3-4-2015

 

Visitas d’El-Rei D. João V à Inquisição de Évora

 

                                                                               Ramos Coelho   

               

 

No ano de 1725, a 7 de Outubro, ajustaram-se em Madrid os artigos preliminares dos tratados para o casamento do príncipe do Brasil, depois D. José I, com a infanta espanhola D. Mariana Victoria, e o do príncipe das Astúrias, depois Fernando VI, com a infanta portuguesa D. Maria Bárbara e ultimadas as negociações, celebraram-se finalmente os desponsórios dos primeiros na corte de Espanha, e os dos últimos na de Portugal. O fim destas recíprocas uniões era apertar os antigos laços de parentesco entre as duas famílias reinantes, e com eles as relações entre os dois países, que durante muilo tempo enfraquecera a guerra da sucessão da coroa de Espanha em que Portugal representou tão notável papel, chegando as suas tropas, sob o comando do marquês das Minas, a entrar vitoriosas em Madrid e a proclamar aí o governo de Carlos III.

Com o ano de 1728 cuidou-se na entrega das princesas. Decidiram os reis D. João V e D. Filipe V fazê-la pessoalmente, encontrando-se nas extremas dos seus reinos, para a que foi escolhido o rio Caia, que junto de Badajoz os separa, e no qual se fabricou uma casa magnífica de madeira dividida em três compartimentos: um da parte de Portugal, outro de Espanha, e outro intermédio, destinado à entrevista dos soberanos.

Não é nosso intento descrever qual a grandeza com que D. João V realizou esta jornada, nem o acto da entrega. Basta sabermos que o acompanhou a maior parte da corte; que no dia 8 de Janeiro de 1729 saiu de Lisboa, embarcando perto das oito horas da manhã no bergantim real com o príncipe, o infante D. António e os criados que o seguiam: que às quatro horas da tarde entrou em Vendas Novas, onde pernoitou no Palácio que para isso aí mandara construir de propósito, e que no outro dia continuou a viagem, e, passando por Montemor, foi ficar a Évora, onde se demorou alguns dias. A rainha, acompanhada da infanta D. Maria Bárbara, infante D. Pedro e pessoas da sua comitiva, partiu de Lisboa a 9 e foi nesse dia poisar a Aldegallega, no outro a Vendas Novas, e, por causa do mau tempo, só a 12 chegou a Évora.

Estiveram Suas Majestades nesta cidade até 14, em que partiram para Vila Viçosa, e daí para Elvas e para o Caia e durante esses dias El-Rei andou vendo o que havia nela de mais notável e visitando alguns mosteiros, a que deu esmolas, principalmente o da Cartuxa, padroado da casa de Bragança, e o do Santo António, em cuja igreja estava sepultado o arcebispo de Évora, D. Teotónio.

Uma visita fez porém D. João V, de que não nos consta rezem os historiadores - a da inquisição - nem é natural que a escrevessem, porque se guardou a seu respeito o maior segredo em obediência às ordens de Sua Majestade; e é dela que nos vamos ocupar, transcrevendo o seguinte curiosíssimo documento (*):

Primeiramente, logo que chegou a esta cidade de Évora, ordenou Sua Majestade ao notário da Inquisição de Lisboa, Thomaz Feio Barbuda, que fosse levar recado ao inquisidor da primeira cadeira, que determinava ir ver os cárceres  em sua companhia, dele e do seu físico-mor, para o que havia de determinar hora certa, e que, como ia oculto,  não queria assistência dos mais ministros; e que havia de fazer a entrada pela porta do alcaide dos cárceres; o qual recado aceitou o dito inquisidor, e lhe respondeu que o que Sua Majestade lhe ordenava executaria na mesma forma e que a toda a hora que Sua Majestade lhe fizesse aviso de que queria ir, se abriria a porta do alcaide para por ela fazer a sua entrada.

Em os 13 do mês de Janeiro deste presente ano de 1729 ordenou Sua Majestade ao dito notário, Thomaz Feio Barbuda que dissesse da sua parte ao dito inquisidor que pela uma hora da tarde tinha determinado ir ver os cárceres em companhia das pessoas já ditas, ao que respondeu que faria o que Sua Majestade lhe ordenava; porém, sem embargo disso, Sua Majestade não veio à mesma hora que tinha determinado, porque, tendo saído fora na manhã do tal dia, se recolheu tarde; mas veio depois das cinco para as seis horas da tarde; e a este mesmo tempo em que veio o tinha ido esperar o dito Inquisidor à porta do dito alcaide, por onde fez a sua entrada, recebendo-o ai com a reverência devida; e logo Sua Majestade lhe falou com bastante agrado dizendo que muito bem o conhecia, pelo que lhe beijou a mão. Neste tempo o veio acompanhando por dentro das casas do dito alcaide, entrando pela porta que faz serventia para os cárceres, e descendo pela escada que fica no primeiro corredor de cima para os corredores do baixo, os quais Sua Majestade andou vendo; e mandou abrir alguns cárceres que estavam desimpedidos, examinando o que havia que ver neles. Reparou em alguns serem maiores que outros, por excederem na grandeza uns nos outros e também em alguns serem bastantemente escuros, que mal se vê neles. Perguntou se costumavam estar alguns presos juntos, ou se estavam separados; no que respondeu o dito inquisidor que algumas vezes estavam juntos quando não havia inconveniente para isso. Também perguntou que corredores eram os que houve quando teve princípio a Inquisição.

Logo depois de ter visto e examinado os ditos corredores e cárceres, o que fez com toda a cautela, foi ver os corredores de cima, acompanhando-o o dito inquisidor; e subiu pela dita escada que faz serventia para os mesmos; os quais viu; o entrou em alguns que estavam desimpedidos; e, perguntando pelos que tinham presos, mostrou-se-lhe um. Disse o dito inquisidor se queria Sua Majestade que mandasse abrir a porta do cárcere e que falasse ao preso que o estava por culpas de feitiçarias e encantador de animais; e, ordenando-lho assim, falou ao dito preso, fazendo-lhe algumas perguntas gerais: que visse o lugar em que estava, e que devia cuidar muito nisso e tratar do descargo da sua consciência, e que já tinha tido tempo bastante para o fazer, e outras semelhantes a estas. A esse tempo esteve Sua Majestade a uma ilharga do cárcere, de sorte que o preso o não visse e tendo mandado afastar o dito físico-mor: e esteve ouvindo as ditas perguntas que se lhe fizeram e respostas que o preso deu; e, por dizer que ele criara uma loba, a qual cobiçara o senhor infante D. Francisco, foi motivo este que causou riso a Sua Majestade.

Neste mesmo tempo perguntou aonde ficavam os cárceres das vigias, dizendo os queria ir ver; e, por ser já tarde, se mandou vir uma vela acesa, para poder subir pela escada que faz serventia para os mesmos, acompanhando-o o dito inquisidor; lhe foi mostrar o primeiro cárcere, em que está um preso por culpas de judaísmo da vila de Estremoz aonde Sua Majestade se pôs de joelhos em a primeira vigia do mesmo, e aí se deteve por algum espaço de tempo, vendo se via ao dito preso e o que este fazia; e, imediatamente que se ergueu, disse que via muito mal o preso e que não pudera perceber nada do que este obrava, e que no particular das vigias devia haver grande cautela a respeito do que as testemunhas juravam do que viam neles, porque àquelas mesmas horas podia acontecer que os presos que estivessem nas vigias comessem sem que as testemunhas os vissem comer; e que lhe parecia imperceptível poderem depor acerteziamente (sic) as testemunhas neste particular, e se o tal preso fazia as obras de cristão, rezando as Ave Marias ou não; e o dito inquisidor respondeu que as testemunhas não depunham senão do que viam; e que ainda àquelas horas se via bastantemente; o que às horas de Ave Marias todos os presos tinham luz nos cárceres e se via tudo quanto eles obravam, a se rezavam as Ave Marias; e que a causa de não ver Sua Majestade àquelas horas o que o preso fazia era porque, tendo vindo da parte dos corredores dos cárceres, onde havia luz, a falta dela que havia no tal lugar das vigias, que estava escuro, fazia com que Sua Majestade não visse melhor o que pretendia ver; e que as testemunhas que depunham dos jejuns, para fazerem prova acerca dos mesmos, deviam ser contestes nas coisas que viam e depunham de muitos factos e cerimónias e mais coisas que obravam os presos nessas ocasiões; que não ficava escrúpulo algum aos ministros neste particular para fazerem juízo certo sobre a matéria dos jejuns do que elas depunham; com o que se acomodou Sua Majestade, ficando de outra vez tornar a vir ver mais devagar os ditos cárceres das vigias.

Depois desceu pela mesma escada, acompanhando-o o dito inquisidor, e veio pelos corredores de cima à porta principal, que tem serventia para a Mesa da Inquisição por onde entrou; e foi logo às casas das audiências, e nelas ajoelhou no topo da mesa a uma pintura do um retábulo de um crucifixo; e das janelas esteve vendo o palácio do arcebispo, procurando fazer memória da porta para onde ficavam, e o que mais se via delas. Passou a ver o oratório da Inquisição; tomou água benta da mão do dito inquisidor, e nele ajoelhou; e ultimamente entrou pela saleta para a casa do despacho, a qual viu com muito vagar, examinando o que havia que ver nele; e perguntou se na mesma havia o livro intitulado Directorium Inquisitorum, e pelo sinete das armas do Santo Ofício o que tudo se lhe mostrou; correu as janelas e abriu algumas, vendo as partes para onde ficavam e reparando muito nisso.

Depois que viu tudo o que havia que ver, lhe disse o dito inquisidor, se queria Sua Majestade entrar no Secreto, que se lhe abriria e, ordenando-lho assim, lho abriu, e por serem já Ave Marias se mandou vir luz, que levou o porteiro que estava na saleta; e logo Sua Majestade entrou pela porta do Secreto, levando juntamente consigo as pessoas já ditas; e à entrada, da parte da mão esquerda olhou para uma tábua dos dias que se guardam nesta Inquisição, assinada pelo Ilustríssimo senhor bispo Inquisidor-geral D. Francisco de Castro, a qual leu toda, e notou que nela se manda guardar o dia dos desposórios de Nosso Senhora, que se não guardava no de Lisboa; e lhe disse o dito Inquisidor que em todas as Inquisições se guardavam os mesmos dias. Perguntou também se se guardavam também as vésperas dos dias feriados, ao que deu causa dizer a tábua no fim estas palavras: mandamos que os dias da véspera dos santos de que nesta tábua se faz menção se guardem como nela se contem; ao que satisfez dizendo-lhe que eram só as vésperas dos dias de que na mesma tábua se fazia menção acima, e que a estes mesmos se referia em particular, e não a todos em geral. Entrou mais para dentro, e junto a uma mesa grande, que está da parte direita, aonde escrevem os notários, viu estar um maço, que eram petições de pretendentes, e, vendo-as, as deixou estar, sem as mandar ler, mas advertiu que melhor fora que os inquisidores não corressem com semelhantes negócios, e que houvesse algum ministro deputado para isso mesmo. Chegou aonde está outra mesa mais pequena, aonde escreve o notário Francisco Gonçalves Calvão, por não caberem todos os notários juntos na grande, e leu em um papel escrito pela mão do mesmo, que continha a memória de uns nomes, que estava tirando para uns rótulos de maços de processos, que se tinham mandado reformar; logo aí vendo um processo que estava sobre a mesma, o qual era de Jerónimo Pimentel [Processo n.º 3976, da Inq. de Évora], cristão-novo, médico, que tinha vindo da Inquisição de Lisboa, e estava para se enlotar com outros, pegando nele, e, lendo no rosto do processo, disse: este é o médico de Beja, que saiu no auto de Lisboa e ficou esperado ou reservado; e, pegando nele, o deu ao dito inquisidor, mandando-lhe que lesse o assento que se tinha tomado a final, e, lendo-lho todo, esteve com muita atenção ouvindo; e, depois disso, leu os nomes dos ministros desta Mesa que assinaram; logo lhe mandou ler todos os mais termos e sessões do processo e assentos que se tomaram na Inquisição de Lisboa sobre a capacidade do dito Jerónimo Pimentel e merecimento da causa, advertindo muito na variedade do votos e fundamentos que se tinham tomado sobre esta matéria; e a este mesmo tempo Sua Majestade ia também lendo pelo processo algumas sessões, como foram as últimas confissões que o réu fez na Inquisição do Lisboa, de que tudo mostrava ter bastante notícia, por perguntar especialmente pelas testemunhas que tinham dado o marquês de Alegrete e conde da Ericeira, que tudo se lhe leu; e ultimamente perguntou no dito inquisidor que razão teria o Conselho Geral em receber ao dito depois de o ter relaxado, ao que respondeu que não podia dar cabal razão à pergunta, pois ignorava os fundamentos com que se tinha votado nesta matéria; mas que supunha que com as novas declarações que fez se alterara o estado de seu processo, que moveu o Conselho a tomar novo assento nele, recebendo-o; e, enquanto o dito inquisidor estava lendo, pelo processo ser volumoso e se ter dilatado bastante tempo em ler por ele, o mandou sentar, o que recusou. Esteve vendo também a mesa do promotor, que fica da parte esquerda, de fronte da porta que tem serventia para a Mesa, e folheou em um dos repertórios, e nada mais; e então parou um pouco, e esteve falando com o dito inquisidor e mais pessoas já ditas sobre coisas da Inquisição, e entre elas no caso de Francisco de Sá Mesquita [Processo n.º 11300, da Inq. de Lisboa], dizendo que não podia compreender o motivo que teve para dar tantas testemunhas falsas contra as pessoas de Beja; e, por serem perto das oito horas da noite disse que eram horas de se recolher, e que determinava na volta que fizesse do Caia por esta cidade tornar a vir ver mais devagar a Inquisição e alguns processos mais; e saiu do Secreto, acompanhando o dito inquisidor, que logo aí fechou a porta do mesmo com as três chaves costumadas e, feito isto, veio até à sala grande da Inquisição, e aí abriu uma janela, donde esteve vendo as luminárias. Perguntou-lhe o dito inquisidor se queria Sua Majestade sair pela mesma para o pátio ou pela porta do alcaide, por onde tinha entrado, a disse que por ali queria sair; e, vindo o porteiro e o alcaide com duas tochas diante até ao descer da escada, indo no meio dela, as mandou retirar, advertindo que em baixo no pátio estavam criados seus, que o podiam conhecer; e, por ficar a escada algum tanto escura, o dito inquisidor lhe ofereceu o braço para se encostar, a qual honra lhe fez, encostando-se a ele, levando-o assim pela escada até aos últimos degraus, aonde se despediu, dizendo adeus e mandando-os retirar.

No dia seguinte, 14, partiu El Rei de Évora, e chegadas as duas famílias reais perto das fronteiras, esperou a portuguesa em Elvas e a espanhola em Badajoz o da entrega das princesas, cerimónia que teve lugar a 19, encontrando-se ambas as cortes no palácio que já dissemos se edificara no Caia. Nos dias seguintes houve mais duas entrevistas, e feitas as últimas despedidas, o Rei Católico partiu para Sevilha, e El-Rei D. João V para Lisboa, descansando em Évora, onde entrou a 1 de Fevereiro pela uma hora da tarde, até 9.

‘Na volta que Sua Majestade fez do Caia por esta cidade (continua o documento), depois de estar nela ordenou ao dito notário Thomaz Feio Barbuda que dissesse ao dito inquisidor da primeira cadeira que queria tornar a vir ver os cárceres da Inquisição, e que havia de fazer a sua entrada pela porta do alcaide dos mesmos, como da primeira vez; e com efeito lhe deu este recado da parte do mesmo senhor em sexta-feira, 4 do mês de Fevereiro de manhã, dizendo que pela uma hora da tarde queria Sua Majestade vir ver os cárceres oculto, pela porta do alcaide, acompanhado dele e do físico-mor, e lhe ordenava lho fizesse saber da sua parte; no que respondeu que estava pronto para fazer tudo que lhe ordenava.

À uma hora da tarde em ponto foi o dito inquisidor esperar Sua Majestade à porta do alcaide dos cárceres, e, logo que esta deu, imediatamente entrou Sua Majestade acompanhado do dito notário somente, ainda que mais depois veio o físico mor; aí o recebeu o dito inquisidor com a devida reverência a lhe beijou a mão.

Foi logo ver os corredores de baixo, e os correu todos à roda com muito vagar; mandou abrir alguns dos cárceres que estavam desimpedidos e, entrando em alguns, em dois ou três mandou fechar a porta da grade de cada um deles por fora, mostrando que queria ver se os presos participavam das frestas e luz que bastava. Também procurou saber os cárceres que tinham presos, e mostrando-se-lhe dois cárceres que estavam com presos, procurou por que culpas o estavam; e o dito inquisidor lhe disse que estavam presos por culpas de judaísmo; e logo ordenou que lhes falasse e fizesse algumas perguntas, para o que se mandaram abrir as portas dos ditos cárceres, e lhes falou a ambos, usando das mesmas perguntas gerais já mencionadas, estando Sua Majestade ao mesmo tempo a uma ilharga, sem que os presos o pudessem ver, ouvindo as perguntas e respostas que os mesmos davam, e, vindo já andando, disse que lhe parecia serem cavilosos nas respostas que deram.

Procurou mais onde estavam os cárceres da Custódia, e logo se lhe foram mostrar, em os quais entrou e disse que naqueles cárceres não achava diferença dos outros; a que o dito inquisidor respondeu que pouca diferença havia, excepto em estarem fora dos corredores, mais perto da porta dos cárceres, e que os culpados que neles se prendiam eram por diferentes culpas, e, quando estas requeriam mais exame para se apurar a verdade. Logo que viu os tais cárceres, se pôs virado com o rosto para a porta principal dos cárceres, olhando pelo óculo que tal porta tem para a pátio, por onde se vêem todas as portas que há nele. Perguntou que portas eram aquelas e para onde tinham a sua serventia; e vem a ser a porta que vai para a casa do despenseiro, que fica fronteira à porta dos cárceres, a do Tesouro do Fisco que fica junto à mesma, no canto da parte direita, e no meio da mesma parte a porta principal da Inquisição, e no outro canto da parte esquerda junto da dos cárceres, a da dispensa.

Daí foi logo à Casa do Tormento, a qual esteve vendo com muito vagar e tudo o que nela havia que ver; abriu os Evangelhos que estão no topo da casa da Mesa, e notou serem de letra gótica. Perguntou que insígnias eram umas que viu na mesma casa, e se lhe disse que eram duas golilhas e duas algemas de ferro, com que se costumavam prender os loucos, quando estes padeciam furor, e uma mordaça de ferro, que já não tinha serventia, e uma carocha. Perguntou mais aonde se dava o tormento de polé e potro, que tudo estava à vista, e se lhe mostrou um e outro lugar: quis ver fazer a experiência em ambos os lugares para o que o dito inquisidor mandou vir dois guardas, e lhes ordenou que fizessem a experiência do modo por que se costumava a dar o tormento; o que executaram, assentando-se o guarda António da Costa no potro; e o guarda Manuel Rosado fez menção de o executar; então o atou com a correia costumada, que está presa a uma argola da parede, apertando-o com ela pela cintura e cruzando-lhe as braços, lhos atou com o cordel, dando-lhe algumas voltas, e o deitou sobre o potro, pondo-lhe a coleira e explicando as mais partes em que costumavam atar-se os cordéis. Feita esta experiência, se fez também na polé, e estando sentado o dito guarda António da Costa no banquinho costumado lhe meteu o guarda Manuel Rosado o calabre por baixo dos braços e, atando-lhe as mãos atrás com as correias, foi ao lugar do sarilho a puxar o calabre: e estas experiências foram para satisfazer os desejos de Sua Majestade, sem se lhe explicarem os graus do tormento e diferença que havia deles; e, porque Sua Majestade perguntou que réus costumavam ir ao potro, lhe respondeu o dito inquisidor que todos os réus condenados a trato esperto, e daí para cima. Ali mesmo na Casa do Tormento se deteve Sua Majestade falando no muito risco que tinha o tormento e de alguns casos e fatalidades que tinham sucedido nele.

Acabada esta diligência, veio Sua Majestade ver o quintal do meio, e notou alguma imperfeição na obra dos cárceres do corredor por estes não terem a mesma correspondência com os de baixo, porque medeia a varanda por onde se anda à roda, e esta é a que fica ocupando o maior vão dos ditos cárceres de baixo.

Observou aonde uns e outros cárceres tinham as frestas; tornou a andar à roda dos corredores e foi ver a roda da dispensa, por onde se administram as coisas necessárias que pedem os guardas para sustento dos presos; veio aos corredores de cima; tornou a ir ver os cárceres  das vigias; no primeiro cárcere posto de joelhos, como da primeira vez, esteve na primeira vigia, vendo o que fazia o preso; ergueu-se, e, afastando-se para o lugar aonde estava o dito inquisidor e mais pessoas já ditas, esteve em pé praticando acerca das vigias, dizendo que para bem as testemunhas que vigiassem se não haviam de ver uma à outra no lugar da vigia aonde se punham; e falou em alguns presos jejuantes que tinha havido, especialmente em um médico de Viseu, António Rodrigues de Mesquita [Processo n.º 734-1, da Inq. de Coimbra], que tinha morrido profitente da Lei de Moisés na Inquisição de Coimbra; depois disto andou correndo as vigias, e contou os cárceres delas e foi aos topos das mesmas, pondo-se às janelas que dizem para os telhados, e examinou para onde ficavam, desceu para baixo das vigias dizendo que queria ir ver as dos corredores de baixo, de que tinha notícia, as quais viu, e não agradaram estas por serem apertadas.

Passou logo a ver a Inquisição e, tornando à primeira audiência (sic), esteve olhando pela janela que diz para o pátio, a tempo que ouviu tocar as caixas no palácio do arcebispo, e então disse: Já sai a Rainha. Logo veio ao corredor que faz serventia para a Mesa, reparou em um recanto que faz o tal corredor e quis ver aonde ficava metido, e no vão do mesmo está a necessária (retrete), o que se lhe disse; e para ver mais à sua vontade o que queria, foi à sala grande que fica nas costas do mesmo. Tornou a fazer oração no oratório da Inquisição, aonde aceitou água benta das mãos do dito inquisidor, donde veio para a Mesa. Aí andou abrindo todas as janelas, debruçando-se delas para ver para onde ficavam, e em uma janela que cai para o quintal do inquisidor Bernardino Cabral da Silva, vendo da mesma um corredor que fica por baixo de uma varanda, perguntou que corredor era aquele, e se os corredores que ficavam por baixo da Casa da Mesa recebiam luz do dito quintal; ao que tudo satisfez o dito Inquisidor, dizendo-lhe que os cárceres recebiam luz de outra parte, e que o corredor era oficina das casas do dito inquisidor.

Acabando Sua Majestade de ver o que pretendia, lhe disse o dito inquisidor se queria ir ao Secreto ver alguns processos, como tinha dito da primeira vez e por assim ser se tinham mandado desenlotar alguns antigos e outros modernos para se lhe mostrarem, se os pedisse.

Entrou em o Secreto acompanhado das pessoas já ditas. Foi primeiramente ver uma tábua que está no vão da estante da parte direita, que é um mapa das terras deste distrito manuscrito; leu a distância que faz Portalegre desta cidade, e, porque neste tempo se tirou uma das argolas par onde a mesma está suspensa, procurou que logo se pusesse na forma em que estava, para que se não conhecesse que nela se tinha bolido. No outro vão da estante da parte esquerda viu estar um letreiro de letra de mão que diz o seguinte: Passou-se a Mesa e Secreto do Inquisição Velha para esta em os 19 de Dezembro de 1636 anos, sendo Inquisidor-geral o ilustríssimo senhor bispo D Francisco de Castro, e inquisidores desta Inquisição os senhores João Delgado Figueira e Bartolomeu de Monteagudo. A obra desta Inquisição mandou fazer o sobredito senhor bispo Inquisidor-geral D. Francisco de Castro, e estava vago o terceiro lugar de inquisidor e o de promotor, e eram secretários os licenciados António Simões de Vasconcelos, Lopo Rodrigues Velada, Sebastião Pais Viegas, Gaspar Rodrigues; o qual mandou trasladar logo pelo dito notário.

Perguntou-lhe o dito inquisidor que processos queria ver e de que matérias; inclinou-se mais a ver processos de judaísmo e jejuns; sem embargo disso pretendeu o dito inquisidor mostrar-lhe o processo de frei Damião antigo que contem proposições, e pelo ver muito volumoso se enfastiou dele. Por ter Sua Majestade da primeira vez que veio à Inquisição falado muito no caso das testemunhas falsas que deu Francisco de Sá e Mesquita contra as pessoas de Baja, exagerando que não podia saber os motivos qua o mesmo tivera para isso, por assim ser e parecer ao dito inquisidor que gostaria de ver alguns processos tocantes a esta matéria, lhe mostrou o processo de Francisco Lopes Henriques [Processo n.º 5694, da Inq. de Évora], cristão novo, de Beja, que foi absoluto da instância, e mandou logo ler o assento que se tinha tomado sobre o mesmo processo, o qual lhe leu todo e ouviu com atenção. Perguntou qual foi a major fundamento que a Mesa teve para julgar ao dito Francisco Lopes Henriques absoluto da instância; e então lhe disse o dito inquisidor que os fundamentos maiores eram não ter parecido João Manuel de Andrade testemunha dos ajuntamentos, haver grandes indícios do que este fora o mesmo Francisco de Sá e Mesquita, e coarctar o preso o tempo e o lugar da culpa, e, juntos com os mais indícios, se mostrava com evidência a falsidade que tinha maquinado o dito Francisco do Sá e Mesquita.

Depois lhe mostrou o processo do João Álvares Castro [Processo n.º 4978, da Inq. de Évora], contra quem testemunhou também o dito Francisco do Sá e Mesquita; mas foi convicto pela prova da justiça, por ter contra si mais prova de testemunhas e de cerimónias que fez nos cárceres no tempo em que esteve preso, e, sendo confesso, foi recebido. Mandou logo ler os primeiros testemunhos das vigias, qua são do solicitador Braz Ribeiro da Fonseca a do meirinho João Vidigal Salgado, e se admirou das muitas orações que estes depõem nos mesmos, por serem muitas e dilatadas todas, e disse que lhe parecia incrível poderem percebê-las assim, e mandá-las à memória no tempo das vigias; o dito inquisidor lhe disse que em substância aquelas eram as mesmas orações, ainda que discrepassem em alguns acidentes. Para se tirar desta dúvida se pôs a ler as confissões que fez o dito João Álvares Castro, e achou que algumas das orações que se contêm nelas concordavam com as dos ditos testemunhos, e se aquietou mais. Leu também parte do segundo libelo, por ter sido acusado por diminuto; reparou em ser acusado segunda vez e em se lhe declarar nos artigos dele o tempo; respondeu o dito inquisidor que os réus se acusavam de novo, quando estavam diminutos em parte substancial ou em algumas circunstâncias agravantes das culpas, para saberem que eram por elas arguidos e poderem melhor tratar da sua defesa, e que nos libelos havia diferença, porque nos negativos só lhes faziam as perguntas sem se lhes aclarar o tempo, e pelo contrário aos confitentes, se lhes costumava declarar, por estes serem mais dignos de favor do que aqueles. Leu mais o assento da Mesa, e nele notou que dizia um dos autos que a presunção que resultava acerca do que depunham as testemunhas das vigias era presunção hominis; logo aí perguntou ao dito inquisidor que lhe parecia; ao que respondeu que a palavra era digna de se notar. Neste tempo perguntou mais se o Santo Ofício tinha ocupado a Manuel da Mota algumas vezes e nomeado para assistir nas vigias, porque ele lho dissera, e que tomara ver os seus testemunhos que deu neste particular; o dito inquisidor lhe disse que lhe não constava de tal e que entendia podia ser equivocação sua, porque no tempo em que ele assistiu nesta cidade de Évora era muito moço e familiar moderno, e que para semelhantes diligências se chamavam os mais velhos e antigos; gabou Sua Majestade o seu talento e capacidade e não se despersuadiu com esta resposta; para o sossegar lhe disse então o dito inquisidor, que, se tinha sido chamado algumas vezes seria para vigiar uma presa chamada D. Maria da Silveira da Gama, que foi jejuante e se lhe tomaram jejuns; imediatamente ordenou que buscasse o tal processo; e por serem já Ave Marias se mandou vir luz, que trouxe o porteiro, que estava na sala e Sua Majestade andou juntamente com o dito inquisidor buscando, indo lendo alguns rótulos dos maços, e, achando-se o processo, mandou ver os nomes das testemunhas que tinham sido de jejuns, e se alguma era o dito Manuel da Mota; mas não se descobriu, e assim ficou na mesma dúvida.

Sendo a estas mesmas horas, esteve em pé junto à mesa grande, onde escrevem os notários, praticando com o dito inquisidor e mais pessoas já ditas, e foi referindo alguns casos de presos que sabia, e figurou este caso: que uma presa, depois de ter confessado, e lhe parece que disse ser Brites de Oliveira, estando diminuta no tempo a parte antea, por esta diminuição fora relaxada; e disse ao dito inquisidor que lhe parecia; ao que respondeu que ordinariamente costumava o Santo Oficio receber semelhantes presos, sem embargo da tal diminuição: mas que tal podia ela ser e tais as circunstâncias do caso que assim o pedisse. Figurou outro caso do um preso chamado José Antonio, que tendo sido relaxado pela Inquisição de Lisboa, fora mandado reservar, entendendo-se estar louco, porque um padre, que lhe assistiu nas vésperas do auto à noite, veio dizer à Mesa que ele o despedira, dizendo-lhe que o não inquietasse, que queria dormir, ao qual porém, fazendo-lhe a Mesa várias diligências sobre a sua capacidade, e estando como tolhido dos pés, pois se não erguia nunca do lugar em que estava, um médico dos cárceres  chamado Manuel Baptista, para o experimentar, lhe deu o parabém de a Mesa o ter mandado soltar, o que tal não havia, e que, tanto que ouviu o que o médico lhe disse, se ergueu logo do lugar em que estava e pôde vir à Mesa, e, porque o não soltaram, como ele entendia, do repente tornou ao mesmo estado antigo, como se fosse aleijado; sobre o que o dito físico-mor começou a fazer o seu juízo, e discursou, dizendo que o tal preso não era louco, mas fingido, fundando-se no dolo e malícia com que se houve nas tais ocasiões, ao que Sua Majestade se inclinou também: e então perguntou a ele dito inquisidor que lhe parecia e que votaria neste caso; ao que respondeu que os loucos em algumas ocasiões costumavam fazer acções em que mostravam ter juízo e capacidade, sendo que em outras o não mostravam ter, e que para votar era necessário ver e examinar os autos para fazer juízo certo na matéria, e que nesta se envolvia a questão se um louco que na realidade o era podia fingir-se naturalmente, e que das tais acções que o réu fez, assim como se podia inferir dolo e malícia no preso, podiam também atribuir-se a falta do discurso; e o dito físico-mor conveio que podia acontecer que um louco se fingisse naturalmente sem que deixasse de o ser, mas persistindo que o tal José Antonio era velhaco.

Perguntou onde estavam os maços das cartas do Conselho, dizendo que neles se achavam muitas resoluções em matérias graves, que se tomavam no mesmo Conselho e ordens que vinham à Mesa, e que para a sua vinda haviam ter tido os inquisidores algumas ordens: e o dito inquisidor lhe disse o lugar em que estavam, conformando-se com o mesmo que Sua Majestade disse, mas não os pediu para os ler; e já na primeira vez que veio à Inquisição falou nisto mesmo.

Depois que acabou todas estas práticas, saiu do Secreto para fora, acompanhando-o o dito inquisidor, que, logo ao sair, fechou a porta do mesmo com as três chaves costumadas, e da Casa da Mesa foram alumiando o porteiro e alcaide dos cárceres com duas tochas até ao meio da sala grande e Sua Majestade neste tempo foi abrir uma janela da mesma, pondo-se a ela; ali lhe perguntou o dito inquisidor se queria sair pela porta principal da Inquisição ou pela do alcaide, por onde tinha entrado; e lhe disse que pela do alcaide: e foi logo andando e entrou pela porta dos cárceres, e, indo pelo primeiro corredor, que vai ter à porta do alcaide, por onde se serve para os mesmos; e daí foi até descer a escada, que tem serventia para a porta da rua, acompanhando-o sempre o dito inquisidor: aonde lhe beijou a mão; e Sua Majestade se despediu dizendo adeus como da primeira vez.

Assim terminou a segunda visita de D. João V à Inquisição de Évora.

Não se esqueceu a magnânimo Rei do remunerar, e generosamente, como era seu costume, o serviço que então lhe fizeram alguns dos empregados do terrível tribunal daquela cidade, pois acrescenta o curioso documento que temos lido:

Mandou Sua Majestade por mão do dito notário Thomaz Feio Barbuda dar as propinas seguintes: a cada um dos notários dez dobras de três mil e duzentos; ao meirinho oito dobras; ao porteiro oito dobras; ao alcaide oito dobras; a cada um dos solicitadores sete dobras; a cada um dos guardas seis dobras; ao despenseiro cinco dobras; a cada um dos homens da vara três dobras.

Esta é a relação clara e individual (conclui o mesmo documento) de tudo o que Sua Majestade passou e fez nas duas ocasiões em que veio oculto a esta Inquisição. Como nesta matéria o dito inquisidor não fez estudo particular por sua eminência lho não ter ordenado, assim poderá escapar-lhe alguma circunstância digna de se notar; e de tudo poderá dar cabal notícia o notário Thomaz Feio Barbuda, por estar mais lembrado do que então se passou. Évora, em Mesa, 27 de Fevereiro de 1729.

 

Ramos Coelho

 

(*) Relação que o Ex.mo Sr. Cardeal da Cunha, Inquisidor-Geral mandou fazer nesta Mesa do que o El-Rei nosso senhor passou nela nas ocasiões a que a ela veio disfarçado. Mss. do Arquivo Nacional entre os da Mesa Censória.

 

Da Revista “O OCIDENTE”, n.ºs 853, de 10-9-1902 e 854, de 20-9-1902.