4-12-2007
O Missionário e o negócio
Fr. Rafael de Castelo de Vide, missionário português no Reino do Congo, terá ficado muito satisfeito quando, em 1784, faleceu o Rei do Congo, D. José I de Água Rosada e lhe sucedeu no trono, escolhido pelos Grandes do Reino, seu irmão, D. Afonso que foi coroado com o título de D. Afonso V. Tinha ele conhecido este Príncipe do Congo, logo no final de 1780, quando vinha de Luanda, donde saíra a 8 de Agosto desse ano, a caminho de S. Salvador do Congo. Sobre ele escreveu na sua relação:
O irmão mais moço chamado D. Afonso, em cuja Banza estivemos os três meses, é o mais atencioso, urbano, cortês, que temos encontrado de costumes, e urbanidade de Português; escreve este, e o lê, e entende alguma coisa, de grande estatura, e poderoso, mas humilde e sujeito à Igreja, de que é Mestre, ou Intérprete. Muitas vezes conhecíamos a sua sujeição aos Padres, porque, sendo preciso repreendê-lo, algumas vezes pelos costumes das suas gentes, e por outras coisas semelhantes, ouvia tudo com humildade, sem replicar palavra, e muitas vezes se prostrava por terra, e sempre quando o louvávamos, ou nos vinha tomar a bênção todos os dias, pela manhã, e não nos tem desamparado, e nos acompanhou até à Corte pelos caminhos com a sua gente (pag. 73 do MS).
A escolha deste Príncipe como soberano do Congo terá levado o Bispo do Congo e de Angola, sediado em Luanda, D. Fr. Alexandre da Sagrada Família, a tentar resolver um problema que reputou importante. Nas actividades políticas da Colónia (que na altura se chamava a Conquista), os Bispos não se coibiam de interferir com os seus próprios meios, quando isso fosse possível.
A ocupação portuguesa do território que hoje corresponde à República de Angola fazia-se muito lentamente e em constantes batalhas com os indígenas, nem sempre bem sucedidas. As tropas portuguesas eram escassas e a chamada “guerra preta”, isto é, os pretos que lutavam ao lado dos portugueses de arco, zagaias e semelhantes, nem sempre era de confiar. Para ocupar o território, era preciso construir fortalezas e guarnecê-las de armas e de gente, o que não era fácil.
Praticamente, o único negócio levado a cabo à época no Congo, em Angola e Benguela, era o resgate de escravos, que eram depois expedidos para o Brasil e para as Índias Espanholas. Na costa, porém, apareciam continuamente navios ingleses, holandeses e franceses, que entravam praticamente à vontade em todos os portos a norte do Ambriz, nomeadamente, Mpinda, no Soyo e Loango, a norte do rio Zaire. Para resgatar escravos, traziam mercadorias melhores e mais baratas que os portugueses. Estes estrangeiros não iam ao interior, mas encarregavam negociantes pretos locais, chamados na altura mobires e mais tarde, vili, de levar as mercadorias e de irem comprar escravos. Todo o negócio de compra de escravos em S. Salvador do Congo era feito por eles.
Pensou então o Bispo que poderia dar uma ajuda para que o negócio dos escravos do Congo passasse para o lado português e tê-lo-á dito ao Governador-Geral da altura, o Barão de Mossâmedes, José de Almeida e Vasconcellos. Afinal, havia que se preocupar com a salvação das almas daqueles pobres escravos, que eram cristãos baptizados e, por isso, não podiam ir para as mãos de hereges ingleses ou holandeses (assim considerados por serem protestantes).
Abro aqui um parêntese para dizer que as relações que nos deixou Fr. Rafael tratam quase exclusivamente das tarefas de evangelização e das missões que levou a cabo, enquanto permaneceu no Reino do Congo até meados de 1788. Nem sequer refere que terá coroado três Reis, enquanto esteve no Congo, D. José I, D. Afonso V e D. António II(*). Apenas este episódio de interferência na vida comercial e política do Congo, é por ele referido.
Foi então, no início de 1785, que o Bispo D. Fr. Alexandre da Sagrada Família decidiu chamar Fr. Rafael de Castelo de Vide a Luanda, dando como razão principal o dever este acompanhar dois novos missionários que tinham chegado da Metrópole. Fr. Rafael tinha problemas de saúde, mas obedeceu; antes, escreveu uma longa carta, descrevendo o seu ministério no Reino do Congo (Doc. N.º 5).
Houve, antes disso, uma edificante troca de correspondência ente o Rei e o Bispo, quando o primeiro ofereceu a este como presente um jovem escravo (Doc.s 1, 2 e 3). O Rei nomeou um embaixador para acompanhar Fr. Rafael a Luanda. Ali chegaram em 11 de Julho de 1785 e foram recebidos conjuntamente pelo Bispo e pelo Governador-Geral, este acompanhado de todos os oficiais do Regimento.
Oito dias se demorou Fr. Rafael em Luanda, partindo de regresso ao Congo em 19 de Julho de 1785, acompanhado de uma grande comitiva. Com ele, iam o Tenente Vicente José Ferreira, como embaixador do Governador-Geral junto do Rei do Congo, os dois missionários, três soldados, um carpinteiro para trabalhar na Igreja, e dois Ilhéus para cultivarem a terra para os Padres e ainda os negociantes brancos que iam resgatar escravos. Com eles iam também muitas dezenas de carregadores Ambundos, transportando não só os mantimentos e as coisas destinadas à Igreja (hóstias e vinho tinham de vir de Luanda), mas também as fazendas e mercadorias dos brancos para dar em troca dos escravos.
A viagem foi muito acidentada. Um dos missionários e mais alguns brancos morreram no caminho, de doença. A maior parte dos carregadores Ambundos fugiu, roubando parte da mercadoria.
O Governador-Geral enviou depois mais uma centena de carregadores para conseguirem chegar ao destino. A 21 de Setembro, chegaram finalmente a S. Salvador.
Para que o negócio do resgate de escravos pelos portugueses tivesse algum sucesso, seria preciso que o Rei proibisse a entrada em S. Salvador, quer dos mobires, quer das mercadorias de contrabando vindas dos navios ingleses e holandeses. Mas nunca Fr. Rafael conseguiu tal proibição de D. Afonso V.
As mercadorias tinham de vir por terra, quase desde Luanda, pois seguiam de barco até à foz do Dande. Acima do Ambriz era território não ocupado, desde a derrota dos portugueses na batalha do Kitombo em 1670. Só na segunda metade do sec. XIX é que se começou a ir para S. Salvador de barco até Noqui, no estuário do Zaire, e daí a pé até à capital do Congo.
Num percurso tão longo, havia sempre roubos e fugas dos carregadores, o que encarecia ainda mais a mercadoria.
Em meados de 1786, o Tenente Vicente José Ferreira, desgostoso do insucesso da sua missão, decidiu regressar a Luanda. Pouco depois, faleceu o Rei D. Afonso V e começou em S. Salvador a agitação típica das mudanças no trono, já que os Reis eram escolhidos pelos Grandes do Reino e não por sucessão dinástica. Sucedeu-lhe D. António II, que não era já tão condescendente para com os portugueses.
Fr. Rafael não conseguira “atalhar aquela venda dos Cristãos para os hereges (pag. 254 do MS)”, como ele diz.
Note-se que o comércio em S. Salvador não era, na altura, em grande escala. Aliás os negreiros não gostavam dos escravos congoleses que morriam muito na travessia do Atlântico. Fr. Rafael indica que deveriam ser resgatados, na Corte, isto é, na capital, cerca de setenta por mês.
No final de 1786, a situação era deprimente. Diz Fr. Rafael:
No meio destas desordens, nós estávamos pensativos, ficarem, não tinham negócio, e alguns escravos que tinham comprado, e poucas fazendas que restavam, tudo corria perigo nas revoluções, e nova eleição de Rei, para o que já havia quatro pretendentes (pag. 262 do MS).
Decidiu-se ele então por caridade para com os brancos (como ele diz) acompanhá-los até mais de metade do caminho para Luanda. Saíram de S. Salvador em 3 de Janeiro de 1787 e começaram outra viagem atribulada, porque tiveram de fazer desvios para não passarem em banzas com sobas menos amistosos. Com eles levavam os escravos comprados acorrentados, que já começavam a morrer (diz ele) “pelo motivo de alguns terem estado em cadeias cinco, e seis meses”.
Assim, acabou a tentativa de passar o negócio dos escravos em S. Salvador para os portugueses.
Fr. Rafael continuou a clamar ao Rei pela expulsão dos mobires, mas sem resultado.
A 28 de Junho de 1788, abandonou o Congo e regressou à Metrópole com passagem por Pernambuco.
(*) Agradeço ao Prof. John Thornton que amavelmente me chamou a atenção para o meu lapso no nome deste Rei: é António e não José.
NB. Nos textos transcritos, substituí as abreviaturas e actualizei a ortografia.
TEXTOS CONSULTADOS
Fr. Rafael de Castello de Vide, Viagem do Congo do Missionário Fr. Rafael Castello de Vide, Hoje Bispo de S. Tomé (1788) – MS Série vermelha n.º 396, da Academia das Ciências em Lisboa. Transcrito aqui.
Fr. Rafael de Castello de Vide, Padre Doutor André de Couto Godinho e Fr. João Gualberto de Miranda, Relação da Viagem que fizeram os padres missionários, desde a cidade de Loanda, d’onde sahiram a 2 de Agosto de 1780, até à presença do Rei do Congo, onde chegaram a 30 de Junho de 1781, in Anais do Conselho Ultramarino, 2.ªSérie – Parte não Oficial, 1859, pags. 62 a 80.
Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730-1830, The University of Wisconsin Press; New Ed edition (31 Mar 1997), 029911564X
P. M. Laranjo Coelho (1878-1969), O bispo missionário Fr. Rafael de Castelo de Vide: alguns subsídios inéditos para a história da sua notável acção espiritual e temporal em Angola, Congo, Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Sep. Memórias da Academia das Ciências Lisboa, 7, 56 pags.
Thornton John K., " 'I am the Subject of the King of Congo': African Political Ideology and the Haitian Revolution," Journal of World History 4, no. 2 (Fall 1993): 181–214.
Online: http://www.learner.org/channel/courses/worldhistory/support/reading_17_3.pdf
DOCUMENTOS
1 - DO BISPO AO REI
Dom Frei Alexandre da Sagrada Família, por mercê de Deus, e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Malaca, eleito de Angola e Congo, e Governador desse Bispado.
Ao nosso muito amado filho em Cristo, Dom Afonso, Rei poderoso do Congo, Saúde e Paz em o mesmo Senhor Jesus Cristo, que de todos é verdadeira Luz e Salvação.
Amado e muito amado Filho, bendito seja Deus, pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto do Céu mandou para a terra, entre as mais vis criaturas, entre os mais indignos Ministros da sua Igreja distinguiu a nossa insuficiência, e nos encomendou o cuidado deste rebanho, que lhe custou o sangue precioso de seu Filho. Nós certamente ainda agora estremecemos quando olhamos para tão grande peso, mas também levantamos os olhos para o Jesus crucificado por amor deste mesmo rebanho, não há dúvida que sentimos animar-se o nosso coração, confiando que quem nos impôs a carga, nos alentará as forças, e ministrará os meios. Começamos a experimentar a razão da nossa confiança, lendo com os olhos arrasados em lágrimas de consolação as boas notícias de V. Majestade, e da sua Corte, que nos enviou o nosso amado Filho e Vigário Geral desse Reino, o Rev.do P.e Fr. Rafael de Castelo de Vide.
Três afectos sentimos então em nós. O primeiro foi de acção de graças a Nosso Senhor, autor de todo o bem, que preveniu a V. Majestade com bênçãos de doçura, para que, assentado no trono de seus augustos predecessores, empregasse o ceptro em proteger a Religião, Fé e Piedade, fazendo de novo arreigar a doutrina da Santa Igreja, esteio e depósito único das verdades reveladas por Deus, para salvação das almas, em os vastos domínios que abarca o circuito da sua Coroa.
O segundo foi do zelo ansioso de que essa grande obra nunca mais seja interrompida nos tempos vindouros, como desgraçadamente foi nos passados, por homens maus, e inimigos de Deus e da Virtude. Pelo que rogamos fervorosamente a Nosso Senhor que dê a V. Majestade perseverança no bem e abundantes graças para com seus exemplos arreigar nos corações dos seus vassalos, o cordial amor que mostram devotamente à Santa e verdadeira Religião, e será gloriosa posteridade que propague os mesmos Cristãos exemplos, que serão a mais preciosa herança que recebam de V. Majestade.
O terceiro foi de amor paternal desejando com uma bênção entornando todos os tesouros do Céu sobre V. Majestade, sobre a sua Real Família, sobre os Nobres que rodeiam o seu trono, e sobre todos os Fieis Vassalos, que lho sustentam. Damos-lhe com efeito todas as bênçãos que nos é permitido dar, e confiamos que o Omnipotente as confirmará do alto Céu, e suplicamos a V. Majestade que a todos os seus felizes vassalos faça constar estes nossos paternais afectos, para que vendo todos aberto o nosso coração, cada um se esforce a merecer mais o nosso amor e a nossa bênção.
Bem quiséramos Nós ir pessoalmente à Corte de V. Majestade escrever com nossas lágrimas estes protestos, na sua Real face, beijando-a com ternura, como a Filho que muito amamos. Porém, veneramos os juízos do Senhor, que nos privam dessa consolação, e em nosso lugar como em penhor do nosso afecto, entregamos a V. Majestade aqueles pedaços do nosso Coração, que licitamente podemos tirar a tantos outros filhos, que são igualmente credores do nosso Pastoral cuidado, nesta Cidade, nos vastos sertões desse Reino e nos de Benguela. Dois Padres, e muito bom espírito, zelo e sabedoria, temos bastante confiança pretendemos enviar em socorro aos outros dois Apóstolos que parece que com tanto fervor têm cultivado a seara de Cristo nesse Reino de V. Majestade. Mas como nos consta que esta presente estação não é conveniente para viajar pelos sertões, o mesmo desejo de os assegurar a V. Majestade, nos obriga a demorar-lhes a partida, para tempo menos penoso e arriscado. Como o transporte dos outros Padres foi tão cheio de inclamidades, quiséramos que V. Majestade desse com tempo tais providências, que estes segundos possam chegar sem perigo à Corte de V. Majestade. Porque, Senhor, além de ser muito preciosa a vida de um Missionário, principalmente onde há tão poucos, deve-se também atentar a grande despesa que a Rainha Fidelíssima de Portugal, minha graciosíssima Soberana, faz com estes Padres, que lhe custa cada um acima de setecentos mil reis de moeda Portuguesa: os quais Sua Majestade consagra unicamente ao zelo da Fé, e salvação das almas, não só dos povos que lhe juram vassalagem, mas dos vassalos de V. Majestade felizes pela amigável aliança, que subsiste entre os dois Impérios; a qual aliança pouco interesse dá à mesma Senhora pelo pouco comércio que os Vassalos de V. Majestade hoje fazem com os Negociantes Portugueses.
Desejando dar a V. Majestade algum sinal sensível do nosso Paternal amor, e vendo que a nossa pobreza nada pode oferecer digno do Real agrado, e atenção, somos obrigados de nos contentar de repartir com V. Majestade dos preciosos Tesouros da Igreja, concedendo, como por esta concedemos a V. Majestade quarenta dias de verdadeira indulgência, cada vez que devotamente rezar uma Ave Maria. Tomámos também a confiança de lhe enviar dois livrinhos compostos por nós para uso da devoção das Dores da Mãe de Deus.
Como V. Majestade entende bem a língua Portuguesa, poderá com eles acender muito na sua alma essa importante devoção e nós lhe seguramos da parte da mesma Senhora, muitas felicidades na vida, e na eternidade, as quais Nós de todo o nosso Coração lhe desejamos.
Luanda, 3 de Janeiro de 1785.
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 28)
2 - DO REI AO BISPO
Vai um dos sobrescritos para que V. Ex.ª veja a própria letra da mão Real que é melhor que a de muitos Clérigos, mais acertada na Ortografia. (Fr. Rafael)
Ao Ex.mo e Il.mo Senhor Dom Frei Alexandre da Sagrada Família, Bispo de Malaca, eleito do Congo e Angola, Senhor deste Bispado, meu pai espiritual e de todo meu Reino do Congo, pai muito amado que Deus guarde.
Corte de S. Salvador deste meu Reino
Mando muito saudar
Il.mo e Ex.mo Senhor Meu Bispo, e de todo o Meu Reino do Congo
Com grande amor à Santa Fé, porque sou Rei Católico, faço esta por minha Real mão sem ser nosso costume: mas por amor como às escondidas, porque eu não posso ficar assim calado sem mandar e dar os incómodos da viagem: e os parabéns de sua boa vinda e receber a sua salvada bênção até que mande a minha embaixada Real com o meu governador: mas o tempo não vai em boa via de muitos trabalhos, como Rei que há pouco nesta Cadeira Real, não posso outra coisa se não que se compadeça a muito Soberana Irmã, a Sereníssima Senhora Rainha de Portugal, e V. Ex.ª e o meu governador deste meu pobre Reino, mandando-nos Padres que nos ensinem a fé de Deus: como o têm feito os meus Padres: o Padre Doutor André do Coito, e o Padre Rafael de Vide, que andando no meu Reino destruída a Cristandade, nos têm ensinado bem e dado bom exemplo. Mas o Reino é muito grande. Il.mo Senhor meu pai espiritual, por fazer esta é secretamente por grande amor da Igreja e dos Padres, que desejo para nosso bem e das nossas almas. O meu embaixador entregará um moleque macho: perdoe meu Pai espiritual, não é muito: é amor de filho para com seu Pai, até que seja tempo de juntar os duques, e marqueses, os príncipes e os infantes, e meus filhos, para mandar a minha embaixada Real ao meu governador, como é costume dos meus antepassados. Agora fico rogando a Deus que dê à alta pessoa de V. Ex.ª largos anos de vida e saúde, como amparo de todos os seus filhos espirituais.
Cidade de São Salvador, 11 de Janeiro de 1785 anos.
De V. Ex.ª seu filho espiritual e muito venerador, muito lhe ama até à morte, obediente, O Rei Católico
O Rei do Congo,
Dom Afonso Quinto
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 28)
3 - DO REI AO BISPO
Ao Ex.mo Senhor D. Fr. Alexandre da Sagrada Família, Bispo de Congo, e Angola, Governador de todo esse Bispado, meu Pai espiritual, e de todo o meu Reino Pai muito amado, eu, Rei do Congo, Dom Afonso Quinto, Rei Cristão que crê na Santa Fé de Deus mando muito saudar.
Amado e muito amado Pai até já Deus Nosso Senhor bendito, que do Alto Céu o mandou para a terra entre as mais perfeitas criaturas, e mais dignos Ministros da sua Igreja, encomendou a Vossa Ex.ª o cuidado deste rebanho que custou o seu Sangue precioso. Nós cá todos [nos] alegrámos com a sua carta, e eu principalmente com os meus Concelhos, Marqueses, Príncipes, e segundo as pessoas do meu Reino, que todos ouvimos muito bem ler ponto por ponto da boca do meu Secretário maior, junta toda a minha Corte, e confiamos em Deus que mandou a Vossa Ex.ª para remédio das nossas almas, e pelo grande desejo que temos de ser Cristãos, e seguir o exemplo de nossos antepassados, como desde os tempos antigos receberam a Santa Fé, folgamos muito com a consolação de Vossa Ex.ª que nos distribuíra, das boas notícias que lhe deu de mim e de toda a minha Corte o nosso Rev.º Padre Vigário Geral, frei Rafael de Castelo de Vide, é verdade, mas esse Padre é mais cortês e bom, do que nós merecemos, e só desejamos ser bons Cristãos de Deus, e dou graças a Deus por tão grande bem nos fez, como já principiámos a experimentar o seu amor, ficamos com mais força para defender a Santa Fé, e crer a Deus em todos os meus Domínios, e esperamos que Vossa Ex.ª há-de cumprir a sua Santa palavra de nunca faltarem Missionários neste meu Reino, que nos ensinem, e não seja como dantes de virem os nossos padres que cá temos, que se ia perdendo tudo por falta deles, por inveja do Demónio. Se não, diga-me Vossa Ex.ª que havíamos de fazer como filhos órfãos sem Pai, morrendo de fome de todo o bem espiritual, sem haver quem nos dissesse uma palavra de Deus, mas bendito seja Deus, e o seu Santo Nome, que ainda se lembra de nós e nos dará per[se]verança no Santo Serviço, e amor da Santa Fé Católica. Recebo com humildade e os nobres que assistem ao meu trono, e fiéis vassalos todos prostrados por terra recebemos tantas bênçãos que nos lança o nosso Pai, e tão bom Pai que nos mostra o seu coração. Ouvimos com lágrimas os seus ensinos e desejamos cada um merecer tão santa bênção, esperamos os dois Padres sábios e de espírito que Vossa Ex.ª nos promete para ajudar os dois apostólicos varões que aqui temos, e vieram para este Reino no tempo da maior necessidade, quando nós chorávamos a nossa desfortuna, então chegaram essas colunas da nossa Santa Fé que sempre trabalham e nos ensinam, e até fazem as Igrejas que tinham destruído os nossos inimigos, e já se vai principiando a pôr o meu Reino como no princípio da sua Cristandade que havia na minha Corte doze Igrejas, e cada uma tinha os seus Padres, por isso com grande alegria fico, com olhos no caminho pelos novos Pais, e todos têm aberto o meu coração, e procurarei que não padeçam tanto como os outros Padres quando vieram, e agora já os caminhos estão abertos, e ninguém os pode afundar. Conheço e agradeço nisto muito quanto a minha Irmã Soberana Rainha de Portugal faz pelo bem do meu Reino, e Reis antigos tiveram boa amizade, quanto ao negócio, venham todos sem medo, eu quero que os Portugueses venham sempre aqui negociar com a minha gente e já vêm muitos. Estimo a graça que Vossa Ex.ª me concede de indulgências que muito como Rei Católico e os dois livrinhos das dores da Mãe de Deus, ainda que os não recebi, ficariam por esquecimento ou virão atrás sempre fico satisfeito esperando para diante e a Mãe de Deus me alcance Luz para o meu Reino, e bom governo de eu Rei, e consolação de meus vassalos, o que encomendo muito nas orações de Vossa Ex.ª, Pai espiritual que Deus guarde.
Corte de S. Salvador deste meu Reino do Congo, Primeiro de Abril de 1785
O seu filho espiritual Sereníssimo Rei do Congo Dom Afonso Quinto
Mandei meu segredo diante de V. Ex.ª por amor que eu tenho do meu pai espiritual pudera haver dúvidas
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 28)
4 - DO REI AO GOVERNADOR GERAL DE ANGOLA
Eu el-Rei do Congo, mui poderoso Dom Afonso Quinto, Senhor de toda esta Parte da Etiópia, Rei Cristão que teve a Santa Fé de Deus: mando saudar ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Governador e Capitão General de Angola. Não é falta de amor nem de amizade, não ter mandado o meu embaixador a V. Ex.ª a dar os parabéns da sua boa vinda e agradeço o grande amor da minha Irmã, a Sereníssima Rainha de Portugal, em nos mandar padres que nos ensinem a Santa Fé de Deus: mas segundo o nosso costume dos Reis do Congo, não mandamos embaixada aos governadores de Luanda, sem primeiro ajuntar todos os duques, príncipes e marqueses: mas cá em Congo, não é como em Portugal, que os príncipes estão com o Rei: aqui cada um vive nas suas quintas: o que fica para adiante: mas agora que vai a essa cidade o nosso pai espiritual e vigário de todo este meu Reino, P.e Frei Rafael de Castelo de Vide, não posso ficar assim calado sem mandar saudar a V. Ex.ª por esta minha carta Real: e principalmente o meu pai espiritual, ele dirá tudo na sua presença, pois tem conhecido o meu coração e o quanto estimamos a amizade antiga que sempre tiveram os meus antepassados Reis do Congo com os augustos Reis de Portugal e quanto amamos os Padres e choramos por eles: e que de V. Ex.ª confiamos muito junto com o nosso Bispo e pai: que já mos mostrou o seu amor. Lembre-se deste meu pobre Reino que tanto necessita de quem o ensine a Santa Fé de Deus: e não tornemos a ficar órfãos como no tempo passado: esta minha Real Carta é feita por minha mão em sinal de amor e boa amizade e quero que todos os portugueses venham aqui negociar como dantes, sem medo, porque eu os hei-de defender e não poderão padecer algum mal.
Deus guarde a V. Ex.ª, meu Governador, por muitos anos, para amparo do meu Reino e da Cristandade de minha Corte e Reino do Congo.
Cidade de São Salvador, 11 de Abril de 785.
Ass.
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 8)
5 - DE FR. RAFAEL AO BISPO
Copia da carta do Missionário
Fr Raphael
Ex.mo e Rev.mo Senhor,
Com as mãos levantadas ao Céu recebi a carta de V. Ex.ª de três de Janeiro deste presente ano, e foi a primeira que tive a honra e felicidade de receber das suas sagradas mãos; porque a primeira em que V. Ex.ª me fala até aqui não tem chegado às minhas mãos, nem alguma coisa que viesse do Reino, nem de Luanda, e suspeito se perder tudo; mas não importa, Deus seja louvado para sempre, o que importa é a boa saúde e vida de V. Ex.ª para bem de toda esta pobre gente e dessa Diocese, poso (sic) V. Ex.ª já vai mostrando o bom espírito, e vigilante cuidado para com esta vasta seara assim na carta que V. Ex.ª escreveu ao Rei deste Reino, e sua corte que me pareceu bem entrega-la, e foi aceita com universal aplauso, consolação e alegria de todos, como também pelo bom zelo, com que se deseja inteirar de tudo o que pertence a esta grande porção do seu cuidado, e amor, de V. Ex.ª Deus Nosso Senhor não deixará de premiar os primeiros prelúdios de tão cuidadoso pastor Ele inspirará os meios de os executar.
Sobre as reflexões que V. Ex.ª fez sobre a minha carta que mandei de Bemba são bem fundadas, e eu sobre a que V. Ex.ª me escreve não reflecti, mas me edifica a grande humildade de V. Ex.ª pois com a dignidade episcopal não perdeu a santa e louvável criação do seu sagrado e apostólico seminário: dizendo-me que me pede que eu vá a sua presença a Luanda, quando mo podia mandar. Eu não posso resistir a esta súplica, nem deixar de obedecer, e se eu tivesse recebido a primeira carta a estas horas estaria nessa cidade beijando as mãos de V. Ex.ª com grande alegria da minha alma; mas ainda é tempo de ir gozar desta felicidade, e quis logo partir com estes mesmos portadores, porém espero mais alguns poucos dias ajuntando alguns carregadores, e se Deus quiser por todo este mês de Abril parto, mas como o tempo agora não é bom por causa das muitas chuvas, rios e lagoas, irei mais devagar, e juntamente fazendo missão pelo Ducado de Bamba para onde ainda me ficarão muitos serviços, e satisfazer a alguns Príncipes, que me chamaram, e eu não os pude satisfazer então, quando lá fui o ano passado, e querendo Deus até o S.to António estarei nessa cidade para tomar a sagrada bênção de V. Ex.ª e então virei com os Padres que V. Ex.ª destinar para este Reino para os acompanhar e livrar de muitos trabalhos, que nós padecemos quando viemos por menos práticos e agora já mais experimentados nestas viagens, estarei, trabalharei, porque Deus mo merece, e todo eu feito em migalhinhas não sou capaz de satisfazer ao amor imenso de meu Deus; desejo bem agradar aos olhos de meu Senhor e desejo ardentemente dar a vida por quem primeiramente a deu por mim, não mudo, nem nunca mudei de vocação, ser o que diz o apóstolo; e sei tão bem o que diz Jesus Cristo meu Senhor no seu Evangelho suspiro sim pela mãe a Santa Província, mas farei sacrifício de muita saudade que nada tem de terrena, e ainda que de muito inferior merecimento e servo inútil direi como aquele santo Bispo Turonense = Domine si adhuc Populotus sum necessarius non recuso laborem=. Quanto o eu mandar pedir sucessor não é enfado de trabalhar, mas temores da minha consciência e conhecimento da minha miséria e indignidade. Isto mesmo logo no principio eu o mandei pedir a Sua Ex.ª seu antecessor; mas aquele senhor não me envio; se Deus for servido que eu chegue aos pés de V. Ex.ª eu terei mais justa consolação; mas como por algum acidente se não efective a minha chegada não posso deixar de responder algum pouco ao que V. Ex.ª me pergunta.
1.º Em todo este Reino do Congo, Mossul, Bamba, Sonho, Sundi, Embata, Lemma, Incuso, etc. não há Príncipe nem povo propriamente gentio, e só lhe faltam os Padres há muitos anos e só da outra parte do Zaire há muito gentilismo, mas distante daqui muitas léguas.
2.° Aqueles gentios não será fácil reduzi-los, porque é má gente, e devoradora enimica adinvicem só se algum quiser lá ir morrer sem algum proveito, mas aqui não falta em que Missionários se ocuparem com mais algum lucro.
3.° Este nome cristão entre estes povos tem a verdadeira significação, não há outra crença, votos, ou culto ainda que misturado com muitas superstições e maus costumes e vícios pela falta de Padres, e enganos de alguns malditos homens feiticeiros, ou embusteiros que os enganam para lhe tirar as suas coisas com promessas de os livrarem de alguns males; e mais nada.
4.º O avultado número de baptismos são adultos, e párvulos filhos de cristãos, e principalmente nas terras mais remotas aonde temos ido por falta de padres que os baptizem, faltando em muitas províncias há mais de quarenta, ou cinquenta anos, e outras que nós temos corrido aonde nunca foi padre no tempo dos nascidos, entre eles ternos baptizado muitos velhos decrépitos, etc., etc.
5.° Os adultos são previamente instruídos com exação em os mistérios da fé, e obrigações de cristão, quanto se pode fazer entre quatrocentos e mais baptizados que cada dia acodem ao Padre na missão, vindo muitos dos sertões acudindo aonde os padres fazem assento por alguns dias até correr grande parte da terra, e saindo às vezes chusmas mais do vinte léguas com clavas, calores, fomes, e como se podem demorar ainda que seja dois dias para se catequisarem como lá no Reino se costuma aos novos convertidos. Mas não se lhes falta ao preciso das cerimónias, instrução e para V. Ex.ª julgar bem o que é este vasto Reino considere que temos baptizado perto ou mais de duzentos mil, e ainda não chegámos a correr a mínima 3.ª parte deste Reino, e sempre andamos ora um, ora outro em missão.
6.° As muitas confissões, e sermões que fazemos são por meio de intérprete, nem de outra sorte se pode fazer, nem já mais algum dos Padres antigos o fizeram, só se no principio aos primeiros operários Deus lhe deu essa graça, o que não sabemos, e assim mesmo se tem radicado a Religião Cristã nestes países há tantos anos arreigada. Eu tenho feito bastante diligência para alcançar a inteligência desta língua, mas apenas tenho podido falar algumas palavras, mas não posso fazer algum discurso inteiro, nem os mesmos intérpretes a costumam escrever e alguma vez que eu lhes tenho feito traduzir alguns pedaços eles mesmo ao depois o não sabem ler. É língua assaz dificultosa, cheia de síncopes, e muitas barbaridades. falta de termos, e até agora se não [tem] reduzido a alguma forma de se aprender; um Capuchinho há mais de cem anos fez um Catecismo de doutrina vertida pelos intérpretes em sua língua, e na língua Italiana, Latina, e Portuguesa; eu o tenho comigo, mas para alguma pequena luz que tenho desta língua conheço o quanto se tem viciado como língua viva, e os intérpretes por este livro não podem ler alguma coisa de sua mesma língua, e nisto mesmo tenho respondido à 7.° pergunta de V. Exª.
8.° Será meio de facilitar a subsistência de muitos Missionários neste Reino sem tanta dependência do Real Erário, e dos subsídios dessa cidade, se os missionários forem da nossa Sagrada Religião de S. Francisco que se contentem com um pobre hábito, descalços, e se quiserem fazer alguma penitência e comerem só os frutos da terra e alguma coisa que lhe derem de esmola nas missões do mesmo género; em uma palavra virem ao Reino do Congo e só lhe mandarem de Luanda o que pertence ao S.to Sacrifício da Missa, etc. desta sorte ternos nós vivido alguns tempos, não obstante a avultada esmola que nos dá a N. Soberana Poderosíssima, porque o caminho é longo, os ladrões muitos, os víveres caros, e de mais o que se gasta na condução e coisas para a Igreja. Quanto aos prédios em que V. Ex.ª fala, não há alguns; só se manda vender a Luanda amendoim, massa, (massa é milho), e feijão, que mais não há, nem esta gente se ocupa em algum negócio se não o Limbo, o fazendas que aqui lhe trazem, e algum sal, que corre todo o Reino. Sim podem os Padres alcançar alguns escravos pelos seus serviços, como nós temos a casa cheia de crianças que só servem do comer; mas que negócio e que fruto se pode tirar daqui tão alheio da nossa profissão; aceitamos estes para os doutrinar e servirem a Igreja e são da nossa parte já livres, nem mais deles temos que rido até aqui.
9.º Será bem conveniente encomendar-se esta missão em geral a alguma determinada família Religiosa que seja à minha Província, a mim não me convém falar. V. Ex.ª o determine, e o melhor que me parece, que qualquer Província que receber esta tão grande e meritória fadiga podia formar seu convento em Luanda, e pôr-lhe aí um Prelado, que igualmente fosse Lente para com a criação religiosa lhe dar os preceitos científicos, trazendo autoridade de aceitar noviços ainda naturais da terra e depois reparti-los por estas missões, ou ainda virem alguns do Reino, já criados ou tendo o seu noviciado pelo Caminho como usam algumas religiões que têm os seus Conventos no Brasil, e na Índia, ou também obrigar a isto as respectivas religiões que têm os seus Conventos em Luanda.
10.º No caso de eu por algum incidente não chegar à presença de V. Ex.ª será o mais acertado que os Padres tragam os carregadores do Libongo, porque a falta destes foi a nossa maior ruína, e um bom condutor, e não tragam demasiadas cargas, e dando-lhe Deus Nosso Senhor saúde, cuja nos faltou a todos, poderão vir agora melhor, e chegando ao rio Loge mandarem logo embaixador à Banza chamada Mossaba, aonde se acha um Príncipe nosso amigo com o título de Capitão da Igreja para que este vá encontrar os Padres com a sua gente e o mesmo os encaminhar para diante até outros Capitães, e Mestres em Bamba, e daí mandar logo noticia ao Tenente que se achar na Corte, e ao Rei quo tudo se preverá do melhor modo, porque nada disto nós não achámos, e sempre íamos às cegas, além das nossas contínuas moléstias, o os Padres que tragam algumas devoções para repartir moderadamente e gerebita para os devotos, e passagens dos rios; mas eu espero em Deus me dará forças para lá chegar antes de partirem que por todo o Junho o farei.
11.º Quanto ao que V. Ex.ª me pergunta de ser ou não ser conveniente de nos virem ajudar alguns Religiosos de outra Ordem: respondo que aqui se estimam todos os Sacerdotes zelosos e exemplares, desinteressados amigos de Deus e das almas, e que não tragam outro fim, que o trabalhar pela sua salvação, e que se não intimidem com mil incomodidades, e impertinências, que aqui hão-de experimentar, e dispostos a sofrer as fomes, as sedes e faltas inumeráveis, etc.
Ultimamente respondo que é muito acertado que se faça o que V. Ex.ª diz a respeito de alguns moços nobres que se podiam criar deste Reino em algum Seminário em Lisboa e V. Ex.ª ter algum em sua casa, mas quanto a seus Pais, ou Rei darem para isto alguma coisa me parece muito dificultoso porque nós temos em nossa casa cinco que aprendem a ler e escrever, e seus Pais não dão para isto alguma coisa, nem a seus filhos de vestir, nem de comer, e nós pomos tudo e os trazemos asseados, e servem na Igreja como meninos do Coro, e o mais que aqui falta de responder fica dito acima; e nós não deixamos de conhecer o bom zelo de V. Ex.ª e não de algum interesse, e só o bem espiritual deste Reino, e é tudo o que segundo Deus posso responder a V. Ex.ª sobre o que me procura, e se Deus’ for servido que eu chegue a sua presença direi o mais.
Sobre o caso proposto recebo a sábia disposição de V. Ex.ª e foi Deus servido que o dito Príncipe viesse a esta Corte três dias depois que recebi a de V. Ex.ª e depois de bem examinado conheci que tinha havido alguma culpável causa da sua parte de se contrair o matrimónio com o tal impedimento, mas ele sempre ficou na fé de que ficava bem casado porque não queria outra mulher e as demais que antes tinha havia já expelido escolhendo aquela. Eu conhecendo que ele a não largava, e que ficaria em pior estado, o mandei confessar, e ali mesmo revalidei o matrimónio ainda que sabia ser melhor estar junto a sua consorte, não era possível vir, nem eu lá poderia ir agora, nem eles aqui tornarem, porque esta foi a primeira vez que o vi nesta Corte, mas eu pela sua casa e estado tenho já passado em missão, e fui o mesmo que os casei, fazendo todas as diligências necessárias para se contrair aquele matrimónio, mas ninguém ali descobriu o impedimento o qual soube depois por acaso pelo que logo os mandei separar, o que eles fizeram, mas não deixaram de se ajuntar ainda por algum tempo, e agora com a dispensa ficou muito agradecido. Meu companheiro, o P.e Dr. Couto, ficou muito agradecido à lembrança de V. Ex.ª e das suas devotas, ainda que daquelas senhoras não recebeu a carta, como nem eu alguma, e na verdade a nossa união e caridade entre ambos é admirável e edificativa de todo este Reino, e ambos seguimos os mesmos projectos de procurar só o que é de Jesus Cristo, e não o que é nosso. Ele escreve a V. Ex.ª e entre
Remeto a resposta do Rei do Congo, o se quisera que V. Ex.ª se lhe tornar a escrever ponha primeiro Congo do que Angola como V. g. Bispo do Congo e Angola porque é o desejo e opinião de todos que os Senhores Bispos são primeiro do Congo, e dizem que os moradores de Angola é que mudaram esta palavra. Nós assim o fazemos por lhe dar esta consolação, e o seu fundamento deles é porque aqui foi a primeira Sé, e assento dos Senhores Bispos o ao depois em Luanda; e na verdade assim é: e é de pouco momento para nós, só em as cartas que aqui lhe vêm, mas para eles de muito.
Renovo a V. Ex.ª a minha sujeição, a obediência e desejara em tudo fazer a sua vontade, e dar gosto à sagrada pessoa de V. Ex.ª até que eu pessoalmente vá aos seus pés tomar a santa bênção, e então falarei o mais, e no que pode lisonjear o gosto do Rei, assim em livrinhos que lhe promete, que não vieram agora como no mais, e Deus guarde a V. Ex.ª R.ma por muitos anos na Sua Divina Graça e prospere o seu governo como esperamos, e já vamos experimentando. Corte de São Salvador do Reino do Congo 4 de Abril de 1785.
De V. Ex.ª R.ma
Súbdito o mais inútil, e humilde
Fr. Rafael de Castelo de Vide
Missionário e Vigário Geral
(Arquivo Histórico Ultramarino – Angola, Caixa 70, Doc. 23)
Esta carta foi publicada em P. M. Laranjo Coelho (1878-1969), O bispo missionário Fr. Rafael de Castelo de Vide: alguns subsídios inéditos para a história da sua notável acção espiritual e temporal em Angola, Congo, Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Sep. Memórias da Academia das Ciências Lisboa, 1962, 7, 56 pags.
6 - DO BISPO AO GOVERNO DE LISBOA
As ordens de V. Ex.ª e o meu próprio zelo desde que a administração desta Igreja me foi confiada, levaram a o Congo os meus cuidados. Escrevi a Fr. Rafael, rogando-lhe que viesse a esta cidade, a fim para me dar em voz as informações que por escrito sempre são escassas e confusas, e pouco úteis; como para levar consigo os dois novos operários. Coisa que é frequente nesta correspondência, de que Negros são portadores. Remeti segunda, acompanhando-a com uma carta para o Rei, de que envio a V. Ex.ª uma cópia. Entretanto o mesmo Rei, por mostrar sua devoção, me escreveu, em horas da viagem, enviando-me de presente um moleque: carta de que também vai a cópia, que V. Ex.ª lerá com lágrimas, como eu; e pouco depois tive dele outra, em resposta da minha; e vai também sua cópia, como da de Fr. Rafael.
A minha súplica a Fr. Rafael teve o desejado efeito, e aqui o espero por todo este mês, em cuja companhia irão os novos Padres, sem tantos perigos, e trabalhos, como sofreram os primeiros. Consegui, além disso, que o mesmo Fr. Rafael renunciasse por agora à liberdade, que lhe eu não podia negar, de se recolher à sua Província; e me promete que só quererá ir quando eu julgar que posso passar já sem ele, como tudo se vê na sua dita carta.
Se não são encarecidas as notícias que este Padre me dá, só naquele Reino há alguma coisa de Religião, como também em Sonho, segundo as notícias dos Capuchinhos; o mais terreno onde os Brancos põem os pés, está inteiramente perdido; porque eles são nestes Sertões os maiores inimigos da Religião; em vez de abraçarem os conquistados o culto dos conquistadores, estes é que se vendem à irreligião dos vencidos. Vivem nestes matos dos nossos domínios, não centos, mas milhares de Europeus, e filhos ou netos deles, que se chamam igualmente brancos, entregues à dissolução, desfrutando a fragilidade dos Negros, sem fazerem caso dos Párocos, nem dos Capitães Mores, que não lhes podem chegar, porque estão concentrados e dispersos. Nos mesmos Presídios, e Feiras, passam anos que os Moradores não fazem caso dos Sacramentos, e até na hora da morte, grande parte deles, nem os pedem nem os aceitam. Estes escândalos dos Brancos V. Ex.ª conhece quando devem imprimir nos corações dos Negros. Ainda que os Párocos queiram pregar, que fruto farão em quem os não ouve? As excomunhões só espantam a quem tem fé: outros meios de coacção não estão no arbítrio dos Bispos, ligados com as ordenações dos Soberanos. É consequência de tudo não haver nesta diocese costumes, disciplina, ou fé, , salvo no Sonho e Congo, por serem países não trilhados dos Brancos, de maneira que se eu não temesse de desagradar à minha Soberana, e não olhasse a outros justos respeitos, cederia ao impulso do meu coração, que me incita a ir pôr na Corte de S. Salvador a minha residência.
Ponho na presença de V. Ex.ª estes objectos, para que a sua iluminada compreensão, meditando-os, me compadeça, e ministre os Socorros possíveis, sem os quais todos os esforços do meu zelo, e inteligência, se alguma tenho, serão sempre baldados.
Deus guarde a V. Ex.ª , é quanto lhe rogo, para glória da Nação, e até para meu amparo.
Luanda, 19 de Junho de 1785
De V. Ex.ª,
Humilde Capelão,
Fr. Alexandre, Bispo de Malaca, Governador
Il.mo e Ex.mo Sr. Martinho de Melo e Castro
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 28)
7 - DO GOVERNADOR-GERAL AO GOVERNO DE LISBOA
Il.mo e Ex.mo Senhor,
Já a V. Ex.ª tenho por diversas vias informado da decadência em que vim achar esta Conquista, não tendo a fortuna de desdizer-me agora, confessando a V. Ex.ª que me enganei no figurado; mas antes vivificando-me o tempo muito maior o mal do que me parecia. Frequentemente, estou vendo passar por esta Costa, e muito junto a terra, embarcações que na boca da Barra se fazem no Bordo do Norte, desfrutando o Comércio por muito perto deste Distrito, e desembarcando o Contrabando que para as suas embarcações conduzem.
Tenho posto toda a diligência por evitar a introdução no Dande, e que por esta Jurisdição nada para o centro transite, vindo muito tarde para mais longe ter vigor esta defesa, que com fundamento me persuado conseguiria se viesse para Angola, quando fui para Minas.
Mandei um presente e uma Embaixada ao Marquês do Mossulo que, advertido desta marcha, veio com a sua Corte esperar o meu Enviado ao caminho, e com desculpas frívolas se escusou de recebê-lo na sua Banza e de aceitar o Mimo, dizendo que os Macotas lho não consentiam, e o estar pelos Franceses de tudo fornecido. Declarei-o em consequência por um Bando, Inimigo do Estado, e vedando quanto me é possível, o pequeno comércio dos Mossuis, que a esta Cidade e seus subúrbios vinham negociar; tenho notícia de que pretendem solicitar reconciliação, e espero ansioso a sua Embaixada, preferindo sempre os meios pacíficos ao expediente de fazer-lhe a guerra, que, suposto estar tão destituído de forças, todas empenhava contra este mau vizinho, se não esperasse resposta dos meus primeiros ofícios sobre a usurpação dos nossos direitos a esta Costa, especialmente daqui até Cabo Padrão, amplitude a que apenas poderia chegar o negócio português.
Entretanto, deliberei-me a fazer a exploração do Cabo Negro, que Deus queira felicitar, abençoando a eficácia com que a empreendi por mar, e por terra, pois se não podia contar em estabelecimento na Costa, ignorando o Sertão que lhe corresponde, e sem prever os meios da subsistência.
Também preveni quanto me foi possível que não obstassem aos meus projectos as discórdias do Governador de Benguela e do Juiz de Fora, que não saberei decidir-me se acaso chegarem a verificar-se as pancadas de que se têm ameaçado, sendo tão limitadas as minhas faculdades, que só posso adverti-los com brandura e dar conta, como se a agudeza de moléstias tão graves permitissem os tardios recursos da Europa.
De todo e qualquer novo acontecimento informarei a V. Ex.ª para o fazer presente à Majestade da Soberana.
Deus Guarde a V. Ex.ª.
São Paulo de Assunção, em 25 de Junho de 1785.
Il.mo e Ex.mo Senhor
Martinho de Melo e Castro
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, caixa 70, doc. 28)
8 - DO BISPO AO GOVERNO DE LISBOA
Il.mo e Ex.mo Sr.,
Pouco há que mortifiquei a V. Ex.ª com ofícios mais extensos e multiplicados do que eu quisera, que foram em uma das Naus da Ásia. Enviei então cópias das cartas do Rei do Congo, que anunciavam uma próxima Embaixada. Esta chegou, e o Ex.mo General a recebeu primeiro e com todas as demonstrações, que podiam obrigar os negros, que vão com efeito apregoando o seu agradecimento: meio que parece capaz de alargar aos nossos nacionais esta estrada de comércio, fechada quase há longos anos. No dia seguinte recebi eu também com a possível solenidade o Embaixador e Carta Régia convidando-o a jantar, e sentando-o a par de mim (nú como vinha) o que tudo agradeceu muito.
Do apostólico varão Fr. Rafael, que veio com o Embaixador, me instruí exactamente das coisas daquela Igreja e suas necessidades, as quais remediei quanto pude com o que Sua Majestade foi servida fiar da minha economia; e por hora tem quanto a esta parte bastante socorro para alguns anos.
Não há dúvida que algum fruto dos seus trabalhos consola aquele Padre e o seu Companheiro, o Dr. Couto; mas nem tem corrido a menor parte do Reino, nem beneficiado competentemente as terras a que puderam chegar. Que podiam fazer dois homens em tão dilatada campina? 0 que fizeram merece muito louvor ao seu zelo, mas é muito mais o que não podem, e que é preciso fazer-se.
Esta necessidade teve agora o remédio, que me era possível, enviando àquele Reino os P.es Fr. José do Sacramento e Fr. José de Torres, ambos Gracianos, que dos nove, que comigo vieram, são os únicos que se têm portado como deviam. Com eles enviei o sobredito Fr. Rafael de Castelo de Vide, a quem com rogos e carícias movi a aceitar outra vez o cargo de Vigário Geral daquele Reino para que a sua experiência e a veneração que já lhe têm os povos facilite aos dois novos Padres assim a jornada, como o bom agrado d’El-Rei, dos Grandes e do Povo. Por esta conta haverá presentemente no Congo quatro Padres, se estes lá chegarem vivos todos; a cujo fim o General com exemplar actividade e zelo tem dado todas as possíveis providências, que lhe merecem bem o agradecimento de Sua Majestade.
Mas, Ex.mo Senhor, que são quatro Padres no grande Reino do Congo, onde muitas dúzias seriam poucos? Correndo centos de léguas em cada estação de Cacimbo, que poucos meses dura, não se podem demorar em cada Banza o que baste para ao menos deixar os fiéis medianamente instruídos. E como hão-de instruir os que em grandes magotes lhes saem às estradas, vindos de dez e mais dias de distância? O bom zelo dos Padres fuça mortificado, e a boa disposição da gente fica desperdiçada: a fé comunicada tão passageiramente fica outra vez abafada na ignorância e sem correcção os abusos e erros que produziu a falta de Padres por tantos anos.
O mesmo zelo que move os Missionários a correr tantos países para acudir ao desejo e rogos dos Potentados, que os chamam às suas Províncias, padecendo nestas peregrinações mil faltas e mil descómodos, que só os conhece quem os experimente, põe os mesmos Padres no perigo de não poderem trabalhar; viu-se no bom Fr. João Gualberto, que bem falta fez àquelas missões; vê-se já no Vigário Geral, que por efeito dos seus trabalhos tem estragado o peito com uma hemorragia, que me dá susto de perder brevemente este bom obreiro; é natural temer que o mesmo suceda aos mais; e tudo mostra a necessidade de haver ali mais Padres, a qual não posso eu remediar, e só posso recorrer a S. Majestade por meio de V. Ex.ª.
Porém ainda recorro mais a Deus para que toque os corações dos que podem cá ser úteis, e aparte os que hão-de trazer a esta Igreja mais dano que proveito. Não servem homens que se lembrem de interesses, que calculam o que podem lucrar para si, e não o que devem ganhar para Cristo; dos que cá estão, uns largam as Igrejas, em que não acham os emolumentos que esperavam, e clamam que vieram enganados; outros me dizem abertamente que só querem vir para parte onde se coma pão de trigo; tal há que expressamente e sem rebuço mo diz = eu vim com intento de forrar alguma coisa para passar a velhice na minha Província =, outro queixa-se de que lhe não pagaram as côngruas vencidas, mas não tem pejo de dois faqueiros de prata, com que brevemente partirá para esse Reino; e ainda queria atestação minha, que não leva; e já de outro avisei a V. Ex.ª que trouxera empregados bons 600$ rs. Destes não traga Deus a esta infeliz Igreja.
Compadeça-se V. Ex.ª do pobre Bispo, que vendo no redor de si tantos males, não os pode remediar, nem ainda dar algum passo tendente a preparar para os sucessores o único remédio, que depende das providências, que já avisei a V. Ex.ª de quem espero a mais eficaz protecção.
Deus Guarde por muitos anos a V. Ex.ª
Luanda 24 de Julho de 1785.
Il.mo e Ex.mo Sr. Martinho de Melo e de Castro
Humilde Capelão
Fr. Alexandre, Bispo de Malaca, Gov.
(Arquivo Histórico Ultramarino, Papéis de Angola, Caixa 70, doc. 37)
Esta carta foi publicada em P. M. Laranjo Coelho (1878-1969), O bispo missionário Fr. Rafael de Castelo de Vide: alguns subsídios inéditos para a história da sua notável acção espiritual e temporal em Angola, Congo, Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Sep. Memórias da Academia das Ciências Lisboa, 1962, 7, 56 pags.