2-11-2009

 

 

Manuel Fernandes Vila-Real

(1608-1652)

 

 

A condenação à morte de Manuel Fernandes Vila-Real é um dos episódios mais arrepiantes da Inquisição portuguesa. No entanto, não vou estudar aqui o assunto por dois motivos: primeiro, pela barbaridade do caso, que me repugna e me deixa deprimido; segundo, porque não consegui juntar todos os documentos que indico na bibliografia. Em vez disso, decidi transcrever o estudo de Ramos-Coelho publicado em 1894, muito bem elaborado, apesar de algumas divergências que tenho; de qualquer modo, é espantoso que não tenha sido republicado até hoje.

A principal divergência que tenho é que ele considera que os inquisidores eram movidos pelo fanatismo religioso. Não! Trata-se de um assassinato puro, movido pelo delírio do poder. O poder é o maior afrodisíaco que pode existir e o poder de matar legalmente o seu semelhante o cúmulo do exercício do poder. E era o delírio do poder que movia os inquisidores, disso não tenho dúvida. O fanatismo religioso como motor das suas acções, atribuo-o quando muito ao Rei D. João III e ao Cardeal D. Henrique, a mais ninguém.

Já ouvi dizer que a Inquisição agia correctamente em face dos seus regulamentos; os processos seriam justos sob um ponto de vista formal. Nada mais falso, como este processo prova à saciedade. As vigias não constavam do Regimento, nem a possibilidade de suspeitar que as confissões não eram verdadeiras.

De qualquer modo, não devemos nunca esquecer que a Inquisição era um tribunal essencialmente perverso, porque punia não em função das acções dos réus, mas em função das crenças demonstradas, mas muitas vezes apenas presumidas. Os pensamentos, as crenças não são visíveis e por isso, a Inquisição partia de uma impossibilidade. E é por isso, por partirem dessa impossibilidade, que os inquisidores faziam o que muito bem lhes apetecia.

Reconheço que Manuel Fernandes Vila-Real como pessoa tinha um carácter algo antipático. Um perfeito autodidacta, vangloriava-se com facilidade de todas as suas proezas e das suas obras literárias. Tinha muita consciência dos favores que tinha prestado ao Rei e aos diplomatas do Reino. Não hesitava em comportar-se como o que hoje chamamos um “chico esperto”, por exemplo, quando revelou aos inquisidores que tinha descoberto os orifícios das vigias na cela. Esta auto-estima deverá tê-lo levado a esperar confiadamente na protecção de D. João IV, quando regressou a Portugal, acompanhando o Embaixador Marquês de Nisa. Infelizmente para ele, era peixe pequeno demais para a protecção do Rei, já demasiado ocupado para livrar Duarte da Silva das garras da Inquisição. Afinal, o Rei fora obrigado a manter à frente da Inquisição o seu arqui-inimigo D. Francisco de Castro e viu-se e desejou-se para tentar quebrar a espinha àquele tribunal da fé, o que finalmente não conseguiu.

As vítimas da Inquisição, aterradas pela possibilidade da morte na fogueira, resignavam-se a descer às maiores indignidades, nomeadamente a acusar de judaísmo tudo e todos: pais, mães, filhos, tios, sobrinhos e primos, e acabavam por entregar à Inquisição todos os cristãos novos que conheciam. Apesar de alguns procedimentos menos correctos no decorrer da sua prisão, Manuel Fernandes Vila-Real não denunciou os seus irmãos, nem qualquer outro cristão novo residente em Portugal. Para além da menção das vigias, foi esta atitude de dignidade o que mais enfureceu os inquisidores.

Foi Manuel Fernandes Vila-Real um mártir da Inquisição? Não, porque não morreu pela sua fé. Foi assassinado pela Inquisição, como uma afirmação do poder de quem estava à frente dela. Também não acredito que fosse católico. Teria consciência da sua raça, sem dar grande importância às práticas religiosas. Aliás, frei António de Serpa referiu no seu testemunho que ele era ateu.

D. Francisco de Castro, que faleceria um mês depois do auto-da-fé a que assistiu, teve o prazer de condenar à morte um fervoroso adepto do Rei, contra quem ele havia conspirado. Aliás, alguns autores consideram que a escolha da data do auto-da-fé, 1 de Dezembro, aniversário da Restauração, foi uma afronta directa a D. João IV.

Na transcrição do texto de Ramos Coelho, actualizei a ortografia, mas não a pontuação.

 

 

 

Ramos-Coelho

Manuel Fernandes Vila Real e o seu processo na Inquisição de Lisboa

 

Lisboa, Empresa do “Occidente”, 1894

 

I

 

Manuel Fernandes Vila-Real nasceu em Lisboa pelo ano de 1608, sendo filho de Francisco Fernandes Vila-Real e de Violante Dias, ambos naturais de Vila Real, na província de Trás-os-Montes, pátria também, segundo parece, de seus avós paternos Manuel Fernandes e Grácia Garcia; e foi baptizado na Igreja da Conceição, servindo-lhe de padrinho, Vasco Martins de Castro.

Era o comércio em geral a ocupação de sua família, o que não admira por constituir essa a predilecta quase sempre da gente de nação, à qual toda ela, por assim dizer pertencia. Seu pai possuíra ao princípio uma loja de fanqueiro em Lisboa, na Fancaria de Cima, e depois tomara o contrato das terças e o das rendas do Priorado do Crato; seu tio materno Pantaleão Martins, que veio a ser seu cunhado, por casar com Leonor Dias, sua irmã, foi mercador e teve o contrato do tabaco; seu irmão Gonçalo Dias teve loja de mercearia em Lisboa, na Rua Nova, junto ao Arco dos Barretes; e seu irmão Pantaleão Martins foi para o Cabo de Santo Agostinho, no Brasil, e aí se empregou em negociar, no que consistiu igualmente o modo de vida de seus sobrinhos Francisco Rodrigues, António Henriques, Manuel Fernandes Dias e António Luis, estes dois moradores em França, na cidade de Ruão, e o de outros parentes.

A educação literária de Vila-Real reduziu-se a pouco. Não deixou de seguir em parte a carreira do comércio, à imitação da sua família; mas dedicou-se, além disso, a outros misteres. Ainda muito moço, passou a Tânger com o governador daquela praça D. Jorge Mascarenhas, e nela militou dois anos e meio à sua custa, donde lhe proveio naturalmente o posto de capitão com que nos aparece nomeado até em documentos oficiais. Voltando a Portugal, ocupou-se durante alguns meses no Alentejo com os negócios das terças do Reino e das rendas do priorado do Crato, de que seu pai teve o contrato, como dissemos. Depois, encontramo-lo em Lisboa corretor dos reais uns dois anos; depois em Coimbra e nos seus campos em comissão da câmara daquela cidade, por causa dos atravessadores do trigo; de que havia grande falta e de que mandou à capital carregados alguns navios, no que levou três anos; e depois em Espanha: em Sevilha, Madrid e Málaga até ao ano de 1638, no qual de Málaga se mudou a França. Neste meio tempo, morando ainda no reino, casara com Isabel Dias, natural de Vila Real, que viera para Lisboa de pouca idade, filha de Inês Dias, ambas da raça hebraica. Em Sevilha esteve despachado para ir às Índias de Castela, o que não se efectuou.

Chegou Vila-Real a Ruão nos fins de Outubro de 1638, com o intento de comprar nesta cidade ou nalgum dos portos do norte da França ou em Dunquerque um navio para empreender uma viagem, talvez ainda às Índias de Castela, por então se poderem naqueles lugares encontrar muitos e baratos, em virtude da paz com Inglaterra. Na empresa mercantil, em que Vila-Real tinha grande quinhão, entravam como principais interessados com dinheiro ou fazendas João Rodrigues de Morais, seu irmão Manuel Fernandes de Morais, do Porto, e seus cunhados, que o eram também de Vila-Real, e parece viviam todos em Ruão. Achou-se o navio no Havre de Graça, e comprou-se pelos fins de Janeiro de 1639; mas, por se reconhecer que era curto e convir acrescentá-lo, Vila-Real aumentou-lhe uns vinte palmos de quilha. No concerto, nos aprestos da carga e no arranjo dos mantimentos correu o melhor daquele ano, morando quase sempre Vila-Real no Havre, mas indo algumas vezes a Ruão para conferenciar com os interessados, e a Paris por mero passatempo e desejos de ver a capital da França. Entrado porém o ano de quarenta, faleceu João Rodrigues de Morais, e com sua morte malogrou-se ainda esta viagem; pelo que Vila-Real partiu para Paris em Agosto ou Setembro.

Contraíra Vila-Real no Havre particular amizade com o governador dela, Fortecuyer, pessoa muito da obrigação do cardeal Richelieu tendo por entrada essa amizade algumas notícias interessantes que lhe fornecera e haver-lhe prognosticado o ruim sucesso da armada de França que naquele ano fora à Corunha; e Fortecuyer, ao partir Vila-Real para Paris, recomendou-o ao poderoso ministro de Luis XIII, o qual o recebeu várias vezes, conversando com ele acerca das coisas de Portugal, e deixando-lhe quase perceber que desejava seguissem os portugueses o exemplo dos catalães e, como eles, se revoltassem contra o governo de Espanha.

Entretanto raiou o glorioso dia primeiro de Dezembro. Soube Vila-Real nos últimos do mês o fausto sucesso e participou-o ao cardeal e aos ministros franceses, os quais por isso lhe mostraram a maior alegria e lhe fizeram o mais agradável acolhimento. Ou por aviso do reino, ou apenas de motu próprio, Vila-Real, como bom patriota, dirigiu-se pouco depois à Rochela e aí esperou até ao Entrudo de quarenta e um a chegada dos nossos Embaixadores, o Monteiro-mor Francisco de Melo, e António Coelho de Carvalho, voltando então a Paris, por constar falsamente que eles aportariam a Marselha. Chegaram enfim à Rochela em um de Março os representantes de Portugal. E, sabendo que ele os esperara naquela cidade, escreveram-lhe que importava muito ao serviço de S. M. falar-lhes antes de entrarem na Corte. Acedeu Vila-Real da melhor vontade; foi encontrá-los a Orléans; instruiu-os do que era necessário; e encaminhou-os e acompanhou-os na primeira audiência que tiveram em Saint-Germain, pela Semana Santa, e em todas as mais até se despedirem d’El-Rei Cristianíssimo, o que foi pelo S. João do mesmo ano. E era tal a estima que Vila-Real gozava na Corte de França que, na audiência a que levou o Bispo de Lamego, nosso Embaixador à Santa Sé, pois também a este serviu de mentor, Pantaleão Rodrigues Pacheco, que acompanhava o prelado e devia ficar em Roma na qualidade de agente de negócios, lhe estranhou querer retirar-se para Portugal, como tencionava fazer, sendo nela tão bem recebido.

Pela saída do Monteiro-mor e de Antonio Coelho de Carvalho, ficou Vila-Real só em Paris representando-nos e correspondendo-se para esse fim com Francisco de Andrade Leitão, nosso Embaixador em Holanda, e com António de Sousa de Macedo, nosso residente em Inglaterra, até Setembro de quarenta e dois. Entretanto, a 4 de Maio, o Conde da Vidigueira desembarcara na Rochela com o cargo de Embaixador junto de Luis XIII e achara ali carta de Vila-Real, em que lhe dizia estava de caminho para seguir a Corte a Perpinhão; o Conde porém necessitava dos seus serviços, e determinou-lhe que não deixasse Paris, porque lhe havia de remeter o presente que a Rainha de Portugal mandava à de França para entregar-lho, e porque o incumbia de lhe arranjar casa, trens e criados; ao que ele satisfez, de modo que, ao chegar o Conde a Paris, depois de ter acompanhado a Corte pelo sul da França, achou tudo pronto como desejava.

Por este tempo Isabel Dias foi de Portugal para Ruão. Quis Vila-Real, o que era naturalíssimo, estar alguns dias com a esposa; mas pela muita falta que fazia ao Conde nas audiências, diferiu a partida até Setembro, depois de se realizar a primeira, a qual teve lugar a 17 de Agosto. Outro motivo levou ainda Vila-Real a retirar-se de Paris: uns certos desgostos que tivera com a família do Conde, de que adiante falaremos. Compostos ou disfarçados estes, a instâncias do Embaixador, voltou porém em Outubro à capital da França.

Havendo a 19 de Maio de 1643 alcançado os franceses sob o comando do duque de Enghien, mais tarde conhecido pelo nome de Condé, a grande vitória de Rocroy, ganha contra o exército espanhol, e tendo ficado prisioneiros muitos portugueses que militavam nele, graças à arruinadora e impolítica união dos dois reinos peninsulares, que nos levou, em proveito ou por causa de Espanha, tanto oiro, tanto sangue de irmãos, tantas conquistas, diligenciou o Conde com o Governo francês a entrega dos nossos compatriotas e nestas diligências andou Vila-Real dois meses, até fim de Setembro do dito ano, sendo encarregado de lhes ir dar a liberdade.

Ultimado tão importante negócio, foi Vila-Real descansar um mês a Ruão na sua casa; mas logo depois voltou a Paris com o fim de aguardar e servir aí com o seu préstimo e experiência o Marquês de Cascais, que D. João IV enviava por Embaixador extraordinário a apresentar, posto que tardiamente, os pêsames ao novo Rei Luis XIV da morte do rei seu pai, saindo daquela cidade só pelo S. João de quarenta e quatro, para acompanhar o Marquês, que recolhia ao reino, até Orléans.

No mês de Julho, encontramo-lo outra vez em Ruão; e nos três últimos meses do ano em Moret com o Conde da Vidigueira, por estar a Corte em Fontainebleau; nos primeiros de quarenta e cinco, novamente em Ruão, tratando do processo que os portugueses em França lhe haviam movido, por se oporem a que ele exercesse o lugar de Cônsul, para que fora nomeado no ano antecedente; no Verão, indo com o Embaixador a Nossa Senhora de Liesse e a muitos lugares da Champanha e Picardia, e depois a Ruão e ao Havre; no resto do ano em Fontainebleau e em Ruão, ocupado com o dito processo e imprimindo alguns livros, como adiante veremos; em Janeiro de quarenta e seis em Paris diligenciando livrar os comerciantes e em especial os portugueses das taxas e contribuições que se lhes pediam, o que felizmente alcançou; e em Fevereiro, acompanhando o Embaixador, que se retirava para o reino, até Nantes, onde esteve com ele parte da Quaresma, indo por sua ordem a Brest e a Roscoff para fretar o navio que devia conduzi-lo. A Páscoa desse ano passou-a em Ville d’Avray.

Embarcado o Embaixador, tornou Vila-Real a Paris no fim de Maio, foi estar a Ruão uns vinte dias; e, voltando a Paris, viu-se obrigado a carregar só com o peso de todos os negócios tocantes a Portugal, por causa da moléstia do Residente António Moniz de Carvalho, a cujo zelo eles haviam ficado entregues pela retirada do Conde, sendo um desses negócios, o dos navios que D. João de Menezes tomou, indo por general da primeira esquadra que mandámos de socorro a França. Outro que também muito o ocupou foi o do Cônsul francês em Portugal, João de Saint-Pé, no qual obteve sentença a favor deste, e contra os que lhe impugnavam o exercício do cargo, confirmado por D. João IV em 23 de Novembro de 1641 (1).

Sendo nomeado o Conde da Vidigueira, já então Marquês de Nisa, novamente Embaixador em França com o carácter de extraordinário, escreveu a Vila-Real para que o fosse esperar à Rochela; daqui procedeu ficar este em Paris o resto do ano de quarenta e seis; recebido porém a seis de Janeiro de quarenta e sete aviso seu de como chegara, foi-o no dia seguinte buscar pela posta à distância de sessenta léguas.

Com o Marquês residiu Vila-Real até à semana de Lázaro, passada a qual, se retirou para Ruão, onde se demorou até aos fins de Junho; daí tornou a Paris, daí tornou a Paris, onde o vemos até Janeiro de quarenta e oito; e daí voltou a Ruão, onde esteve até fins de Agosto, ocupando-se todo este tempo já no arranjo da embaraçada casa comercial de António de Cáceres, a rogo dos comprometidos nela, no que servia os seus interesses particulares e os da fazenda real na mesma casa enredados, já nas suas obrigações de Cônsul, já na questão de João Saint-Pé que ainda durava, e na qual o ajudou o Marquês de Nisa. Com a vinda porém de um seu sobrinho, andou de Paris para Ruão e de Ruão para Paris, encaminhando-o na compra de grandes partidas de seda, que o dito seu sobrinho enviou ao reino. De Ruão chamou-o no fim de Outubro o Marquês de Nisa, e na casa deste morou em Paris e em Saint-Germain até sexta feira de Ramos de quarenta e nove, em que foi àquela cidade despedir-se de sua família, porque vinha para Portugal com o Embaixador, o qual partira de Saint-Germain na segunda-feira da Semana Santa. Finalmente embarcaram ambos em Saint-Nazaire a 25 de Abril e a 30 chegaram a Lisboa (2).

 

II

 

A estas notícias biográficas e a estes serviços que Vila-Real fez á sua Pátria, devemos juntar outros não menos valiosos e que a eles se entrelaçam: os que lhe prestou com os seus escritos políticos e literários. Posto, segundo ele mesmo dizia, não soubesse ciência alguma e conhecesse unicamente um pouco de latim, francês, italiano e árabe, era Vila-Real habilidoso por natureza e dedicou-se desde muito novo a assídua leitura, de que sempre foi muito amigo, e desde muito novo começou a escrever. Data dos seus vinte ou vinte e um anos um epítome de toda a história de Espanha, que deu manuscrita a D. Jerónimo Mascarenhas e manuscrita ficou, assim como o ficaram também várias árvores genealógicas dos reis de Espanha e de diferentes famílias, que seriam compostas, conjecturamos, quando esteve naquele reino. Em começos de trinta e seis, a instância de certa religiosa do mosteiro de Santa Ana, de Lisboa, escreveu um discurso intitulado El color verde, a la divina Celia, de galanteria, segundo é de crer e que no ano seguinte foi publicado em Madrid. É esta a sua primeira obra impressa de que temos conhecimento. Em trinta e nove, para se facilitar no estudo do italiano, traduziu dele em espanhol a vida do Conde-Duque de Olivares, de Malvez; no mesmo ano traduziu um livro francês de moral: Espelho sem adulação. Nem um nem outro viram a luz pública.

No princípio de quarenta e um, desejando tornar favorável à causa da restauração portuguesa o ânimo do omnipotente ministro de Luis XIII, escreveu o Epítome genealógico del eminentíssimo cardenal duque de Richelieu y discursos políticos sobre algunas acciones de su vida, impresso no mesmo ano em Pamplona (aliás, Paris, segundo ele declara), por Juan António Berdun, e em segunda edição, pelo mesmo e no mesmo lugar em 1642, com o título: El politico christianissimo ò discursos políticos sobre algunas acciones de la vida del eminentíssimo señor cardenal duque de Richelieu. Esta obra foi apresentada pelos embaixadores, o Monteiro-mor e António Coelho de Carvalho, ao cardeal, na última audiência que tiveram em Abbeville, e, segundo Barbosa Machado, traduzida em italiano por Parisio Cerchiari (Veneza, 1646), e em francês por Chestonières de Grenaille.

Tendo João Caramuel Lobckowitz publicado o seu Anti manifiesto contra Portugal, e sabendo-o Vila-Real em Novembro de quarenta e dois, mandou buscar um exemplar a Anvers, e o Conde da Vidigueira pelo Natal encomendou-lhe que lhe respondesse, o que este pôs logo em execução, e com tanta pressa, que escrevia à noite o que se imprimia no dia seguinte. É a obra Anti-Caramuel ó Defensa del manifiesto del reino de Portugal, Paris, por Miguel Blageaert, 1643. Pela Páscoa deste ano já estava pronta, pois então Vila-Real foi em companhia do Conde levar um exemplar a Saint Germain ao cardeal Mazarino.

A prisão injusta do Infante D. Duarte, irmão d’El-Rei D. João IV, pelo imperador de Alemanha, Frederico II, em cujo exército ele militava desinteressada e gloriosamente, e a desleal vil entrega que este fez do seu  ilustre parente e servidor aos nossos inimigos, os espanhóis, levaram o Conde da Vidigueira a pedir ao seu secretário, Antonio Moniz de Carvalho, que escrevesse uma obra a tal respeito, a qual se publicou anonimamente com o titulo: Innocentis et liberi Principis venditio…, em Paris, em quarenta e dois, e Vila-Real traduziu, tanto na língua francesa como na espanhola, e ampliou muito, mudando-lhe o título para o de El Principe vendido ó venta del innocente y libre Principe D. Duarte Infante de Portugal, celebrada en Vienna a 25 de Junio de 1642. A obra original carece de autor, ano e lugar de impressão; mas é evidentemente de Antonio Moniz de Carvalho, de quarenta e dois, e provavelmente de Paris; a tradução espanhola estampou-se nesta cidade por João Palé em quarenta e três; e no mesmo ano, em Barcelona; da francesa conhecemos a edição de Paris e a de Lião, ambas de quarenta e três, e outra, cuja procedência ignoramos, e de que existe um exemplar na Biblioteca de Évora, devendo ser esta, com a maior probabilidade, próxima na data à das antecedentes, porque foi então que se publicaram todos os manifestos a favor do Infante D. Duarte, e porque assim o reclamava o interesse da sua causa, que se debatia ante os olhos da Europa, o que tudo melhor se pode ver na História do mesmo Infante por nós escrita e dada à luz há poucos anos, onde tratámos largamente do assunto.

No dito ano de quarenta e três estampou-se em Paris, com o fim de divulgar os sucessos políticos do reino, Le Mercure portugais, ou Rélations politiques de la fameuse révolution d’État arrivée en Portugal, depuis la mort de D. Sébastien jusqu’au commencement de D. Jean IV à présent régnant e Vila-Real foi encarregado pelo conde da Vidigueira da parte mais importante desta publicação, isto é, de organizá-la e dirigi-la. As memórias para ela, mandadas pelo governo português, eram fornecidas pelo Conde a Vila-Real; este ornava-as, corrigia-as; resumia-as, ampliava-as, anotava-as, conforme a conveniência; e um francês, a quem o Conde pagava o seu trabalho, punha-as na sua língua. Le Mercure portugais é dedicado ao Conde e traz por autor Chestonières de Grenaille, que julgamos pseudónimo de Vila-Real, ou antes o nome do francês que colaborou na sua publicação. Chestonières de Grenaille figura, como vimos, na tradução francesa do livro El politico christianissimo, a qual neste caso será ou de um ou de outro, posto que não a mencionar Vila-Real na lista das suas composições apresentada ao Santo Ofício nos inclina a supor que não lhe pertence.

Não contente Vila-Real de imprimir estas notícias, escreveu em francês para os Mercúrios de França, em quarenta e quatro, uma relação de quanto sucedera na aclamação de D. João IV. Por este tempo fez uma larga memória dos reis de Portugal e das famílias que deles procedem, que anda impressa na Real Genealogia de França: outra a pedido do doutor Francisco Velasco de Gouveia e do Conde da Vidigueira, em francês, sobre ao Papa não tocar prover os reis nem ter autoridade no poder temporal deles: estampou a Lusitania vindicata, do arcebispo eleito de Lisboa que depois reimprimiu e traduziu em espanhol e também em francês. Em quarenta e cinco imprimiu Cinco livros da década doze da história da Índia, de Diogo do Couto os quais se conservavam inéditos, e se ocupam do primeiro governo do Vice-Rei D. Francisco da Gama, dedicando-os ao filho deste, o Embaixador, por quem talvez lhe fosse encarregada a edição e a cuja custa seria feita: a informação do processo do mesmo D. Francisco da Gama sobre a perda das naus e sobre a sua residência; duas folhas em francês do que possuía Portugal na Europa e nas conquistas; as Rimas varias y tragicomedia del martyr de Etiopia, do capitão Miguel Botelho de Carvalho, secretário do Embaixador (Ruão, 1646); as Rythmas varias de Soror Violante do Céu (idem); e os Soliloquios de Lope de Veja; compôs e imprimiu uma carta sobre o que aconteceu em Roma ao doutor Nicolau Monteiro, representante de Portugal junto da Cúria; escreveu em quarenta e seis, a pedido de António Moniz de Carvalho, uma memória sobre França não desamparar Portugal no tratado da paz, que então se julgava estar quase a concluir-se, e sobre o que o dito António Moniz compôs e publicou outra com o título de Francia interesada con Portugal en la separación de Castilla; e em quarenta e sete, por ordem do Marquês de Nisa, uma memória com as razões que havia para se tirar o confisco dos bens da gente de nação, a fim de os negociantes portugueses dela enviarem as suas mercadorias ao reino e assim se aumentar o comércio; outra a favor da cristandade do Congo, ao saber que os espanhóis mandavam para lá Capuchos italianos, a qual o Marquês remeteu para Roma; outra mostrando que os franceses não deviam ir à ilha de S. Lourenço por ser conquista de Portugal; diversas a respeito dos seguintes assuntos: incidentes da paz que então se tratava no Congresso de Munster, abrangendo, por assim dizer, todos eles; comércio da pimenta de Portugal para França; moeda e levantamento do seu valor: estabelecimento no reino de um porto livre: contra Holanda, em grande número, acerca de Angola e do Brasil, pugnando sempre por que não se lhe cedesse parte desta vasta possessão; várias cartas supostas mostrando o que era Portugal; e todos os artigos que a respeito dele saíram nas gazetas de França.

Em Novembro de quarenta e oito escreveu uma memória sobre os danos que provinham do assento feito para os portos e outra sobre Pernambuco, que ambas mandou ao secretário de estado. Em Janeiro de quarenta e nove imprimiu em Paris a Architectura militar ó fortificacion moderna,  do Padre Jorge Tournier, jesuíta, que traduzira do francês e aumentara; e na Semana Santa do mesmo ano, emendou o poema O phenix da Lusitania ou Acclamação do senhor Rei de Portugal, D. João IV, de Manuel Thomas, que nesse ano se estampou em Ruão, e para o qual escreveu a dedicatória a Gaspar de Faria Severim. Por esta última notícia conclui-se que Vila-Real não era alheio às musas; entretanto só conhecemos de versos dele um soneto e um romance heróico, em francês, à morte de D. Maria de Athayde, filha do Conde de Atouguia, e que se encontram nas Memórias fúnebres, impressas em Lisboa em 1650, por ocasião deste acontecimento.

Barbosa Machado apenas cita, falando de Vila-Real, o seguinte: El color verde; El politico christianissimo; El Principe vendido; o Anti-Caramuel; a Architectura  militar; Cinco livros da decada doze, de Diogo do Couto; e os ditos soneto e romance. Com o que deixamos escrito e é tirado das próprias confissões do autor, quando preso na Inquisição de Lisboa, e com alguma coisa que ainda colheremos delas, fica portanto muito mais abundante do que a de Barbosa Machado, e do que a de Inocêncio, que a seguiu e diminuiu e, segundo cremos, completa, a lista das obras de Vila-Real, que não é pequena nem destituída de interesse.

Estes traços biográficos e serviços de Vila-Real completam-se e confirmam-se com a seguinte certidão passada pelo próprio Embaixador, a seu pedido, para obter recompensa deles, fim principal da sua vinda ao reino.

D. Vasco Luis da Gama, Marquês de Nisa, Almirante da Índia, dos conselhos de Estado e guerra d’El-Rei meu senhor, etc.

Certifico que o capitão Manuel Fernandes Vila-Real me assistiu na Corte de Paris todo o tempo das duas embaixadas que nela estive, desde 4 de Maio do ano de 1642 que cheguei a França até os 30 de Abril de 49 que cheguei a esta cidade; somente foi algumas vezes a Ruão, donde tinha sua casa; mostrando em toda a ocasião muito zelo, amor e diligência às coisas deste reino e serviço de Sua Majestade, assim na assistência de minha pessoa como nas visitas e audiências dos ministros daquela Coroa, a quem levou por vezes os recados que lhe ordenei, dando de tudo muito boa conta. Quando cheguei à Rochela lhe escrevi aguardasse em Paris por mim; e foi uma das pessoas que mandei com o presente que a Rainha minha senhora mandou à Cristianíssima. Na ocasião da batalha de Rocroy foi com ordem minha e despachos que alcancei d’El-Rei de França dar liberdade aos oficiais e soldados portugueses que nela se acharam presos, ocupando-se nisso mais de dois meses em grande quantidade de léguas que andou, o que fez com grande satisfação e valor pela oposição que faziam os castelhanos, e o mesmo fez com outros muitos prisioneiros portugueses de outras batalhas e encontros. Outrossim imprimiu e fez o livro contra Caramuel em defensa deste reino, com outros muitos discursos e cartas que fez imprimir em resposta dos que se publicaram contra nós. E o cardeal Mazarin lhe deu em minha presença os agradecimentos da carta que escrevi sobre o sucesso do bispo de Portalegre em Roma. Nos Mercurios franceses fez um largo discurso em francês do  sucedido na feliz aclamação de Sua Majestade e nos livros genealógicos dos reis de França fez também outro discurso dos sereníssimos reis deste reino e das famílias ilustres dele, tudo com minha aprovação e em glória desta coroa. Nas gazetas fez sempre imprimir todas as coisas que tocavam a este reino, e respondeu nelas a outras que podiam ser contrárias. E finalmente em espaço de mais de seis anos que estive naquela Corte não conheci nele coisa que fosse contrária ao serviço de Sua Majestade, antes, muito fervor, zelo e diligência em tudo o que tocava a este reino, dando-me as notícias do que alcançava na Corte e fora dela. Da comunicação que tinha com D. Félix Pereira na Corte de Bruxelas do que se passava em Portugal e Flandres, remetendo-lhe as cartas para os oficiais que dali vieram, procedeu que o Marquês de Castelo Rodrigo mandasse cortar a cabeça ao dito D. Félix, por se lhe acharem as suas cartas de o retrato de Sua Majestade que lhe tinha mandado. Por tudo o referido, entendo é merecedor que Sua Majestade lhe faça toda a mercê e favor que mais houver por seu serviço. E por me ser pedida a presente, etc. a mandei passar selada com o selo de minhas armas. Lisboa aos 23 (sic) de Abril. Miguel Botelho de Carvalho a fez de l649. (3)

 

III

 

Com todos estes serviços chegava à pátria Vila-Real, confiando que pelo seu valor obteria o galardão desejado e poderia continuá-los com proveito seu e dela. Não foi entretanto sem receio que partiu de França e entrou em Portugal. Era cristão novo; vivera ou tivera relações, quer particulares, quer públicas, nas terras estrangeiras por onde andara, com várias pessoas da sua raça, que, embora seguissem ostensivamente a religião de Cristo, professavam a ocultas a lei de Moisés, e pela sua parte estava em igual caso; gozava de influência entre elas pelo talento e posição; tinha inimigos e invejosos, consequência infalível em todos os tempos e em toda a parte do mérito verdadeiro; residira anos em um país, onde o protestantismo havia lançado raízes e frutificado abundantemente; conhecia ou lera muitos livros de história e de controvérsias religiosas da época; e, escrevendo muito e em muitas matérias, algumas já de si desagradáveis ao Santo Ofício, tornava-se fácil, ainda que o não quisesse, reproduzir aqui ou ali ideias um pouco livres, bebidas na sua leitura ou na atmosfera viciosa que respirava; certos desses escritos podiam mesmo prejudicar o terrível tribunal, e um designadamente, El politico christianissimo, havia incorrido nas iras da Inquisição de Lisboa, e havia sido por ela censurado dois anos ou menos depois de publicar-se a primeira edição e um ano depois da segunda. Por todas estas razões, quando o Marquês de Nisa o tentava persuadir a que voltasse a Portugal e a que viesse na sua companhia, para tratar dos seus negócios e receber de S.M. a recompensa merecida, Vila-Real hesitava em fazê-lo, medroso de seus inimigos o denunciarem; ao que o Marquês respondia que, se tivesse algumas culpas tocantes ao Santo Ofício, poderia, logo à chegada, apresentar-se-lhe e confessá-las, com o que ficaria livre; e isto dizia o Marquês por não saber quais elas eram, embora desconfiasse e muito que Vila-Real judaizava, pois, estando em França ocupado no seu serviço, quando chegava o sábado, às vezes lhe perguntava com ar malicioso se queria trabalhar.

Dissemos que El politico christianissimo incorrera nas iras do Santo Ofício, e agora veremos como foi ele o começo da cadeia de acontecimentos que levou à morte o seu desgraçado autor.

Teve a Inquisição de Lisboa a notícia da primeira edição desta obra, e censurou e mandou riscar algumas das suas proposições que julgou contrárias à fé e ao santo tribunal. Apareceu a segunda edição e foi do mesmo modo percorrida minuciosamente e riscada nos pontos em que conveio. O padre mestre frei Inácio Galvão, a quem se distribuiu o livro, achou que tinha coisas menos seguras e outras mordazes e escandalosas, e considerou-o muito prejudicial e o autor digno de ser buscado, examinado e obrigado a declarar o que se via querer ensinar disfarçadamente. Isto foi a 6 de Abril de 1643. Em 31 de Agosto, a obra tornou ao qualificador com as passagens riscadas. Viu-a ele novamente e opinou que ainda se tirasse o que o autor dizia acerca da expulsão dos mouros da península, onde pretendia mostrar que, não sendo a religião parte ofendida, não se devia proceder no que às escondidas se fazia contra ela. Estava portanto suspeito Vila-Real, e o Santo Ofício não esperava senão que este voltasse ao reino para lhe cravar desapiedadamente as garras. Quanto à obra foi vendida, depois de emendada pelo livreiro Francisco da Costa, familiar da Inquisição, a quem o autor a mandara entregar para esse fim, por intermédio de Luis Fernandes Vila-Real, seu parente, como é de supor dos apelidos, e, morto este, directamente. Inocêncio Francisco da Silva possuía um exemplar de cada uma destas edições, achando-se na primeira riscadas e ilegíveis algumas passagens a páginas 78, 103, 109. 139, 140, 217e 237, e na segunda supridas as folhas respectivas com cartões ou folhas intercalares. De ambas fala no seu Diccionario biblographico. (4)

Chegado Vila-Real a Lisboa a 30 de Abril de 1649, requereu o promotor do Santo Ofício, em vista da qualificação do padre mestre frei Inácio Galvão, que ele fosse chamado à Mesa e aí examinado pelas proposições censuradas, por ser necessário proceder-se contra este homem e desviá-lo de que pudesse no reino confirmar com a presença e doutrina o que dava a entender no dito livro, o qual, reparava o perspicaz e malevolente promotor, acabava por um vivimus in spe muito ajudaizado.

El politico christianissimo não trazia por extenso o nome do autor, porém só: el capitan M.F. de Vila-Real; reflectira nisso o padre Galvão; e agora, tratando-se de ouvir quem o escrevera, cumpria antes de tudo, verificar se era com efeito quem o dito padre julgava. Foi o que o promotor lembrou no seu requerimento e o que os inquisidores determinaram. Interrogaram-se por conseguinte os livreiros Diogo Jorge, Francisco da Costa e Manuel Rodrigues, familiares do Santo Ofício, os quais concordes asseveraram que a paternidade da obra pertencia a Manuel Fernandes Vila-Real; e os inquisidores, obtida a certeza do autor, ordenaram que ela fosse revista outra vez pelo padre mestre frei Fernando de Menezes. Não se mostrou este mais favorável do que o padre Galvão, pelo contrário, concluído o seu arrazoado com as seguintes comprometedoras palavras: «o que tudo visto, quando tão claramente não merecera o livro e o autor a censura apontada, bastará para fazer contra ele veemente presunção.” Daqui resultou requerer o promotor que o delato, como de veemente suspeito na fé, e também notoriamente de tentar fugir (não diz como) fosse recolhido no cárcere da penitência, e os inquisidores assim o resolverem em assento de 8 de Junho. Poder-se-ia estranhar, ponderava este assento, que tendo-se mandado emendar e recolher o livro, se deixasse andar o autor à vista do Santo Ofício, ao qual tão insolentemente ofendera, e ao qual só ousara aparecer depois de imaginar que, amparando-se com os ministros da Companhia do Comércio, e servindo-os com o conselho e com a pena, o livrariam do procedimento que justamente receava; que tudo se atalharia com a emenda ou castigo do delato; e que havia a temer outros males de homem tão atrevido, tão reputado entre os da sua nação, e tão presumido, que ousara escrever em matérias que lhe eram de todo alheias. 

Apesar deste assento, o Conselho Geral resolveu em 15 de Junho que a culpa se reportasse e que se aguardasse acrescimento de outra prova.

Essa prova não tardou a aparecer. 

Trouxera Vila-Real consigo uns quinhentos volumes da sua biblioteca, deixando em França a maior parte dela, pouco mais ou menos mil e quinhentos. Aqueles livros, conforme o uso, foram levados, mal desembarcaram, da Alfândega para a Inquisição, a fim de serem examinados; tocou ao padre mestre frei Fernando de Menezes a incumbência. Procedeu este à investigação; separou de todos dezasseis obras condenadas no Index librorum prohibitorum, além de quinze, que nele o não eram, mas que o deviam ser pela doutrina; e o delato foi chamado à Mesa a depor a tal respeito. Ocorreu o interrogatório no dia 7 de Agosto, e eis em resumo as respostas de Vila-Real: apresentou à Inquisição todos os livros que importou de França; advertiu ao padre mestre frei Fernando de Menezes acharem-se entre eles alguns de autores hereges e outros que precisavam expurgados; trouxe os defesos porque não pôde escolhê-los com a pressa da partida; por andar ocupado com ela e ausente de Paris, devido ás revoltas do Parlamento, não fez a selecção que devia, e encarregou um criado de lhe apartar os latinos e franceses porque lhe eram mais necessários para escrever no reino em certas matérias; entre os ditos livros vieram alguns italianos, por serem impressos em Paris; tentou na viagem deitar ao mar os proibidos, do que o Marquês de Nisa o dissuadiu, dizendo que a Inquisição, a que seriam apresentados os estremaria: os que deixou em França eram católicos e estampados em Portugal, Itália e Espanha; e lera em França alguns dos proibidos, como os de Machiavelo, Bodin, e Carion, porque naquele reino se permitia a leitura destes e de outros quaisquer (5).

Esta nova culpa veio agravar a primeira. Concluiu-se do depoimento de Vila-Real, apesar das suas razões, que provariam o contrário num tribunal mais recto, que ele quis introduzir em Portugal ocultamente as obras defesas, em prejuízo da fé: que bem o mostrava trazê-las e deixar em França as católicas; e que o pretender lançá-las ao mar acusava a sua malícia. Ordenou portanto o Conselho que se juntassem estes autos aos mais que houvesse contra o delato, e que juntos se vissem em Mesa; pediu o promotor a sua prisão e exame; e deferiram favoravelmente os inquisidores; mas o Conselho, antes de tudo, assentou que se classificasse e censurasse a nova culpa. Distribuíram-se para isso cópias das proposições condenadas do El politico christianissimo e das listas dos livros proibidos a frei Pedro de Magalhães, frei Gregório da Gama e frei Gaspar dos Reis, os quais apresentaram os seus pareceres, aqueles em 25 de Agosto e este em 2 de Outubro, sendo o primeiro de opinião que as proposições não mereciam censura teológica, porque, embora contrariassem os procedimentos rigorosos do Santo Ofício, como estes não eram artigos de fé, mas juízos de homens, ficava fora da censura da fé o estranhá-las, e o segundo e o terceiro que eram contra a fé, e portanto censuráveis e heréticas. Quanto aos livros proibidos, os dois primeiros não encontraram culpa em atenção a tê-los Vila-Real apresentado e denunciado, e o terceiro opinou que por este facto atenuava muito a suspeita de heresia contra ele concebida.

Conhecidos estes pareceres, os inquisidores decidiram (sessão de 7 de Outubro) que se executasse o assento da Mesa de 8 de Junho, isto é, que o delato fosse recolhido no cárcere da penitência. Apenas o inquisidor Pedro de Castilho discordou da opinião dos seus colegas, julgando que de trazer Vila-Real os ditos livros não resultara coisa alguma de novo contra ele, segundo se concluía dos pareceres dos qualificadores que portanto se devia esperar mais prova; e que não estava alterado o assento do Conselho Geral que assim o determinava.

 

IV

 

Pressentia Vila-Real os ameaços da tempestade que se avizinhava; mas também punha alguma confiança nos serviços tão distintamente prestados e em tantas pessoas de valia e autoridade, de quem era amigo ou com quem mantinha relações mais ou menos íntimas, serviços que o perigo iminente e as circunstâncias o obrigavam talvez a continuar com maior fervor, amizades e relações que de certo por iguais motivos procurava estreitar. Senão vejamos o seu modo de vida. De manhã estava ordinariamente no paço; as tardes passava-as em visitas; e as noites até às oito e nove horas quase todas em casa do licenciado João Baptista Caldeira, sacerdote e amigo seu de vinte e oito anos, morador na Rua larga de S. Roque, defronte da Cordoaria Velha, onde se reuniam João Guterres, o Padre Gregório de Pina, beneficiado em S. Julião, o doutor João Correia de Carvalho e outros. Além disto, frequentava as casas e o conhecimento do Marquês de Nisa, do Conde de Penaguião, camareiro-mor, de D. Antonio da Cunha, de D. Rodrigo de Menezes, de Rui Fernandes de Almada, de D. Francisco Manuel de Melo, com quem jantou na Torre Velha, onde este ilustre escritor estava então preso, do doutor João Pizarro, e do doutor Vicente Feo e de Fernão Peres de Sousa, com quem jantou duas vezes na quinta que foi de Simão de Sousa, em Alcântara, em companhia dos ditos licenciado Caldeira e do padre Gregório de Pina; e, a ser verdade o que dizia um dos assentos inquisitoriais que resumimos, o que é provável, para se amparar contra as iras do Santo Ofício estreitava as suas ligações com  a Companhia do Comércio.

Não se limitavam à amizade e conhecimento com alguns eclesiásticos de respeito as demonstrações que Vila-Real dava de bom católico, porque por outro lado amiudava as práticas religiosas e a frequência das Igrejas; em prova do que, basta considerar-se que só no limitado espaço de seis meses que esteve solto em Lisboa ouviu nada menos de vinte e três sermões, a saber: dois em Santa Clara, dia da Ascensão e no domingo seguinte; dois do padre frei Domingos de S. Tomás, um dia de Santo António na Esperança e outro na Anunciada, na profissão do irmão do Marquês de Gouveia; cinco do padre frei Manuel de S. José, da ordem de Santo Agostinho, dois na Madalena, dias de S. Pedro e de Santa Ana, um na Encarnação, outro na Esperança, dia das Chagas de S. Francisco, e outro dia de S. Lucas, à tarde, na Igreja de S. Tiago; quatro do padre Ardizone em S. Nicolau, S. Julião, Loreto e na  Companhia de Jesus; dois na Conceição, um do guardião de Xabregas, e o outro do padre Antonio Vaz de Sousa, dia de S. Jerónimo: dois na Igreja dos Irlandeses, de um cónego de Cochim, e do padre frei Jerónimo da Fonseca, da ordem dos Pregadores; um do padre D. Próspero, de S. Vicente de Fora, dia do Corpo de Deus em S Nicolau; um do padre frei Jerónimo de Moura, dia de S. Lourenço, na quinta de D. António da Cunha; um do padre Saraiva em S. Roque, dia de Santo Inácio de Loiola; um do padre frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo na Misericórdia, dia de Santa Isabel; um do padre Antonio Vieira em Xabregas, nas exéquias de D. Maria de Ataíde; e um na Trindade, dia do Corpo de Deus.

Não é menos abundante a lista dos seus escritos neste breve período; são eles: uma resposta em francês a uma carta que contra Portugal se publicara em Holanda, a qual traduziu em português para que a visse o Príncipe D. Teodósio; uma relação do último sucesso do Brasil e outra do de Olivença, ambas feitas por ordem de S. M. e com as memórias que lhe deram os secretários de Estado e de Guerra, as quais imprimiu; uma memória sobre o sal do reino que os holandeses queriam tomar à sua conta; outra sobre o Consulado se entregar aos mercadores e sobre os meios como podia haver navios que defendessem a costa: outra sobre navios ingleses que deviam ir naquele ano à Índia; outra exortando D. João de Áustria, a subir ao trono de Nápoles, que se devia imprimir por ordem de S. M.; outra sobre Irlanda e soldados que dali podiam vir; outra sobre a comissão para que estava despachado, de bastante importância; e outras muitas advertências que mereceram dizer-lhe S. M. que as agradecia por serem de consideração.

Além destas obras de carácter oficial, trabalhava numa cronologia universal do mundo, que principiara havia vinte e dois anos; interrompera longo tempo e continuara muito depois, a instâncias do Marquês de Nisa, o qual a viu e louvou, lembrando a conveniência de ser dedicada ao Príncipe D. Teodósio, pela grande afeição que tinha àquela matéria, e da qual mostrara alguns cadernos ao padre frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, que a aprovou igualmente. Planeava compor também uma década do segundo governo do conde da Vidigueira, D. Francisco da Gama, como vice-rei da Índia: Fora o Marquês de Nisa que a isso o levara, e já tinha umas sessenta folhas escritas de memórias para ela. Pretendia outrossim fazer e publicar uma história do rei de França, Luis XIII, com tudo o que tocava àquele reino, da qual já escrevera muitos cadernos e uma história geral do mundo e em particular da Europa desde 1640, cuja repartição já se achava pronta.

Vimos pouco acima que Vila-Real estava despachado para uma comissão; ignoramos qual fosse; apenas consta que por ela receberia quarenta mil réis mensais e que, desempenhada, devia tornar ao reino, na primavera. O que sabemos com certeza é que, tendo alcançado dos mercadores de Lisboa o direito que se lhe havia de dar do consulado, procurou tirar confirmação do lugar e o requereu, mandando-se o requerimento ao Desembargo do Paço, o qual a 27 de Outubro determinou que se passasse o competente alvará; que pretendia o titulo de agente de S. M. em França e ordenado para continuar no serviço, e uma capela em recompensa dos que fizera; que entregara os papéis desta última pretensão ao secretário Gaspar de Faria Severim em 28 de Outubro, e que a Junta dos Três Estados o nomeara para cuidar em França de tudo quanto  lhe tocasse a respeito de alistamento de soldados, compra de cavalos e mantimentos e cobrança de dívidas. Também fora comissionado pela Companhia de Comércio para tratar dos seus negócios em França, ou então, ou antes de vir para Portugal, encargo para ele de grande utilidade.

V

 

Estavam pois satisfeitas ou quase a satisfazer-se as suas pretensões; breve deixaria o solo da pátria e breve, fora de seus perigos, tornaria a viver livre entre estranhos, já que a intolerância, o fanatismo e paixões sórdidas não consentiam que vivesse livre nele. Mas neste meio tempo a Inquisição, preparada com elementos novos e mais poderosos de ataque, urdia na escuridão os laços tenazes com que havia de prendê-lo e sacrificá-lo. O principal desses elementos é repugnante e inesperado; teve por móvel uma paixão particular, vil e mesquinha; e partiu de um homem que estamos costumados a respeitar, que bem serviu a nação com os seus escritos e cuja ciência, depois de admirada na sua época, até hoje entre os povos mais cultos se reflecte; referimo-nos a frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo. Tinha este religioso estado em França com o Marquês; tinha morado sua casa juntamente com Vila-Real; tinha com ambos vindo para o reino; e entre ele e Vila-Real tinha-se estabelecido uma certa má vontade, que transparece nalgumas palavras dos depoimentos do último, e que no padre atingiu as proporções de ódio declarado. Deram-se mesmo desavenças entre os dois; uma vez à ceia, em França, na casa do Marquês, até chegaram a termos ofensivos, e Vila-Real, segundo parece, de génio violento e pronto de mãos, descompô-lo diante dos familiares. É verdade que, serenada a tempestade, como serenariam outras, conviveram bem na aparência; é verdade que continuaram de longe a longe entre ambos umas certas relações literárias; é verdade que Vila-Real chegou a consultar frei Francisco sobre pontos duvidosos e amostrar-lhe as suas obras; mas por baixo daquela superfície enganadora, corria sempre ameaçador e torvo o rio da malquerença. Encolerizado frei Francisco jurou em varias ocasiões que se havia de vingar, sendo decerto alguma dessas, quando Vila-Real lhe censurou o fazer e dedicar versos aos senhores franceses para lhes apanhar dinheiro, e quando, ao saber que o padre ia a Saint Germain pedi-lo à Rainha, então regente, por uns escritos que compusera em seu louvor, mostrou ao Marquês a inconveniência e a vergonha de semelhante acção, pelo que o Marquês lhe proibiu a viagem. Ignoramos se, depois de estar em Lisboa, acresceram novos motivos de inimizade; o caso é que três meses quase após a chegada, frei Francisco procurou o Inquisidor Geral e denunciou-lhe o seu antigo companheiro, não prosseguindo então nas diligências, diz ele, por julgar que Vila-Real voltava a França, onde não seria de tanto prejuízo; passados porém três meses, constando-lhe que ficava em Portugal, denunciou-o novamente em 15 de Outubro na Mesa da Inquisição, temendo o grande dano que traria ao país pelas protecções de que dispunha e pelas suas relações com pessoas desafectas ao Santo Ofício.

Vila-Real, depôs ele, inclinava-se à lei de Moisés; dava-se e carteava-se, sem ser por comércio, com judeus de Paris, Ruão e outras partes do norte da França, e deles recebia livros da sua seita, que lhe viu, sendo um deles em português de doutrina e cerimónias judaicas; trouxera de França e a ocultas, muitos livros heréticos e perniciosos; tinha vários livros e papéis impressos e manuscritos contra o Santo Ofício; um dos ditos livros era composto por António Henriques Gomes, cristão novo português morador em Ruão, muito amigo de Vila-Real, e continha coisas infamíssimas contra o mesmo tribunal (6), se bem que Vila-Real em presença dele padre declarava que a substância era verdadeira, mas o modo de escrever escandaloso é que impedira acabar de imprimir-se o dito livro; indo ele padre a França em companhia do Monteiro-mor em quarenta e um, conhecera ali Vila-Real e este lhe mostrara e ao secretário da embaixada, Cristóvão Soares de Abreu uma obra que queria imprimir da vida do cardeal de Richelieu, na qual havia numerosas calúnias e queixas contra o Santo Ofício em Portugal, claramente indicando ter-lhe grande ódio, as quais eles dois lhe reprovaram e Vila-Real prometeu tirar, o que fez só parcialmente e deixando outras bastantes para o Santo Ofício mandar recolher o livro depois de impresso; Vila-Real jactava-se-lhe de ser israelita da tribo de Levi e de profetizar por ter sangue de profeta; tratava de fazer reformar os procedimentos do Santo Ofício e de reduzi-los ao estilo de abertas e publicadas o que dizia com paixão, como quem o desejava: e era tido em Portugal pelo mais activo dos homens de nação, e por seu intermédio facilitariam eles o que quisessem. Sabiam de tudo o padre frei António de Serpa, religioso da Piedade que estivera em França com o Marquês, e José Henriques e Fernão Marinho, um estribeiro e outro criado do Marquês; mas receava que sendo estes dois homens perguntados, o manifestassem a seu amo, o qual também o sabia, por favorecer muito Vila-Real para se servir dele nos negócios do reino.

Sete dias depois, a 22, frei Francisco tornava a aparecer ante os inquisidores, e declarava ter ouvido que S. M. mandava a França Vila-ReaI com grande ordenado, devendo voltar a Lisboa dentro de seis meses; que receava levasse papéis e recados contra o Santo ‘Ofício; que em Nantes falara a um cristão novo, advogado, morador em Monforte, no Alentejo, fugido então de Portugal, por medo de ser preso, mas, segundo dizia, sem culpa, o qual lhe contou que os cristão novos portugueses tinham posto em Roma duzentos mil cruzados para obterem perdão geral e que no Santo Ofício houvesse abertas e publicadas; e que em França escolheria companheiros para irem negociar estes pontos com Sua Santidade; que temia se juntasse Vila-Real com o de Monforte tanto mais que em França lhe ouvira a mesma opinião quanto às abertas e publicadas, chegando a pedir ao Marquês que neste sentido escrevesse a El-Rei, no que o Marquês não concordava, posto lhe parecesse justo se concedessem outros favores à gente de nação; que tinha Vila-Real na conta de judeu, pelo que lhe ouvira; e que o Marquês reparava ir ele, quando em França residia, passar as Semanas Santas a Ruão, onde estava sua mulher, e dizia que era para comer o cordeiro pascal com seus amigos naquela cidade, na qual havia muitos judeus declarados.

Em virtude do primeiro depoimento de frei Francisco, foram interrogados o Marquês de Nisa, os dois criados deste e o padre frei Antonio de Serpa. Segundo o Marquês, as pessoas de nação que se ausentavam de Portugal eram em geral suspeitas de judeus, tanto que, havia anos, se fizera queixa em Paris de o serem os cristãos novos que viviam em Ruão, queixa que eles, com temor do castigo, abafaram por meio de dinheiro; Vila-Real só gracejando é que dizia descender de profetas, e isto quando prognosticava certos acontecimentos; com efeito Vila-Real quis ir tirar do navio onde os embarcara os livros proibidos; quanto ao livro de ritos judaicos intitulado Thesoiro dos Denim, que ele Marquês possuía e sobre que também fora interrogado, enviou-lho de Roma o cónego D. Vicente Nogueira que o obtivera de Amsterdam; quanto à obra do António Henriques Gomes, ou Vila-Real ou Jorge de Sousa, criado dele Marquês, pois não se lembrava bem qual fora, participara-lhe a sua impressão em Ruão, e que continha coisas contra o Santo Ofício, posto o não nomeasse, pelo que ele Marquês obteve uma carta do rei de França para o primeiro presidente do parlamento daquela cidade, a fim de impedir a sua continuação e de tomar o que houvesse impresso e os originais; Henriques Gomes, intimado a desistir anuiu à vontade do Marquês, pelo menos não prosseguiu no intento em quanto este viveu em França; Vila-Real reprovava a impressão e foi ele que andou com os recados para a mesma se atalhar (7).

Fernão Marinho coisa alguma depôs que interesse; e José Henriques somente que no quarto de Vila-Real em Paris vira um caderno manuscrito da obra de António Henriques Gomes, onde, conforme o dito Vila-Real lhe contou, se falava muito mal do Santo Ofício.

Frei António de Serpa, religioso de S. Francisco da Província da Piedade, morador no convento dos Olivais, de Coimbra, que fora confessor do Marquês de Nisa todo o tempo que este residiu em França, qualificado por Vila-Real como sujeito de grande virtude e tanto de sua confiança, que estava pelo que ele declarasse acerca de sua vida e costumes não lhe foi pouco prejudicial, pois testemunhou tinha Vila-Real por judeu, opinião que era também a de muitas pessoas, e por ateísta; e o considerava judeu; afora outras razões, porque, depois que foi para Holanda Jacques Fernandes, filho de português, nascido em França e público professor da lei de Moisés, Vila-Real tratava em Paris dos seus negócios e com ele se correspondia; porque tinha igual familiaridade com outro judeu chamado D. Jorge de Madrid, que estava na Sinagoga de Roterdão professando publicamente a mesma lei, e por ver cartas a Vila-Real do Arquisinagogo de Amsterdam e Vila-Real gabar-se de as ter e de nelas ser convidado para segui-la nesta cidade, e fazendo-se-lhe para isso grandes partidos. Referindo-se à obra de Antonio Henriques Gomes, declarou que algumas pessoas de casa do Marquês de Nisa acreditavam serem da pena de Vila-Real os períodos mais violentos dela. Enfim Vila-Real censurava os procedimentos do Santo Ofício; propalava que os inquisidores enriqueciam com os bens dos cristãos novos; e juntamente com o padre António Vieira era de  parecer que houvesse em Portugal sinagoga pois a havia em Roma, e abertas e publicadas. Por meio de ambos se intentaria o comércio da bolsa do reino e se procuraria quanto conviesse à gente de nação.

No dia seguinte, 23 de Outubro, frei Francisco ainda voltava à carga para depor que Vila-Real é que dera ao Marquês o livro Thesoiro dos Denim (ao contrário do que dissera o próprio Marquês); e que o autor era um famoso rabino português, morador em Amsterdam, conhecido daquele, muito douto em línguas, e que tratava de estampar outras obras semelhantes.

Ouvidos os testemunhos das pessoas indicadas por frei Francisco, deu-se ordem a 29 de Outubro a dois familiares para prenderem Vila-Real e para este se pôr nos cárceres secretos, visto as suas culpas o pedirem. Assim se executou: e no dia 30 foi o preso entregue ao alcaide dos cárceres e posto em cárcere de vigia no segundo do Pátio Velho.

VI

 

Estava situado o tribunal da Inquisição de Lisboa no bairro do Rossio, e estendia-se no tempo da nossa narrativa por uma grande área, desde o norte de um pequeno largo com que terminava, indo do sul, a linha ocidental da praça do mesmo nome, até às hortas de Valverde, que lhe demoravam ao setentrião, já fora dos muros da cidade; os quais, depois de atravessarem a calçada de Santa Ana e descerem à rua das Portas de Santo Antão, pouco ao sul da Igreja de S. Luis, se encostavam a uma parte do tenebroso edifício, no seu caminho para o Largo de S. Roque, onde se abria a porta do Condestável.

Para maior clareza convém assentar que entre o palácio do Conde de Almada, agora no sítio de então, porque o não destruiu o terramoto, e o palácio inquisitorial existiam três ruas, embora uma sobremodo estreita (8); o que levaria a frente oriental dele quase até ao moderno Largo do Camões; além disso, a linha setentrional da praça não era tão recuada como hoje. De quanto dizemos, pode-se portanto conjecturar que a Inquisição ocupava este largo, uma parte do quarteirão do Rossio que presentemente o limita, e uma faixa do terreno em que está o Teatro de D. Maria, prolongando-se para o norte até ao princípio da Avenida ou à rua do Jardim do Regedor, na vizinhança da qual corria a fortificação por essa banda. A frente principal caía sobre o pequeno largo, de que falámos; a oriental, mais comprida, para a primeira das ruas intermédias a ela e ao palácio do Conde de Almada, e a do norte para a rua que comunicava com a Horta da Mancebia, a qual lhe ficava ao ocidente, de fora do muro da cidade, muro que por aqui em grande extensão, contornava o edifício.

Constava este de um andar térreo e de mais três, embora só tivesse janelas nos quatro andares da fachada do norte, porque às do sul e do oriente contavam-nas só em três. A sua parte anterior compreendia no andar térreo e no primeiro os aposentos do bispo Inquisidor Geral, os dos seus criados, dos oficiais da casa, do alcaide dos cárceres, do seu guarda, e várias dependências; no segundo aposentos de inquisidores e de seus criados, do alcaide dos cárceres e competentes dependências, a sala pública dos tribunais, um oratório com seu retábulo e com um crucifixo, que servia nos autos da fé onde os inquisidores e ministros do Santo-Ofício ouviam missa, e que dava para a dita sala, na qual também a ouviam os seus oficiais, o tesouro, e a Mesa Grande com o seu secreto (destinado à guarda de todos os processos, repertório, livros e papéis de segredo); no terceiro, quartos de criados dos inquisidores. No meio desta parte, abria-se um bom pátio com colunas ou pilares, para onde olhavam as portas e janelas das casas circunstantes. A parte central continha, do oriente, nos andares térreo e primeiro, acomodações para os inquisidores, seus criados e para vários oficiais e ainda algumas para os tribunais no segundo andar, como a do despacho da Mesa Pequena e seu secreto, etc. e no terceiro algumas casas dos inquisidores, etc. Nesta parte, ao centro, é que estavam os cárceres, ao redor de um espaçoso pátio, que não teria menos de cento e oitenta palmos por cinquenta e cinco, sendo no andar térreo dez do lado de leste, e do lado de oeste sete na primeira ordem e dez na segunda; no segundo andar o mesmo, excepto na primeira ordem de oeste, que tinha oito cárceres, e na mesma disposição; no terceiro, a disposição era igual e igual o número dos cárceres orientais; nos ocidentais porém havia a diferença de serem nove em cada ordem. Os do oriente eram os maiores, uns trinta e cinco palmos por quinze; os do ocidente mediriam vinte por doze, os maiores, e vinte por oito os menores, menos dois do último andar que teriam vinte e cinco por vinte. Os cárceres, a não serem os ocidentais da segunda ordem do terceiro andar, não recebiam a luz directamente de fora, porque não tinham janelas nem frestas, mas sim das que havia nos corredores que davam para o pátio central, ou para outro mais pequeno triangular que limitava os últimos do ocidente. Em geral tinham só porta para os corredores, e as janelas destes ficavam em frente das portas; alguns havia contudo na parte ocidental do segundo e terceiro andar que tinham para eles também janelas ou frestas. No andar térreo, os corredores eram substituídos, em cada cárcere por uma casinha de entrada, com janela e porta para os pátios, e da qual se passava ao cárcere fechado por outra porta. Aos do andar térreo e do segundo andar ficava contígua uma cozinha. Por detrás dos cárceres orientais do andar térreo havia um espaço destinado para as sepulturas dos presos que morriam na Inquisição: triste vizinhança e triste jazigo! Os cárceres de vigia eram os do ocidente no andar térreo e no segundo, no prumo deles; estes últimos compreendiam-se no número dos que dissemos terem porta e janela ou fresta para os corredores, menos três que só tinham porta. Eram, como todos daquele lado, em duas filas paralelas, e entre elas estendia-se o corredor dos vigias. Era ainda nesta parte central no andar térreo que se via a casa do tormento, e junto dela outra, onde os inquisidores estavam durante a sua execução. A parte norte do edifício, cuja frente olhava para a rua da Horta da Mancebia, continha em geral no andar térreo e no primeiro diversos quartos de oficiais; no segundo, aposentos do terceiro inquisidor, o cárcere da penitência com o seu oratório, a casa do seu guarda, etc., e no terceiro aposentos de outro inquisidor, cárceres da penitência e casas com vários destinos. Nesta parte havia interiormente dois quintais, e em todo o edifício alguns eirados, onde os inquisidores tomavam o fresco (9).

Eis o lugar a que levaram preso Vila-Real, eis a sua habitação, antes, o seu sepulcro de mais de três anos, e donde só devia sair para entregar a vida ignominiosamente nas mãos do carrasco.

 

VII

 

A prisão de Vila-Real foi sem sequestro de bens; assim está notado no auto competente. Chegado à Inquisição em companhia do familiar, veio logo um secretário da Mesa tomar a entrada do preso e o alcaide dos cárceres tomar entrega dele com dois guardas. Depois sendo revistado, encontraram-lhe dois mil e sessenta réis e dois anéis de oiro, um com dois diamantinhos e uma pedra vermelha e outro com dois diamantinhos o que tudo foi entregue a Pedro Lupina Freire, notário e tesoureiro da Inquisição. Feito isto, o alcaide levou-o com dois guardas para o cárcere. 

A 4 de Novembro, cinco dias depois de preso, compareceu Vila-Real diante dos seus juízes, acompanhado por um guarda. Era a casa da Mesa do Despacho bastante espaçosa e posta em lugar resguardado, de maneira que de fora não se podia ouvir nada do que dentro se passava. Forravam-na panos de rás, que no Verão se substituíam por guadamecins; e tinha em roda várias cadeiras de espaldas e rasas. Sobre um estrado de quatro dedos de altura via-se uma grande mesa coberta de coiro preto e vestida até ao chão de damasco carmesim, na qual estavam um missal para os juramentos, uma tábua com a oração do Espírito Santo, os Regimentos do Santo Ofício e do Fisco, o Collectório das Bulas Apostólicas e Privilégios da Inquisição, alguns tinteiros de prata e uma campainha. Esta mesa tinha três gavetas, onde os três inquisidores que assistiam às sessões guardavam os seus papéis debaixo de chave. Cercavam-na algumas cadeiras. Havia mais um banco para os réus e na parede em frente deste uma imagem de Cristo crucificado. Reunidos os inquisidores, disse o mais antigo a oração do Espírito Santo, e começou a audiência. Chamava-se esta primeira: sessão da genealogia. Prestou o réu o competente juramento de dizer a verdade, e, interrogado pelos seus juízes, depôs qual sua idade: quarenta e um anos, e quais seus pais, naturalidade, parentes, mulher, empregos e serviços, o que tudo já sabemos, na parte que nos cumpre, tirado deste mesmo lugar: e que sua mulher se ausentara havia pouco, de Ruão para Itália, induzida por Pedro Lopes Henriques, cristão novo, morador naquela cidade, casado com uma parenta da mesma, levando também sua filha única, Violante, as quais, por Pedro Lopes não ser católico, temia se pervertessem; e que ele Vila-Real, baptizado e crismado como cristão; fazia como tal todas as obras; e nisto, para o provar, por ordem dos inquisidores, ajoelhou, persignou-se e rezou o padre nosso, a ave-maria, o credo e a salve-rainha, e repetiu os mandamentos da lei de Deus e os da santa madre igreja. Quanto ao motivo por que estava preso, ignorava-o; mas suspeitava provir das acusações de alguns dos seus inimigos, e sobretudo de Frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo, o qual jurara vingar-se dele por desavenças que tinham tido em França. Acabado o depoimento, foi admoestado para dizer todas as suas culpas. Esta era a primeira admoestação.

Eram os cárceres de vigia uns cárceres especiais e assim chamados porque tinham uns pequenos orifícios imperceptíveis ao preso, donde o vigiavam dois empregados que se rendiam a horas determinadas. Supondo estarem sós e fechados a todas as vistas nos seus quartos, os pobres cristãos novos atreviam-se a praticar as cerimónias e leis da religião judaica do mesmo modo que as praticavam nas próprias casas, unicamente com a diferença de as amoldarem ao lugar e ao aperto das circunstâncias; mas, ao revés do que imaginavam, todos os seus actos, até os mais insignificantes, se observavam e depois escreviam e ratificavam perante a Mesa. Num destes cárceres é que encerraram Vila-Real, como vimos.

Os primeiros dias passaram sem novidade; nem a vigia foi constante; chegou porém quinta feira 11 de Novembro e o réu fez um jejum judaico, posto não provado em forma; pelo que, dali em diante, a vigia começou desde pela manhã e continuou todo o dia ininterruptamente. Na quinta-feira seguinte, 18, Vila-Real fez novo jejum, esse provado em forma. Vejamos como se passaram as coisas nesse dia. Entraram nele de vigias, de manhã, desde as seis horas até às doze, os guardas José Pires e Francisco de Resende, e de tarde, desde as seis horas até depois de anoitecer, os familiares Francisco Rodrigues e Luis Franco. São tão curiosos e tão pouco do maior número conhecidos estes mistérios da Inquisição, e pintam-nos tanto ao vivo a existência dos presos nos cárceres e a minuciosidade com que eram espreitadas e pesadas as suas mínimas acções, que não nos furtamos ao trabalho de resumir os depoimentos do guarda José Pires e do familiar Francisco Rodrigues, com o que daremos uma ideia do primeiro jejum, porque os depoimentos de ambos completam o dia.

Na dita quinta-feira, 18, sendo entre as cinco e as seis da manhã, de ordem do alcaide, subiu José Pires à vigia que caía sobre a segunda casa do Pátio Velho, juntamente com o seu companheiro, e, pondo os olhos naquela, viu um homem que na mesma estava preso, só, e a quem não sabia o nome, nem donde era natural, ao parecer, de quarenta anos, de estatura ordinária, nem gordo, nem magro, e que, havia pouco tempo, entrara para os cárceres. Estava ainda na cama e nela esteve até às nove horas. Então vestiu camisola lavada; levantou-se; vestiu ceroulas lavadas e escarpins; acabou de arranjar-se, e lavou as mãos, mas não o rosto nem a boca (actos que fez outros dias em que o mesmo guarda foi à vigia e observou que o preso lavava a cara e gargarejava com água e a bebia); depois andou passeando, pondo-se algumas vezes ao pé da porta, como que à escuta, e deitou-se um pouco na cama. Nisto gastou o tempo até lhe trazerem o jantar, que foi carneiro cozido. Já tinha Vila-Real disposto a mesa em um tanho; depois, cobriu-o com um guardanapo; foi buscar pão e passas; tirou a carne do caldo; deitou-a numa palangana; limpou-a dos ossos; botou-a ao gato, cortada em bocadinhos e o caldo na quarta da imundície; guardou na tigela em que estivera a carne os ossos e umas migalhas de pão, que untou com uma colher, para parecer que eram sopas que haviam sobejado; e colocou-a à porta, não consentindo que o gato comesse aquelas migalhas até que vieram os guardas e levaram a loiça. Levantara o preso a mesa, porém antes que eles entrassem, teve cuidado de pô-la outra vez, para julgarem que estava ainda comendo. Feito isto, estendeu-se em cima da cama e aí ficou algum tempo, e ergueu-se e passeou até um quarto depois do meio dia. A esta hora, retirou-se da vigia o guarda José Pires, e imediatamente subiu a ela o familiar Francisco Rodrigues com seu companheiro e viu que na dita segunda casa andava passeando um homem (de que dá os sinais), o qual continuou passeando até perto da uma hora; em seguida chegou à porta e aplicou o ouvido, como escutando; deitou-se algumas vezes na cama, porém sempre muito esperto e sempre como que esperando ouvir alguma coisa; bateu na parede quatro ou cinco vezes com um pauzinho; mas ninguém lhe respondeu pelo mesmo modo; nisto gastou o tempo até lhe trazerem luz, por ser quase noite; perto das sete horas e tendo o céu já estrelas, estendeu um pano sobre um tanho; pôs nele um pedaço de pão, passas e peros e começou a cear, bebendo duas vezes de vinho, que tirou de um barril, e em que botou água; acabada a refeição, levantou-se, sem dar graças a Deus, nem benzer-se; quando soaram as ave-marias, estava deitado na cama, sem que então rezasse, nem descobrisse a cabeça, nem fizesse outra reverência alguma.

A este depoimento seguiu-se o do guarda Francisco de Resende, companheiro de José Pires, e o do familiar Luis Franco, companheiro de Francisco Rodrigues, o primeiro dos quais testemunhou do que vira de manhã e o segundo de tarde semelhantemente ao que fica dito.

Continuando os vigias na sua tarefa, sempre dois de manhã e dois de tarde, aqueles das seis ao meio dia e estes do meio dia até depois de noite, descobriram que na quinta feira seguinte, 25, Vila-Real fez outro jejum judaico e mais dois nas duas próximas quintas feiras, 2 e 9 de Dezembro. A respeito de todos houve os depoimentos dos vigias, procedendo-se depois à sua ratificação e ao termo de reconhecimento e confrontação deles com o preso, no qual asseveraram ser o próprio que tinham visto. Para o reconhecimento foram chamados à casa do Secreto e o réu à Mesa, e dali o observaram escondidos pelo pano de rás da porta que comunicava as duas casas.

Não findaremos este capítulo sem acrescentar algumas palavras de consideração. Vimos que as testemunhas do primeiro jejum foram dois guardas e dois familiares, isto é, sujeitos empregados no serviço do Santo Ofício; pois no mesmo caso, se encontram as doze dos três jejuns restantes, que se reduzem a sete, porque cinco entraram de vigia duas vezes, as quais vêm no processo com aquelas qualificações, e uma com a de meirinho e outra com a de solicitador do tribunal, do próprio tribunal em que o réu se julgava. E com tais testemunhas se dava como provado o crime! A imediata subordinação em que muitas dessas pessoas estavam para com a Inquisição, os baixos e pouco importantes e pouco remunerados misteres que exerciam, a ignorância de muitas, no que devemos incluir a maior parte dos familiares, que eram numerosíssimos e tirados portanto de todas as classes, até do comércio a retalho e dos homens de ofício, a dependência destes, porque familiares se faziam para melhor escaparem às perseguições, tornando-se perseguidores, não falando nos maus instintos, no fanatismo, na negligência e nos ódios ou paixões particulares de cada uma, tudo isto desvirtuava os depoimentos em questão e despia-os de toda a seriedade e de toda a autoridade requeridas pela razão e pelo direito. De mais, quantas coisas assegurariam os vigilantes sem que as vissem distintamente, convertendo em certeza o que imaginavam ou conjecturavam, por defeito natural da vista ou cansaço de aplicá-la tão longo tempo ou por pouca luz ou por outras circunstâncias! Quantas irregularidades e fraudes nasceriam de estarem os vigias um à vista do outro, quando o não deviam estar e deviam ser inquiridos logo depois de se renderem e antes de se comunicarem! Quantas vezes só um vigiaria! Quantas se combinariam em prejuízo do réu, depondo identicamente do que presenciaram ou não presenciaram! Quantos actos, às vezes casuais, transformados em suspeitas de crime, como por exemplo, o parar o réu ao pé da porta, donde a primeira testemunha do primeiro jejum concluiu que estava escutando; quantos que não se viam, nem se podiam ver e que se afirmavam, como, por exemplo afirmou a segunda testemunha do mesmo jejum que não viu rezar Vila-Real, estando ele deitado na cama, e depois das ave-marias, à luz frouxa da candeia que imperfeitamente alumiava o cárcere! Nem paravam aqui os olhos perspicazes dos vigilantes; tentavam até penetrar no ânimo dos vigiados, depreendendo ou supondo depreender às vezes do modo por que estes diziam as suas orações se o faziam ou não devotamente!

 

VIII

 

Estavam pois, do modo que expendemos, provados quatro jejuns judaicos a Vila-Real, circunstância gravíssima e que havia de decidir fatalmente da sua sorte.

Acusado, encarcerado, separado do mundo por aquelas duras e tenebrosas paredes, ignorante de quem o acusava, do motivo e de até onde poderiam chegar as acusações, temendo-as de todos e de toda a parte, porque acusadores, culpas, testemunhas e portanto as suas consequências, tudo era mistério no tribunal da Inquisição para os presos, Vila-Real escreveu uma memória da sua vida e obras literárias, dos livros proibidos que trouxera de França e dos seus inimigos ou dos que poderiam sê-lo. Esta memória foi acabada a 15 de Janeiro de cinquenta e presente à Mesa a 24, e nela fundava o seu autor grande esperança, pelos serviços prestados à pátria, serviços que particulariza, posto não deixe de reconhecer, e em mais de um lugar que pouco ou nenhum valor tinham no tribunal da Fé. Nem era menor a que provinha das suspeições contra várias pessoas que julgava mais no caso de o acusarem, pois com elas imaginava, na sua vã credulidade, pô-las fora de combate ou ao menos atenuar de algum modo as culpas que lhe imputassem.

“Declaro, escreve ele nessa memória interessantíssima, desculpando-se e tratando do último ponto, declaro que o ofício de Cônsul, de que Sua Majestade me fez mercê foi causa de que tenho muitos inimigos em Ruão e Nantes, como sabe o Marquês de Nisa. E peço queira ver-se a carta que ele escreveu a S. M. em Abril de 1646 sobre este particular, a qual entendo está entre os meus papéis, ou ele dará a cópia e dirá juntamente o que passou em Nantes com os portugueses que ali estão; pois uns e outros dizem que são naturalizados franceses e que não reconhecem a El-Rei nosso senhor por seu rei. Por esta causa e outras palavras descompostas de que usavam disse eu em Ruão a Francisco Rodrigues Lobo e a outros que os havia de deitar por uma janela, se falassem diante de mim com aqueles termos e ruins modos. O mesmo disse a Diogo de Pereda, que se fez cabeça de bando contra mim para impedir o dito cargo. O Marquês diz dele a S. M. que o principal era um galego, como ele é, e o maior inimigo que Portugal tinha naquela cidade.

E, como o cargo de Cônsul seja ser protector do comércio e das pessoas que o exercitam, para saber o que fazem e se há coisa em que o serviço de S. M. ou sua real fazenda seja interessada, era força que eu falasse com todos e procurasse saber o que faziam; e, como não há outros portugueses mais que os que exercitam o comércio, em França, deles havia eu de procurar saber o que faziam, e a eles havia de assistir, pois eram os que me haviam de dar as utilidades de meu cargo.

O mesmo Marquês me ordenou por muitas vezes falasse com alguns que vinham de Castela para saber as novas que havia e o que faziam os fidalgos portugueses que lá estavam retirados, servindo eu como de uma espia de todos, para o serviço de S. M., pois não houve coisa de que não desse conta ao embaixador. E nesta parte tenho que representar a V. S.as sejam servidos reparar em que sou e fui o primeiro homem a quem S. M. deu ofício fora da pátria, a quem servi com alguma utilidade, e que fui o primeiro Cônsul que Portugal teve e que alcançou estimação, para a vir perder nela, quando esperava honras e pré mios.

O princípio e origem de toda minha ruína procede desde o ano de 1642, em que o Conde da Vidigueira teve sua primeira audiência em S. Germão, aonde o acompanhei. Porque, sendo costume dar El-Rei de jantar aos embaixadores naquela ocasião, estando para nos sentarmos a mesa, me disse Antonio Curado, criado do Conde, que eu iria jantar com ele a uma estalagem; a que lhe respondi, que eu havia jantado com os primeiros embaixadores, e que assim o havia de fazer com o Conde, por ser coisa ordinária e em que ele adquiria antes crédito, que perdia reputação. Ao mesmo tempo vem um mordomo d’El-Rei e amigo meu dizer-me que, se eu não tivera a mesa do Embaixador, lhe havia de fazer mercê ir jantar com ele. Tudo passou em presença do mesmo Conde.

E porque não pareça que isto era desvanecimento meu ou pouco respeito, é de advertir que em Franca costumam os senhores pôr à sua mesa pessoas de muito inferior qualidade, e mais se são homens de partes, para os entreterem e darem novas do que se passa, enquanto comem. O padre Macedo estará lembrado, que, indo nós a S. Germão ver tocar os enfermos a El-Rei Cristianíssimo, me levou seu estribeiro-mor e grande privado, e me disse chamasse meus camaradas para jantar com ele o que fizemos em companhia de um dos capitães da guarda e outros fidalgos. E tanto é isto coisa ordinária neles que estranham o costume espanhol e o reprovam de comerem sós ou com seus iguais.

Deste jantar infausto procedeu que todos os criados do Conde se declararam meus inimigos, fazendo liga entre eles para me arruinarem. A primeira injúria que se dá a um cristão novo é chamar-lhe judeu, e como esta em mim tinha pouco fundamento, disseram que eu era um traidor e que tinha inteligências com Castela, com outras coisas que por serem falsas fizeram pouca impressão no ânimo do Conde ou as dissimulou, pela grande necessidade que tinha de minha assistência e notícias.

Desta conspiração sabe António Moniz de Carvalho, pois também o quiseram descompor com o Conde.

Respondendo eu no princípio do ano de 1643 ao livro de Caramuel, tratei a resposta com mais aspereza do que eu mesmo conhecia era necessário, para mostrar que nem era traidor nem queria coisa alguma de Castela. Assim o disse eu ao padre frei Fernando de la Houe, da Ordem de S. Domingos, bispo eleito de Tânger; que naquele tempo estava em Paris, fazendo-lhe queixa do procedimento que comigo se tinha; ele deve estar em breve nesta cidade e dirá isto mesmo.

Resultou desta conjuração não falar eu com os criados do Conde em muitos dias, até que eles se foram desenganando e se fizeram amigos na aparência. O mesmo Conde me dizia se me não desse deles, e que, quando fosse falar-lhe, que era quase todos os dias, abrisse a porta do seu aposento, porque ele os conhecia muito bem.

E, posto que no aparente o Conde dava mostras de não sentir o haver-me eu posto à sua mesa, sabe António Moniz quanto ele o sentiu; mas, conhecendo depois era este o uso de França, me fez mercê dar a mesma honra infinitas vezes em diferentes jornadas que com ele fiz. Assim que esta causa servirá para seus criados, se algum jurou contra mim, porque nenhum pôde nunca sofrer a estimação que de mim faziam todos os senhores daquela Corte.

Porém ultimamente o Marquês de Nisa se declarou e o tenho por meu inimigo capital, porque dizendo-me um dia na sua galeria que eu dissesse ao doutor Pedro Fernandes Monteiro que o camareiro-mor dizia dele que era cristão novo, lhe respondi que não era aquilo coisa que eu fosse dizer a um homem como Pedro Fernandes Monteiro, e mais não sabendo eu a quem o camareiro-mor o havia dito, para me justificar; e que, se S. Ex.ª queria, eu o diria a seu sobrinho, o doutor Martins Monteiro; mas que lhe havia de dizer juntamente o ouvira a ele Marquês, o que ele não consentiu.

Notórias são nesta Corte as inimizades que há entre o Marquês de Nisa e o camareiro-mor; e, porque eu visitava algumas vezes ao dito camareiro-mor, me disse que eu estava mui valido de seu inimigo; a que eu respondi que não podia deixar de acompanhar a um fidalgo que me fazia tanta mercê, e que me levava a seu quarto todas as vezes que me encontrava na sala de palácio; mas que estas visitas não eram contra ele.

Encomendando-me o camareiro-mor lhe desse uma certidão dos lugares que aquele cargo tinha em França nas cerimonias públicas e particulares, lha passei do que constava do cerimonial daquele reino. E, dando eu disso conta ao Marquês de Niza para que dissesse ao mordomo-mor fizesse o mesmo do seu cargo, me respondeu que para que dera tal certidão nem me metia nisso. Eu lhe disse que não podia perder o respeito a um fidalgo como o camareiro-mor, e mais sendo certidão do que passava na verdade.

Sobretudo o que mais sentiu o Marquês de Nisa foi haver eu dado parte dos meus livros ao mesmo camareiro-mor, sendo que ele mos havia pedido por um escrito seu, e que eu lhos havia prometido já de França. Porém nesta parte tenho eu mais desgraça que culpa, porque, estando um dia com o camareiro-mor vendo os seus livros, me disse lhe havia de vender os que eu trouxera, a que eu respondi o não podia fazer porque os tinha prometido ao Marquês de Nisa, e lhe mostrei o mesmo escrito. Ele enfadado me disse que, se lhos não dava que não só não havia de ser meu amigo, mas havia de encontrar todas minhas pretensões. Vendo-me eu neste estado, fiz queixa a Francisco de Melo, na varanda do palácio, e ao licenciado João Baptista Caldeira, e que não sabia o que havia de fazer, porém confiado na amizade do Marquês de Nisa e nas obrigações que me tinha, quis contentar a ambos, e dei ao camareiro-mor cento e vinte livros, para dar os demais ao Marquês; mas ele se queixou grandemente e me disse lhos desse todos, que ele não queria nenhum.

Acrescentou seu ódio haver eu dado ao dito camareiro-mor um livro político de Marselaer que chamam Legatus, porque nele está um capítulo que condena em parte aos embaixadores excederem as ordens de seu rei sem lhe darem primeiro conta das causas que a isso os movem, e aguardarem a resposta (10).

 

Continua aqui                                              

 

 

NOTAS:

 

(1)  Arq. Nac. Chanc. do dito Rei, L.º 14, fls. 312

(2)  Não deixa de despertar interesse a nota escrita por Vila-Real acerca dalgumas das moradas que teve em França. Foram elas em 1639 e em parte de 1640 no Havre em casa de Neuville e de Languillete; no resto de 1640 em Paris na rua Grenier S. Lázaro, na pousada que tinha por insígnia a Parelha; em 1641 e 1642, na dita rua, em casa de um cirurgião chamado Baptista; de 1643 a 1646 na rua Michel Le Compte, na casa que tinha por insígnia a cidade de Marselha; parte de 1647 nas casas que foram do filho de António de Cáceres, na rua de S. Martinho; em 1648, na rua de Batini, em casa de um sujeito chamado Le Roy, que tinha por insígnia a cidade de Calais.

Nas pousadas em França, já então havia livros onde se punham os nomes dos hóspedes e o tempo que nelas ficavam.  

(3)  Bib. Nacional, MSS., F,4-5 (Copiador de cartas do Marquês de Nisa), fls. 46. A carta do lugar de Cônsul, embora anterior, é outro atestado dos seus serviços, e por esse motivo aqui a trasladamos:

D. João etc. Faço saber aos que esta minha carta virem que, tendo respeito aos serviços que o capitão Manuel Fernandes Vila-Real cavaleiro fidalgo da minha casa, natural de Lisboa, ora residente na Corte de Paris, fez à sua custa na cidade de Tânger, por espaço de dois anos e meio, achando-se nas ocasiões de guerra que naquele tempo se ofereceram na mesma praça, em particular ao zelo e ânimo de leal português com que no reino de França tem assistido e ajudado os embaixadores desta coroa que lá passaram desde o ano de mil seiscentos quarenta e um, até ao presente, dando-lhes leis e notícia das coisas do mesmo reino para melhor direcção dos negócios que levavam a cargo, e escrevendo juntamente o livro que em seu nome anda impresso contra Caramuel em defensão deste reino e do direito que a ele tenho, hei por bem de lhe fazer mercê do ofício de Cônsul da nação portuguesa, para que o exercite na mesma Corte e Reino de França, assim e da maneira que até aqui o fizeram as pessoas que nele serviram este ofício; e peça ao muito alto, muito excelente, muito poderoso e cristianíssimo príncipe El-Rei de França meu irmão e primo, que, sendo-lhe esta carta apresentada pelo dito Manuel Fernandes Vila-Real nela contido, e passada por minha Chancelaria, lhe mande dar os despachos necessários para continuar com o exercício de que assim o encarrego, e para que o hajam em todos seus reinos por Cônsul da nação portuguesa, assim como ele de direito o pode e deve ser, e para que haja o ordenado, proes e precalços que lhe direitamente pertencerem, e goze dos privilégios, preeminências e franquezas de que, por bem deste ofício gozaram e tiveram as pessoas que o continuaram; e o dito Manuel Fernandes Vila-Rea1 jurará aos Santos Evangelhos, ante os ministros que naquele reino tiver, que bem e verdadeiramente sirva, guardando em tudo o serviço do senhor Rei meu irmão e primo e meu e às partes seu direito. E por firmeza disso lhe mandei passar esta carta por mim assinada e selada com o selo pendente. Dada na cidade de Lisboa aos quatorze de Fevereiro. Balthazar Gomes a fez. Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e seiscentos e quarenta e quatro. Balthazar Rodrigues de Abreu a fiz escrever. El-Rey.

Arch Nac., Chanc. de D. João IV, Liv. 14,  fol. 235 v.

(4)  As proposições censuradas e mandadas riscar estavam nas pags. 78, 103, 104, 105, 106, 138, 139, 140, 217 e 237, segundo o processo.

(5)  Vila-Real trouxe destes autores os seguintes livros: de Machiavelo O príncipe, em francês e as obras completas em italiano; de Bodin -  De reppublica - em francês; de Carion - Chronique et histoire universelle de Drassu premièrement parJean Carion, puis augmentée par Philippe Melanchton e - Tertia pars chronici Carionis à Carlo Magno, ubi Philippus Melanchton desüt usque ad Fridericum Secundum.

(6)  Referência à Política Angélica do mesmo autor.

(7)  António Henriques Gomes, cristão novo, nasceu em Portugal nos fins do século XVI ou começo do seguinte; foi educado em Espanha, e passou grande parte da vida em França, onde o Rei Luis XIII o nomeou cavaleiro da Ordem de S. Miguel e o fez seu conselheiro e mordomo ordinário (Bibliotheca Lusitana). Escreveu bastante; mas tudo o que se conhece dele é na língua espanhola, porque a única das suas obras que Barbosa Machado apresenta como portuguesa, na mesma parece escrita, conforme veremos. Viveu, pelo menos muito tempo, em Ruão e aí conheceu Vila-Real. D. Francisco Manuel de Melo censura nos Apólogos Dialogais o gosto e o estilo deste autor.

As suas obras em verso e prosa encontram-se na Bibliotheca Lusitana; entre elas figuram muitas comédias. O Triumpho lusitano, um dos escritos ali mencionados, a crermos o Diccionario Bibliographico de Inocêncio Francisco da Silva, é em espanhol, e não em português e tem o seguinte título: “Triumpho lusitano, recibimiento que mandó hazer Su Magestad el Christianissimo Rei de Francia Luis XIII a los Embaxadores extraordinários que Su Magestad el Serenissimo Rei D. Juan el IV de Portugal le enbió, año de 1641.” É um folheto de 30 páginas de 4.º, sem folha de rosto e sem lugar, data de impressão e autor. Inocêncio conhecia apenas um exemplar em poder de António Joaquim Moreira. Pela nossa parte não sabemos de nenhum. A asserção deste bibliógrafo julgamo-la plausível, por ter sido Henriques Gomes educado em Espanha, por compor em espanhol todas as outras suas obras literárias, e por muito mais o dever fazer nesta de carácter histórico e de propaganda, e que portanto era da maior conveniência divulgar na Europa, mediante aquela língua, então nela tão conhecida, motivo que só por si levou tantos portugueses proficientes na sua a empregarem-na, com manifesta vantagem da causa nacional, na mesma época. Por idêntica razão, nos temos servido moderadamente do francês, posto menos, pela maior dificuldade de escrevê-lo.

Outra das suas obras é a Política Angélica; e a esta se refere o Marquês de Nisa. Imprimia-se este livro em Ruão, em casa de Lourenço Maury; estava-se no ano de 1647. Vila-Real, conhecido e amigo do autor, como sabemos, levado da curiosidade própria dos bibliógrafos ou de outro qualquer motivo, escreveu a António Rodrigues de Morais, residente na mesma cidade, para lhe obter do impressor a porção já estampada, e lendo-a e encontrando nela algumas coisas escandalosas contra a Inquisição de Portugal, representou-o ao Marquês e também a conveniência de não se publicar a obra. Persuadiu-se o Marquês das suas razões e alcançou do Rei de França a carta a que se alude no seu depoimento. Esta carta era datada de  8 de Abril de 1647 e existe por cópia na Bib. Nacional (Mello, Mss. N.º 308, fol. 41 v.) Apesar disto, conclui-se do presente processo que o Marquês a não aproveitou e só mandou dizer por Vila-Real a Henriques Gomes que era de parecer não fosse por diante com a impressão; no que ele concordou. Mas, se então não foi por diante, completou-a pouco depois: assim o faz suspeitar o Marquês, quando diz que se não continuou enquanto residiu em França como Embaixador; assim o assevera frei António de Serpa, conforme veremos, pois testemunha que se acabou de imprimir e que frei Francisco de Santo Agostinho de Macedo a leu completa, e assim o confirma Barbosa Machado incluindo esta obra entre as do autor que foram dadas à luz. É verdade que Vila-Real e frei Francisco se referem apenas à obra incompleta, e nada dizem quanto ao seu acabamento; mas deve dar-se-lhes inteiro crédito? Não seriam eles interessados em calar esta circunstância?

(8)  Planta de Lisboa, de João Nunes Tinoco. 1650.

(9)  Esta descrição é traçada à vista do Ms.  Livro das plantas e monteas de todas as fábricas das Inquisições d’este reino e Índia, de Matheus do Couto, feito em 1634, que está no Arquivo Nacional, e Regimento do Santo Ofício. Para o Paço dos Estaus e sua relação com o edifício Inquisitorial pode consultar-se a preciosa obra Lisboa antiga do sr. visconde de Castilho (Júlio), onde há sempre muito que aprender.

(10) O Marquês retirara-se de França sem licença.