e do Novo Testamento . O réu, ao princípio não quis responder; depois disse que não queria argumentar, que cria na palavra de Deus, a qual dizia que Cristo não era vindo ao Mundo, nem o verdadeiro Messias. Acrescentou que ele via a Deus com os olhos do corpo assim como com os da alma e outros disparates semelhantes. Disse que ia muito bem na Lei de Moisés que Cristo Senhor nosso não era Cristo, mas anti-Cristo, e que neste Tribunal tudo eram tentações que lhe faziam e outros mais disparates.
Perguntado que ideia tem do juízo e capacidade do ré e se tem alguma lesão no entendimento, disse, pelo que observou no dito preso, que o mesmo tem juízo e capacidade e só muita obstinação e cegueira nos seus erros.
fls. 286 img. 585 - 23-6-1706
P.e Fr. João de São Domingos, Qualificador do Santo Ofício, de 58 anos – Disse que por ordem da Mesa esteve de novo com o réu, procurando persuadi-lo ao conhecimento da Fé. Falando-lhe no mistério da Santíssima Trindade, disse-lhe o réu que não cria no dito mistério. A testemunha arguiu com diversos textos da Bíblia, mas o réu disse que só aquilo em que ele cria é que era verdade e não queria crer em nenhuma outra coisa. Repetiu depois o réu várias profecias com as quais queria demonstrar que o Messias ainda havia de vir, dando diversa inteligência às palavras, que tudo lhe demonstrou ao contrário, sem o réu nunca se sujeitar.
Perguntado que ideia tem do juízo e capacidade do ré e se tem alguma lesão no entendimento, disse que o preso tem todo o juízo e capacidade, e só mostra ter muita cegueira, dureza e malícia.
fls. 290 img. 593 – 25-6-1706
P.e Doutor João Ribeiro, da Companhia de Jesus, Qualificador do Santo Ofício, de 59 anos – Disse que por ordem da Mesa, esteve com o Heitor Dias da Paz, procurando encaminhá-lo ao conhecimento da fé católica com razões eficazes e argumentos da Sagrada Escritura. Para isso, fundamentou-se nas “hebdómadas de Daniel, mostrando delas ser já vindo o Messias, e que este fora Cristo Senhor Nosso, por serem já acabadas há muitos séculos as ditas hebdómadas, ao que o mesmo respondeu que acabadas as ditas hebdómadas, quem viera não fora Cristo Senhor Nosso, se não o anti-Cristo e que o verdadeiro Messias havia somente de vir no fim do Mundo como Capitão glorioso e então havia de reedificar a Cidade de Jerusalém, e desfazendo-lhe o dito erro assim com os textos da Escritura, como com razões congruentes, vendo-se convencido, se deixava ficar na sua obstinação sem responder palavras, abominando muito o quererem-lhe persuadir a verdade da Lei Católica, dizendo que o maior tormento que tinha era todas as vezes que o chamam para lhe fazerem semelhantes exortações e no decurso do tempo que esteve com o dito preso teve com o mesmo várias práticas em ordem à sua redução, que a sua cegueira, miséria e obstinação lhe não quis nunca admitir.”
Perguntado que ideia tem do juízo e capacidade do ré e se tem alguma lesão no entendimento, “disse que o dito preso é de juízo e capacidade e de alguma agudeza no entendimento, e somente adicto e amarrado cegamente ao seu erro, que o de ser profitente da Lei de Moisés, de que entende só se poderá tirar com um auxílio muito eficaz e, pelo que mostra, promete poucas esperanças de se reduzir.”
fls. 292 img. 597 - 25-6-1706
O Notário Manuel Rodrigues Ramos certifica “que estando de ordem dos Senhores Inquisidores em a Terceira Casa das audiências da mesma o Padre Doutor João Ribeiro, da Companhia de Jesus, Qualificador do Santo Ofício, com o Réu Heitor Dias da Paz, que dou fé ser o mesmo conhecido nestes autos, para efeito de o reduzir à nossa Santa Fé Católica, e fazendo toda a diligência para o encaminhar à verdade dela com razões e textos da Sagrada Escritura sobre a vinda do Messias, e ser este Cristo Senhor Nosso, o que o Réu não quis admitir afirmando não ter ainda vindo, e que havia de vir no fim do mundo como Capitão glorioso somente, e que queria viver e morrer na Lei de Moisés, sem que o dito Padre pudesse reduzir ao dito Réu a Crença da Lei de Cristo Senhor Nosso, e porque eu assisti com o dito Padre, fiz e assinei o presente, de mandado dos ditos Senhores Inquisidores. Lisboa, no S.ao Ofício 25 de Junho de 1706, a) Manuel Rodrigues Ramos.”
fls. 293 img. 599 – 27-6-1706 - 1.ª sessão apertada (n.º I, Tit. XI, Liv. II do Regimento de 1640)
Perguntado se pensou nas suas culpas, no perigoso estado em que se encontra a sua causa e se não está disposto a dizer de todas as pessoas com quem se declarou como crente na Lei de Moisés, “disse que a esta pergunta não tinha outra nenhuma coisa que dizer mais do que, cria e vivia na Lei de Moisés e nela esperava morrer, porque entende firmemente que só nela há salvação e que nesta certeza importa mui pouco o perigo em que põem ou pode pôr a sua pessoa e vida.”
Reconhece que foi por muitas vezes admoestado para seguir a lei de Cristo. Que com ele estiveram por diversas vezes pessoas doutas que tentaram reduzi-lo. Mas as razões e fundamentos com que os ditos Padres o quiseram persuadir eram falsas, por serem contra a observância da Lei de Moisés. Disse que os fundamentos que tinha para seguir a Lei de Moisés são tão eficazes e certos, fundados na Escritura Sagrada, que não tem para ele dúvida alguma nem razão que lhos possa desfazer; e como vive nesta certeza, que escusa de os repetir.
“Disse que não tinha para que estar com mais Religiosos, porque na matéria da crença que havia de seguir, estava desenganado; e que não haveria fundamento algum com que o pudessem despersuadir de seguir a Lei de Moisés em que espera salvar-se”.
fls. 299, img. 611 – 30-6-1706 – 2.ª sessão apertada
Perguntado se não quer acabar as suas confissões, abandonar a crença na Lei de Moisés, assentando na Lei de Cristo Senhor Nosso para ser tratado com misericórdia, disse que não queria a misericórdia desta Mesa e só a do Deus de Abraão, Isaac e Jacob e viver e morrer na Lei de Moisés em que só há salvação para a alma. Perguntado se sabe o estado em que está o seu processo e causa, “disse que a ele lhe não importava coisa alguma o saber o estado em que se achava o seu Processo, e Causa, e que em qualquer estado que ele estivesse lhe importava pouco, sendo que na última sessão que com ele se teve, se lhe disse que estava mui arriscado, e ele declarante em perigoso estado, e que o esteja se lhe não dá nada, porque só quer e pretende dar a vida por Deus, confessando e protestando crer, viver e morrer na Lei de Moisés em que só espera salvar-se”. Sendo-lhe perguntado se reconhece que, vivendo no meio de católicos, tem de ser castigado pelas suas ideias, “disse que qualquer processo que se lhe forme, ainda que se lhe arrisque a sua causa e vida, importa mui pouco, contanto que ele a dê pelo Deus de Abraão, Isaac e Jacob, que vale o mesmo que o de Moisés, crendo, vivendo na Lei do mesmo Senhor, porque ele de presente não há outra alguma”. Perguntando-lhe se sabe que, sendo ele habitante deste Reino onde foi baptizado, tem obrigação de professar a fé católica e que o Santo Ofício não persegue os judeus de sinal que vêm de fora e não são baptizados “disse que ele muito bem sabe que vindo a este Reino Judeus de sinal que professam a Lei de Moisés, não sendo baptizados, o Santo Ofício não entende com eles, nem os castiga, nem os obriga a se baptizarem, e pelo contrário aqueles que são baptizados que professam a Lei de Moisés, os relaxa o Santo Ofício à Justiça secular, para os haver de queimar, porém que a ele se lhe não dá de que lhe suceda o mesmo, e de que morra queimado contanto que seja profitente da Lei de Moisés que professa e em que espera morrer.” Afirmou ainda que as admoestações que lhe têm feito na Mesa, bem como dos religiosos que com ele falaram lhe não fizeram fruto algum nem o podiam fazer. Perguntado se tem alguma pessoa douta (que professe a Fé Católica) com quem ele esteja interessado em conversar, que o Santo Ofício a mandaria chamar “Disse que ele declarante, como não tinha por erro a crença da Lei de Moisés, que professa e segue, lhe não era necessário estar com pessoas doutas, nem o estivera para o dito efeito com alguma que tivesse sua confidente, porque está certo e firme, sem que a isso se lhe ofereça dúvida alguma de que a Lei de Moisés é só a boa para a salvação da alma e nela professa viver e morrer e que assim são escusadas diligências algumas que se possam encaminhar à redução que esta Mesa pretende dele, porque está firme em ser profitente da Lei de Moisés, de que nenhuma diligência por maior que seja o há-de tirar ou despersuadir.”
fls.304 v img. 622 – 22-7-1706 - O Notário Manuel Rodrigues Ramos dá o processo por concluso.
fls. 305 img. 623 – 22-7-1706 - Visto da Mesa
O relator, Paulo Afonso de Albuquerque, estava nitidamente desorientado para redigir o relatório da reunião. É que o réu, ao tempo que se confessava crente na Lei de Moisés, não havia confirmado as denúncias que tinham sido feitas com eles, apenas uma pequena parte respeitante à sua família chegada: “havendo confessado nesta mesa suas culpas com mostras de arrependimento, sendo a sua confissão mui conforme a informação da justiça, por que havia sido preso e acusado, que revogou, e em que depois assentou, em quanto a dizer se havia declarado com os cúmplices que tinha manifestado nesta mesa, pondo-se no estado de profitente, em que de presente se acha…” Há aqui diversas inexactidões, as mostras de arrependimento são uma, a revogação das confissões, outra. A seguir, o relator abandona a questão das denúncias e descreve as heresias do réu face à doutrina católica. Lamenta que ninguém o tenha conseguido “reduzir” e sobretudo reafirma que o réu é de bom juízo e entendimento e com boa capacidade como se demonstra pelas diligências que se fizeram sobre tal matéria. A maior parte dos Inquisidores e Deputados considera o réu como “herege apóstata convicto, confesso, variante, profitente e impenitente, e que como tal incorreu em sentença de excomunhão maior com confiscação de todos seus bens para o Fisco e Câmara Real…”. Só o Inquisidor João de Sousa de Castelo Branco e o Deputado João de Mendoça foram de opinião que o réu ficasse reservado, porque poderia o tempo com mais admoestações de alguns padres, que com ele continuassem a estar,” tirar o réu da lastimosa cegueira e miserável estado a que o chegaram as suas culpas, sendo este o principal intento do Santo Ofício converter (?) os R.R. e não castigá-los...”
fls. 308 img. 629 – 23-7-1706 – O processo é concluso para subir ao Conselho Geral.
fls. 309 img. 631 – 23-7-1706 –
Determina o Conselho Geral que a Mesa mande estar com o réu, os Padres Fr. Caetano de S. José, Carmelita Descalço e o Padre Francisco Tavares, da Companhia de Jesus.
fls. 311 img. 635 – 29-7-1706
O Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque interroga o Padre Mestre Fr. Caetano de S. José, Carmelita Descalço, de 50 anos, sobre os seus colóquios com o réu. Diz ele que esteve com o réu em três ocasiões, procurando reduzi-lo ao conhecimento da Fé Católica. O réu nunca quis responder aos seus argumentos, limitando-se a dizer que queria viver e morrer na Lei de Moisés. “Disse que o preso estava em seu constante juízo, e que não pecava de ignorante, antes tinha suma malícia, e que era de natural teimoso e raivoso, e que daqui poderiam nascer alguns gestos e acções descomedidas e extraordinárias, que lhe vira fazer, sendo que nas duas vezes últimas que com ele falou, notou uma tão grande mudança no semblante e gestos do réu que lhe pareceu ter o diabo entrado no seu coração e ter-lhe emudecido a língua para lhe impedir o caminho de se poder reduzir ao verdadeiro conhecimento de nossa Santa Fé Católica.”
fls. 313 img. 639 – 3-8-1706
O Inquisidor Paulo Afonso de Albuquerque interroga o Padre Mestre Francisco Tavares, da Companhia de Jesus, de 66 anos, sobre os seus colóquios com o réu. Procurou como lhe fora pedido, reduzi-lo ao conhecimento da Fé Católica, mas às suas exortações o réu não respondia, só proferiu as palavras “Não quero”, com muita raiva e obstinação. Assim acabou a primeira entrevista.
Na segunda vez, exortando-o ele de novo a seguir a Lei de Cristo e a deixar os seus erros, saiu-se ele com uma execranda blasfémia dizendo que ele era o mesmo Cristo, e nos cárceres o tinha Deus constituído e convencido; que o tempo mostraria que ele era o Messias. Dizendo-lhe o Padre que ele estava fora de seu juízo, respondeu o preso que ele estava em perfeito juízo mas que eles eram dois diabos (o Padre e o Secretário que assistia); depois disso não quis falar mais.
Na terceira vez que esteve com ele, dizendo-lhe que Lei seguia, pois só na de Cristo havia salvação, respondeu de novo o preso com a mesma blasfémia de que ele era Cristo, filho de Deus “com muita obstinação e desprezo das pessoas que lhe assistiam”. O juízo que ele faz do preso é que é um velhaco, e de que está obstinado na sua apostasia e crença na Lei de Moisés, e que tem juízo e capacidade e que lhe parece que se finge com menos capacidade para dilatar a sua causa, usando das ditas blasfémias de que era Cristo.
fls. 315 v img. 644 – 3-8-1706
Despacho dos Inquisidores João de Sousa de Castelo Branco e Paulo Afonso de Albuquerque:
Visto como réu, estando com os Padres,” fizesse algumas acções descomedidas e extraordinárias, com mudança de gesto e semblante, como consta do teor dos depoimentos e outrossim vindo a esta mesa, estivesse nela com alguma descompostura, de que não usava nas mais vezes que a ela vinha”, decidem que ele seja examinado pelos médicos em ordem a “que nos possam informar melhor da sua capacidade e se nele, no seu juízo, e entendimento ao presente acham alguma mudança, ou se tem a mesma capacidade que tinha quando primeira vez o visitaram”. Para melhor averiguação da verdade, que sejam perguntados também o Alcaide, um dos guardas e dos companheiros do réu no cárcere e voltará depois o processo à Mesa.
fls. 316 img. 645 – 3-8-1706
Licenciado Manuel de Pina, Médico dos cárceres, de 64 anos – Foi ver o réu, com quem já estivera noutras ocasiões. Falando com ele, concluiu que tem juízo e capacidade. Perguntando-lhe porque não comia nas horas costumadas, como os seus companheiros, disse que jejuava judaicamente por crer e viver na Lei de Moisés, pois era judeu. Perguntando-lhe por que não respondia na Mesa às perguntas que lhe faziam, respondeu que era por não querer fazê-lo. Que quando entrou na cela, estava o preso de joelhos, recitando os Salmos de David.
fls. 318 img. 649 – 3-8-1706
Licenciado Manuel da Costa, Médico dos cárceres, de 50 anos – Foi ver o réu, com quem já estivera em outras ocasiões, e está no cárcere com mais três companheiros, bem disposto, sem queixas e em seu juízo perfeito. Perguntando-lhe porque não tinha comido ao jantar e se se queixava de alguma coisa, disse que não tinha queixa alguma mas que jejuava judaicamente, comendo apenas à noite de vinte e quatro em vinte e quatro horas. Disse que o preso “está em seu juízo perfeito sem queixa ou variedade alguma, e o achou agora na mesma forma e com a mesma sesudeza, capacidade e saúde, com que o achou nas mais vezes que o viu, e visitou de ordem desta Mesa”.
fls. 320 img. 653 – 3-8-1706
João Álvares, guarda dos cárceres, de 41 anos – Disse que o dito réu é de bom juízo, entendimento e capacidade, na mesma forma que sempre lhe conheceu, sem que nele reconheça variedade alguma, mas apenas mais cegueira e obstinação em seguir a Lei de Moisés, ouvindo-lhe agora dizer repetidas vezes que quer viver e morrer na mesma Lei. Só come de 24 em 24 horas e às vezes fica três dias sem comer; não come nem aceita nada que vá ao fogo, mas a sua ração a converte em doce, passas, queijo, figos e fruta.
fls. 322 img. 657 – No mesmo dia
Agostinho da Costa, Alcaide dos cárceres, de 69 anos – Disse-lhe o réu em presença dos Médicos e guardas, que não estava doido, que não era novidade o não comer, pois tinha declarado muitas vezes que o fazia como penitente e observante da Lei de Moisés; e que na dita Lei queria viver e morrer. Que não respondia aos Inquisidores, porque não queria; que se enfadava muito quando o iam buscar para estar com Padres, dizendo que era muito apertar. Que o preso está sempre de joelhos em oração, recitando salmos ou colóquios em castelhano em louvor da Lei de Moisés, falando no mesmo Moisés e Deus de Abraão e outras palavras. Disse que o preso está em seu perfeito juízo e capacidade, e, pelo que tem observado, não tem lesão alguma no mesmo, porque fala com ele testemunha muito a propósito, e responde a tudo o que lhe pergunta sem variar nas respostas.
fls. 324 img. 661 – No mesmo dia
Francisco Soares Braga (Pr. n.º 9773), natural de Braga e residente em Matosinhos, de 26 anos de idade, cristão velho, preso nos cárceres da Inquisição por bigamia – Disse que esteve por três meses no mesmo cárcere com o réu e que o viu fazer oração quatro vezes por dia, duas de manhã e duas de tarde. Diz as orações de joelhos, virado para a luz que vem da fresta da porta co cárcere. No final de cada oração, levanta as mãos ao céu, repetindo Jacob, Moisés, Israel e Abraão e outras palavras de que agora se não lembra. Quando reza, recita em voz alta os Salmos, sem dizer Gloria Patri e nunca reza a Nossa Senhora. Perguntando-lhe a testemunha porquê, respondeu ele que ele não havia de ser o diabo que o tentasse. Que o réu só come de 24 em 24 horas e por vezes, fica mesmo dois ou três dias sem comer. Não come nada cozinhado, mas apenas pão e queijo. Quando a testemunha e seus companheiros o querem persuadir a viver na Lei de Cristo, diz ele que são o diabo a tentá-lo, pois ele quer crer, viver e morrer na Lei de Moisés, e que o seu Deus é o Deus de Abraão.
Sobre o juízo e capacidade “Disse que o dito Preso tem juízo e capacidade sem que tenha lesão alguma nele, nem lhe conheceu nunca no tempo em que esteve com ele, por falar e responder a propósito, dormir e comer, e fazer todas as mais acções que lhe são necessárias, mas sim muita malícia e obstinação na crença da dita lei de Moisés, tendo para si que todos os que a não seguem estão errados, e que hão-de ser castigados pelo Messias, que há-de vir, e que ele é mesmo o Messias prometido a Israel, Abraão e a Moisés, e isto mesmo lhe ouviu repetir um Médico dos cárceres desta Inquisição que há poucos dias que o foi ver.”
fls. 329 img. 671 – 3-8-1706
Certidão do Notário Jácome Esteves Nogueira – certifica o que se passou com o Padre Francisco Tavares, da Companhia de Jesus nas duas vezes em que o acompanhou no colóquio com o réu. Na primeira vez, não quis o réu responder ao Padre palavra alguma, “e só fez algumas acções com as mãos, estendendo as palmas e batendo com elas no banco com muita fúria e raiva, movendo-se do lugar em que estava e dando muitas vezes as costas ao Religioso que, cansado de lhe falar, sem lhe ouvir resposta, o deixou”. E na segunda ocasião “dizendo-lhe o dito Religioso que ficara mal com ele pois lhe não tivera respeito algum, e que agora esperava lhe dissesse que casta de homem era e que crença tinha, lhe respondeu o réu com muita fúria: Eu sou o Messias prometido na Lei, de quem falam as Escrituras; eu sou Cristo e sou aquele que me hei-de chamar com o nome de Deus, sendo uma vil criatura, a mais vil de todas. Eu sou Deus, porque o mesmo Deus disse: "dii estis et filii excelsi omnes". Você Padre é p diabo e o Secretário que ali está é outro diabo; os Inquisidores são diabos e esta casa é retiaculum occisionis sceleratorum, como está profetizado nas Escrituras; e já que querem que eu fale, hei-de falar desta sorte e Você Padre não me pode reduzir porque sou o Messias e sou Cristo, como tenho dito” E arguindo o dito Padre ao réu das blasfémias que proferia, lhe disse que não fosse velhaco e se quisesse fingir doido, porque o não estava; logo respondeu o dito réu que tal coisa não queria que dele se entendesse porque estava em seu perfeito juízo e entendimento e que se ele era ou não o Messias, a seu tempo se veria. E, alegando-lhe o dito Religioso em que Rabinos se fingiram Messias, e como tais procuraram ter o séquito e aclamação dos seus, e depois, confessando o seu embuste, não respondeu o réu coisa alguma”.
O Notário certifica que os colóquios se passaram assim. E acrescente “ e outrossim certifico que o dito réu tem a mesma capacidade que nele observei sempre no decurso da sua causa, sem embargo dos últimos despropósitos que lhe ouvi e constam desta minha certidão, porque, como tinha assentado consigo não falar, vence a sua raiva, falando desta sorte.”
fls. 331 img. 675 – 2.º Visto em Mesa – 6-8-1706
Consideram os Inquisidores e Deputados que o assento da Mesa de 22 de Julho “não está alterado, antes mais confirmado, por se mostrar que o réu com assistência dos padres com quem ultimamente esteve, não melhorou em nada a sua causa e crença, antes cada vez se mostra mais contumaz e endurecido na sua obstinação, não só pelo que mostrou nesta mesa, mas também pelo que passou com os mesmos padres, conforme ao que consta dos seus depoimentos e certidão do notário a eles junta, continuando outrossim o réu com o mesmo e maior fervor nos jejuns, salmos, deprecações e mais ritos da observância da Lei de Moisés”. Quanto ao seu juízo e capacidade, os depoimentos dos Médicos, Alcaide, guarda e companheiro de cárcere, e certidão do notário que com ele esteve mostram que o réu “tem toda a capacidade e está no seu juízo e entendimento perfeito, sem ter coisa que lho perturbe, e que pretender mostrar o contrário era indústria, e afectação maliciosa do réu, e que assim conhecida claramente esta, não havendo esperança alguma da conversão do réu, que se deveria concluir com a sua causa, executando-se o dito assento da Mesa.”
fls. 332 img. 677 – 6-8-1706
José Coelho faz os autos conclusos.
fls. 333 img. 679 – 6-8-1706
Assento do Conselho Geral- o réu é relaxado ao Juizo secular.
fls. 333 v img. 680 – 29-8-1706
Auto de notificação dos quinze dias – (n.º I, Tit. XV, Liv. II do Regimento de 1640) – Notifica-se o réu de que está condenado, mas pode ainda tomar a iniciativa de confessar as suas culpas.
fls. 334 img. 681 – 10-9-1706
Auto de notificação e mãos atadas – (n.º V. Tit. XV, Liv. II do Regimento de 1640) – é feita 48 h. antes do auto da fé. Diz-se ao réu que será relaxado, atam-se-lhe as mãos e fica na cela um padre para falar com o réu, neste caso o P.e João Ribeiro, da Companhia de Jesus. O processo não diz o que se passou entre o Padre e o preso.
fls. 335 img. 683 – Sentença. Como referiremos a seguir, as sentenças dos processos da Inquisição não têm a importância que se lhes costuma dar. Falta no processo a anotação da publicação da sentença no auto da fé, em 12 de Setembro de 1706.
Do romance de Camilo Castelo Branco, transcreve-se a sentença dos desembargadores do Tribunal da Relação:
«Acordam em relação, etc. Vista a sentença junta dos inquisidores, ordinário, e deputados da inquisição, e como por ela se mostra o réu preso, Heitor Dias da Paz ser herege apostata da nossa santa fé católica convencido no crime de judaísmo, e por tal relaxado á justiça secular, e sendo perguntado n'este senado persistir no seu erro, e declarar que não cria em nossa santa fé católica, senão na lei de Moisés; o que assim visto, e disposição de direito em tal caso, condenam ao reu que com baraço e pregão pelas ruas publicas e costumadas seja levado á ribeira d'esta cidade, e aí seja levantado em um poste alto, e queimado vivo, e feito por fogo em pó, de maneira que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memoria; e o condenam outrossim em perdimento dos seus bens para o fisco e camara real, posto que ascendentes ou descendentes tenha, os quais declaram por incapazes,inábeis, e infames na forma de direito e ordenação. E pague as custas d'estes autos. Lisboa, 12 de Setembro de 1706.»
Não há razões para duvidar da autenticidade desta (ao contrário da Sentença da Inquisição que ele refere no processo). O réu foi mesmo queimado vivo, como confirma uma anotação a lápis na Lista do auto da fé (Liv. 435, da Inquisição de Lisboa).
fls. 355 img. 723 – Conta de custas – 23 074 réis.
Tem algum interesse o Sermão do Padre Mestre Fr. Francisco de Santa Maria no auto da fé, que que Camilo também transcreve algumas partes:
De malo ad malum egressi sunt, et me non cognoverunt, dicit Dominus - Ex Prophetia Jerem. cap. 9
Sair de um mal para um bem: Grande ventura! Sair de um mal para outro mal: Grande desgraça! Esta desgraça, verdadeiramente grande, feriu e penetrou altamente aos infelizes filhos de Israel, antes e depois da vinda à terra de Cristo Jesus, verdadeiro Deus, e verdadeiro Messias. Antes, estavam os filhos de Israel metidos e entranhados em um mal; e depois sairam dele. Mas, oh desgraça! Oh infelicidade lastimosa! Que saindo de um mal, entraram noutro; e, nem no mal de que saíram, nem no mal, em que entraram, conheceram ao verdadeiro Deus.
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«Convosco falo, ó infelizes filhos de Israel, e tomo para testemunha a Deus todo poderoso, que não é o meu intento insultar-vos, ou afrontar-vos em coisa alguma, nem tenho ou levo outro fim n'esta acção, mais que a maior gloria de Deus, a defensa da verdade, o triunfo da fé, o remédio da vossa cegueira, a salvação da vossa alma; e, se acaso com a força do dizer, proferir alguma palavra que vos ofenda, desde aqui vos peço perdão d'ela pelas entranhas da misericórdia do verdadeiro e altíssimo Deus.»
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E como é possível que, sendo nós idolatras há tantos séculos, e sendo vós há tantos séculos cultores do verdadeiro Deus; sobre vós há tantos séculos que «chovam os castigos, e sobre nós os favores? Sobre «vós os castigos! Bem o vedes, pois vos vedes há tantos séculos sem pátria, sem honra, sem rei, «sem patriarcas, sem profetas, sem capitães, sem juízes, sem sacerdotes, sem templo, sem altar, sem sacrifício, sem liberdade. Nós os cristãos tudo isto temos. Pois que favorece Deus tanto aos idólatras, e castiga tão rigorosamente aos fieis?
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Todos, ou quase todos os anos vão muitos de vós ao patíbulo, e sendo diante dos nossos olhos pasto á voracidade do fogo, nunca se viu em algum de vós algum prodígio. Que é isto? Assim deixa Deus a verdade escurecida e humilhada? Assim deixa a mentira triunfante e vencedora? Sei eu, e sabeis vós que em Babilónia trocou Deus as chamas da fornalha em viração benigna, qualificando como multiplicados portentos da Fé dos três meninos. Agora já o fogo vos não tem respeito? Já a chama lavra em vós como em madeira seca?»
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(Aos relapsos) E vós os que por culpas de relapsia estais em pena ordinária, é verdade que já não podeis livrar a vida temporal; mas é certo que podeis assegurar a eterna. Na vossa mão está hoje o salvar ou o condenar para sempre. Oh que felizes sois, se muito de coração abraçais a Fé Católica, conheceis e reconheceis a vossa miséria, confessais e vos arrependeis da vossa culpa! Morrer é natural: morrer afrontosa e violentamente é desgraça; mas «sobre tudo isto, salvar a alma, é a maior ventura. «Oh, que felizes sois, digo outra vez, se sabeis emendar com os acertos da morte os desconcertos da vida, e se vos dispondes com verdadeira fé e verdadeira contrição para a ultima hora! Se assim for, não saireis de um mal para outro mal, senão de um mal para o sumo bem.»
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E vós, que n'este tremendo cadafalso sois o réu do maior delito, olhai que em vós n'esse infeliz estado se verifica com propriedade lastimosa o que dizem as palavras do meu tema: De malo ad malum egressi sunt. Saireis de seres condenado no juízo dos homens, e entrareis a ser condenado no juízo de Deus. Saireis da morte temporal e entrareis na eterna. Saireis de um fogo que brevemente acaba, e entrareis em outro fogo, que para sempre dura. Oh filho da minha alma, é possível que assim vos deixeis guiar só da vossa imaginação, e vos ateis tão fortemente á vossa teima em um negócio da tanta importância? Tão pouco vai em salvar ou condenar para sempre? Quero crer de vós que em qualquer negócio d'esta vida não havíeis de obrar sem conselho, sem reflexão, sem madureza; e em um negocio, em que vai a vida eterna, assim vos resolveis, assim vos precipitais? Nos pontos da medicina (que estudáveis) é sem duvida que havíeis de estar pelo que vos diziam vossos mestres. Pois, se nos pontos de medicina, vos guiáveis pelo que vos diziam os doutores médicos, nos pontos da fé porque vos não guiais pelos doutores teólogos, que tantas vezes e com tanto zelo e espirito se empenharam em vos reduzir ao caminho da verdade?
«Dizei-me de que mestres aprendestes essa lei que seguis já tão antiquada e esquecida no mundo? Sem duvida de dois homens ignorantes, que talvez nunca abriram a escriptura, e talvez não saibam a lingua latina, e muito menos a hebrea. Não o tomeis por injuria porque, fundado nas vossas mesmas escrituras, afirmo que na vossa nação falta há muitos seculos, por justo castigo de Deus, o dom da sabedoria, e dominam as trevas da ignorância.»
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E quem vos persuade a que sigais a Lei de Cristo? Muitos homens, que não podeis negar que são doutos, e que em larga carreira de anos seguiram as Universidades, aprendendo e depois ensinando as divinas Letras, revolvendo as Escrituras e gastando as noites e os dias em indagar e descobrir a verdade. Parece-vos que homens tão doutos e timoratos quereriam condenar-se por seu gosto? Parece-vos que, se achassem contradições na Escritura, ou implicâncias na razão, haveria algum que antes quisesse persistir na sua teima, do que assegurar a salvação da sua alma? Daqui devíeis formar um dictame prudente, de que caminháveis com segurança, seguindo o caminho, que estes homens seguem e ensinam.
O dictame prudente é aquele que me ensina a seguir o mais seguro: logo com dictame prudente vos devíeis resolver a seguir e abraçar a Lei de Cristo. Porque ainda no caso negado, que a sua Lei fosse falsa, caminháveis com segurança, seguindo a mesma Lei, pelas evidentes desculpas que podíeis dar a Deus, no dia da conta. Senhor, (diríeis) Vossa Divina Majestade foi servido de ordenar, dispor ou permitir que eu nascesse em terra de Cristãos, que fosse baptizado, que vivesse entre homens, que professaram a Lei de Cristo. Eu vi que muitos homens doutos e versados em todas as ciências, seguiam aquela Lei. Vi, (pelo que os mesmos homens me mostravam) que em Cristo concorriam todos os sinais, que do Messias apontaram os Profetas. Vi que nele se enchiam as Escrituras. Vi que o seu nome era ouvido com veneração, e com respeito, ainda das nações mais bárbaras. Vi que em virtude do mesmo nome em todos os séculos (conforme o testemunho constante de gravíssimos Escritores) obraram os seus fiéis estupendas maravilhas. Vi que era adorado de pequenos, de grandes, de Príncipes, de Reis e dos maiores Monarcas. Vi que a sua Cruz era o mais precioso esmalte das Tiaras, e das Coroas. Vi a majestade, a pompa, a grandeza, a perfeição, o ornato, o asseio das suas Igrejas. Vi o primor e a gravidade das suas cerimónias. Vi que muitas pessoas de um e outro sexo, desprezando o Mundo com generoso desengano, se consagravam ao culto divino em tantas Religiões tão santas e tão austeras. Vi que em defesa daquela Lei se empenhavam tantas Universidades florentíssimas. Vi que a mesma Lei estava dilatada por toda a terra e que cada vez se dilatava e florescia mais. Vi que a Igreja Romana, como rocha no meio das ondas, resistia imóvel às tempestades, que contra ela em todos os séculos levantaram os pagãos e os hereges. Vi que a mesma Lei era a mais conforme à razão, a mais repugnante ao apetite, a mais pronta para o exercício das virtudes, a mais poderosa para o desprezo das vaidades, e de todas estas coisas formei um dictame de que só nesta Lei me poderia salvar, se errei, Senhor, nas vossas permissões tenho as desculpas do meu erro.
Pelo contrário, se é culpa (como é na verdade) morrer na Lei de Moisés, que desculpa podereis dar a Deus? Direis, Senhor, eu segui uma Lei abatida, ultrajada, e metida com sumo desprezo debaixo de todas as nações do Mundo. Segui uma Lei, que me ensinaram pelos cantos e às escuras, um homem ignorante, ou uma velha tonta. Segui uma Lei há muitos séculos patentemente deixada da vossa protecção e assistência. Segui uma Lei, na qual há muitos séculos que não há milagres, nem sacrifícios, nem profetas, nem Santos: e serão boas desculpas essas?
Ora filho do meu coração, convertere, convertere ad Dominum Deum tuum.
Convertei-vos para o vosso Deus, convertei-vos para o vosso Senhor, que, abertos os braços, e com o coração aberto, vos espera para vos meter n'ele como amigo, se do coração vos converteis a ele. Dai este gosto ao céu, dai este gosto á terra, dai este gosto aos coros angélicos e dai este gosto aos espíritos bem aventurados, dai este gosto a todo este numerosíssimo e luzidíssimo auditório, que todo deseja com muitas veras a vossa vida e a vossa salvação. Na vossa mão tendes a vida e a morte, a salvação e a condenação: vede o que escolheis. E, se todavia persistis na vossa teima, e na vossa contumácia, da parte de Deus vos digo, que dentro em breve tempo aparecereis diante do mesmo Deus em juízo, do qual, sem desculpa do vosso erro, saireis condenado para o fogo eterno.»
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O olho de vidro, romance de Camilo Castelo Branco
Heitor Dias da Paz é mais conhecido por ser um personagem do romance de Camilo “O olho de vidro”, que também se refere ao médico Brás Luis de Abreu que existiu realmente. Camilo juntou artificialmente os dois personagens e tratou de puxar da imaginação para compor uma trama bem romântica; ao mesmo tempo, aproveitou para dar alguma pancada na Inquisição, no que fez muito bem e é sempre menos do que a Instituição merece.
Como é evidente, boa parte dos pormenores do romance provêm unicamente da imaginação do autor. Heitor Dias da Paz nunca esteve na Holanda, nem foi ao estrangeiro. Não deve ter conhecido em Coimbra Brás Luis de Abreu que era bastante mais novo. Não há notícia de que o pai se tenha suicidado após lhe terem morto o filho (à data da execução o pai e a mãe tinham respectivamente 56 e 50 anos). Até mesmo a sentença da Inquisição que Camilo põe entre aspas não é totalmente verdadeira. Para a compor, Camilo foi buscar pedaços à sentença de Miguel Henriques da Fonseca (Pr. n.º 9485), que foi relaxado em 10 de Maio de 1682 (ver Bibliografia). Já a sentença do Tribunal da Relação deve ser autêntica, Heitor foi mesmo queimado vivo. A sentença na Inquisição de Heitor Dias da Paz é muito longa – são 37 páginas manuscritas e Camilo apenas transcreveu uma pequena parte.
No sec. XIX e mesmo depois, por causa da dificuldade em transcrever os processos da Inquisição, copiava-se apenas a sentença. Camilo tinha uma mão cheia de sentenças copiadas, que depois foram parar à biblioteca de Fernando Palha, leiloada em Paris. Oliveira Martins, idem e António Joaquim Moreira, também só copiou as sentenças. Ora as sentenças, sendo embora parte do processo, não são bem peças processuais, eram textos de propaganda redigidos para serem lidos nos autos da fé e os Inquisidores gostavam de arredondar os factos. As práticas judaizantes eram empoladas, e a defesa do réu era reduzida, em geral, à expressão “não provou cousa relevante”. Peças importantes e com interesse nos processos, são os vistos em Mesa e os assentos do Conselho Geral.
TEXTOS CONSULTADOS
Maria José Ramos Afonso, O olho de vidro [ texto policopiado] : contributos para o estudo da escrita interventiva de Camilo Castelo Branco,
Tese mestr. , Línguas e Literaturas Românicas, orient. Ana Maria Ramalhete,Fac. de Ciências Sociais e Humanas, Univ. Nova de Lisboa , 2007
Regimento do Santo Ofício da Inquisição de 1640
Online: http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/7/20/p267
Maria Fernanda Guimarães e Carlos Manuel Valentim, Heitor Dias da Paz, estudante de Medicina em Coimbra, in Terra Quente, n.º 334, de 15-8-2005, pag. 22
João Augusto Marques Gomes, Aveiro na obra e relações de Camilo - "O Olho de Vidro", in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. I, n.º 3, 1935, pags. 208-218
Padre Francisco de Santa Maria – Sermam do Auto da Fé, que se celebrou na Praça do Rocio desta Cidade de Lisboa junto dos Paços da Santa Inquisição e anno de 1706 em presença de Sua Magestade, & Altesas, prégado pelo Reverendissimo Padre Mestre Padre Mestre Francisco de S. Maria, Géral da Congregaçaõ de S. Joaõ Evangelista, &c., offerecido pelo mesmo ao eminentissimo Senhor D. Miguel Angelo Conti, Arcebispo de Garzo dos Duques, & Principes de Poli, & Guagdagnoli, &c. Nuncio Apostolico nestes Reynos, & Cardial da S.I.R. Lisboa, na Officina de Manoel, & Joseph Lopes Ferreyra, 1706 – B.N.P. Microfilme F. 8162
Brás Luis de Abreu – Portugal Medico ou Monarchia medico-lusitana historica, practica, symbolica, ethica, e politica. Fundada e comprehendida no dillatado ambito de dous mundos creados Macroscosmo, e Microcosmo repartida e demarcada em tres amplissimos reynos: animal, vegetal e mineral...Parte I...Bras Luis de Abreu, Coimbra, na Officina de Joam Antunes, mercador de livros, 1726. - B.N.P. Microfilme F. 7738
Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da Novela Camiliana, Col. Temas Portugueses, Lisboa, I N C M, 2.ª edição, 2 vol. 1982.
Sentença da Inquisição contra Miguel Henriques da Fonseca em 1682 (Pr. n.º 9485, da Inq. de Lisboa) in O INSTITUTO, Ano IX, 1860/61, pags. 310 a 317
Online: https://bdigital.sib.uc.pt/institutocoimbra/IndiceInstituto.htm