2-9-2007
Extracto de um relatório do chefe do concelho de D. Pedro 5.º, o tenente Zacharias da Silva Cruz, sobre a sua viagem a S. Salvador do Congo
Dia 7 de outubro de 1858
Saí do Bembe à 9 horas e 40 minutos da manhã, acompanhado dos reverendos Padres José Maria de Moraes Gavião e José Agostinho Ferreira, e os empregados da casa do sr. Flores, Luis Leivas e António Gomes Pinheiro, este para servir de intérprete. Também levámos 30 praças de tropa, com a charanga.
Subimos o morro em que jazem as minas de cobre, e às 10 horas e 20 minutos passámos a vista do povo de Bonde, que fica a meia milha à direita do caminho, dentro de uma pequena mata. É soba da povoação D. Álvaro.
Meio dia e 45 minutos: chegámos a Pamba, pequeno povo de 15 casas; o soba chama-se D. Manoel. A entrada é descoberta, mas dos lados tem matas, pouco cerradas. Sobre a direita, a uma milha de distância, está a povoação de Quimacanza.
Uma hora e 55 minutos: - passámos o rio Callucalo, de 7 metros de largo, e meio metro de fundo. Deve ser de difícil passagem em ocasiões de cheia, estando muito obstruído com pedras, troncos e arvoredo de pé. No lugar em que o atravessámos, corre ao norte. Logo depois encontrámos a senzala Callo, do soba D. António, com 15 casas. Este soba recebeu-nos bem, e deu-nos auxílio de gente para ir buscar as cargas que ficavam atrasados. Aqui jantámos e descansámos.
Levantámos às 3 horas : 55 minutos depois estávamos em Vungo, povoação também de 15 a 20 fogos: às 4 horas e 5 minutos em Detari, de 30 fogos, soba D. Pedro: às 4 e meia em Quicamba, de 200 fogos, soba D. Antonio: às 4 e 55 minutos em Cacuaco, de 250 a 300 fogos, soba D. João. Estas três últimas povoações ficam mui próximas umas das outras, dentro de uma grande e espessa mata, na qual há ainda outras senzalas. Às 5 horas e 20 minutos chegámos a Bengo, e às 5 e meia a Mabanga, pequenos povos, do segundo dos quais é soba D. António. Entre estas senzalas fica um riacho, que levava então pouca água.
Às 6 e meia entrámos na povoação Quimacuenda, de 200 fogos, soba D. Henrique, o qual foi há pouco baptizado no Bembe, sendo padrinho o nosso companheiro de viagem, Luis Leivas. Este soba prestou os melhores serviços, quando os caminhos estiveram infestados de salteadores. Resolvemos pernoitar aqui, em razão de ficarem muito atrasadas algumas cargas, para o que tem concorrido o ardente sol do dia. A marcha de hoje foi de 7 horas e 45 minutos.
8 de outubro
Soubemos que alguns carregadores haviam tomado diverso caminho, e porque também demos com a falta de algumas coisas indispensáveis, tomámos o partido de as mandar buscar ao Bembe, passando ainda este dia em Quimacuenda.
O Padre José Agostinho Ferreira baptizou 37 pessoas, assistindo o soba e mais povo, com muita reverência. Aquele estava vestido com a sua melhor roupa, e tinha pendente do pescoço um crucifixo. O Padre Gavião estava com febre, o que o impossibilitou de funcionar.
O soba presenteou-nos com um porco e dois cabritos, ao que lhe retribuímos com 3 peças de fazenda de lei, 6 garrafas de aguardente, e duas malungas de metal.
De noite chegou o portador dos objectos mandados buscar ao Bembe. Por ele soubemos que as cargas já iam adiante por outro caminho.
9 de outubro
Seguimos às 7 horas e 15 minutos da manhã e às 8 e dez minutos estávamos em outra povoação do mesmo nome de Quimacuenda, sendo esta denominada a Velha, para se diferenciar da precedente, a Nova, de mais recente fundação. O soba vhama-se D. Garcia: o povo é de umas 100 a 150 casas, com a entrada franca, mas tendo matas pelos lados. Não pudemos anuir ao pedido que nos fizeram para se baptizar alguma gente, e prometemos de os satisfazer na volta.
Às 9 horas chegámos a Loanda, povoação de 90 fogos, soba D. João: dez minutos depois encontrámos o pequeno povo de Cacuaqúa, de 50 casas. Junto dele passa o riacho Bambe, de pouca água e todo obstruído com pedras. Ambas estas povoações são cercadas de matas.
Às 10 horas e 55 minutos chegámos a Loquingo, povo de 25 a 3º casas, soba D. Daniel: às 11 e 5 minutos a Quilobanga, soba D. Miguel: só tem 6 cubatas no caminho, e o resto numa mata que fica à esquerda deste. Saiu o povo a ver-nos, vindo alguns rapazes vestidos com saiotes feitos de liconde, e pintados de várias cores, que faziam bonito efeito.
Ao meio dia e meia hora estávamos junto de um grande rio, com 40 metros de largura, e muito fundo, dizendo os indígenas que é o Ambrizete. Nele pode navegar qualquer embarcação ordinária: mas tem o curso todo em voltas. As suas margens são cobertas de arvoredo. O Padre Ferreira disse que lhe parecia ser mais largo do que o rio Douro, em Portugal. Num alto aquém do dito rio está a pequena povoação de Quinpamba, soba D. Francisco. Gastámos em o atravessar até às 5 horas e 25 minutos, numa canoa velha, e sem varas para se guiar, ao que demos remédio como nos foi possível.
Aqui recebemos a carta do marquês de Catende, em que se mostrava sabedor da nossa ida, mandando os portadores para nos acompanharem.
Vimos dois crocodilos no rio.
Seguimos às 5 horas e 25 minutos, como fica dito, e às 6 e 25 minutos chegámos a Quitare, aonde já encontrámos as nossas cargas. É um povo de 80 a 100 fogos. O soba faleceu e está regendo um macota, enquanto se não procede à eleição do novo soba. Os cadáveres daquele, de uma sua mulher e de um seu filho, estavam na banza: o do primeiro no chão, já mirrado, os outros dois em caixões feitos de bordão, e colocados sobre tarimbas, com fogo por baixo, para também secarem. Todos três eram amortalhados com grande quantidade de fazenda de lei.
Aqui pernoitámos, tendo feito uma marcha total de 6 horas e 15 minutos. O Padre Gavião continua com febre.
Dia 10 de outubro
Ao amanhecer vieram os macotas do soba D. Daniel, do povo de Mabamba, cumprimentar-nos, trazendo um cabrito, que retribui com 600 corais, e uma garrafa de aguardente. Esta povoação fica fora do caminho.
Às 6 horas e 50 minutos seguimos viagem, gratificando o patrão da senzala em que pernoitámos com 200 corais.
Às 7 horas e 25 minutos passámos em Quina, povoação de 60 a 80 casas, situada num alto, e tendo bastantes plantações próximas. O soba chama-se D. António. O país é de morros destacados e assaz elevados: o caminho péssimo.
Chegámos a Punço e Quimuanda às 8 horas. São duas povoações juntas, do soba D. André, com mais de 200 fogos. Perto delas corre um riacho.
Às 9 horas e 50 minutos estávamos com o rio Lunda, de 15 metros de largo, e um de fundo, naquela ocasião em que levava pouca água. Dizem que tem a sua nascente no sertão de Zombe, e que vai desaguar no rio (M)Pozo. É bem arborizado pelas margens, mas o leito acha-se obstruído com pedras e troncos. Ali passámos sobre um tronco de árvore, que está deitado de uma à outra margem, em guisa de ponte.
Do outro lado está a povoação de Loanza, com umas 25 cubatas, da qual é soba D. André. Nela parámos para almoçar, esperando também os carregadores, que vinham atrasados. Aqui recebi outra carta do Marquês de Catende, no mesmo sentido da precedente, trazendo-a cinco filhos daquele Potentado, que ficaram para nos servirem de guias.
À uma hora da tarde prosseguimos a nossa viagem, chegando, 20 minutos depois, a Sanzambo, povo de 50 a 60 fogos, do soba D. Miguel. Era ali que estava residindo D. André, secretário do Congo, que costuma ir nas embaixadas a Luanda. Veio cumprimentar-nos.
Pelas 2 horas passámos as matas de Mossangala. Dentro delas, aos lados do caminho, há várias povoações sujeitas ao Duque de Bamba.
Às 2 horas e 45 minutos chegámos a uma grande lagoa, assaz funda em partes. Por onde a atravessámos havia muito lodo, no qual se enterrava a gente. Andava por ali pastando gado vacum do Marquês de Catende.
Às 3 horas e 10 minutos chegámos a Quinisalla, residência do dito Marquês. Terá umas 200 casas. Veio ele logo ter connosco, e destinou uma cubata para nosso agasalho, retirando-se em seguida. Depois mandou-nos um cabrito.
Chegou também D. Henrique, irmão do Catende, da sua povoação. Vinha em tipóia, por estar doente; por isso fomos vê-lo à banza. É rapaz de 20 anos, bem apessoado: trajava farda com alamares de trancelim encarnado, e botões amarelos, dragonas de prata de oficial superior, telim e espada de general, calças de cotim de mescla, botins de marroquim encarnado, e gorro de veludo da mesma cor. Do pescoço trazia pendente uma fita de seda azul bordada a ouro, com duas cruzes de prata, sendo uma cravejada de pedras brancas: disse que esta lhe tinha vindo de Portugal. Depois dos recíprocos cumprimentos, nós voltámos para a nossa cubata, aonde passámos a noite.
11 de Outubro
Às 7 horas e meia fomos visitados pelo Marquês de Catende, sua mãe e irmã. Aquele terá 30 anos, é de altura regular e grosso, e fulo de cor. Vinha vestido com panos de lenços, colete de veludo encarnado, e manto da mesma fazenda, com galão de ouro; na cabeça trazia gorro também de veludo. A mãe mostra ter 60 anos, é alta e magra, e chama-se D. Isabel. Vinha de vestidos à europeia, bem como a filha, que poderá ter 30 anos.
Pouco tempo depois chegou uma carta de S. Salvador do Congo, escrita em nome da Rainha Viúva, do Duque de Bamba e do Príncipe D. Álvaro Dongo (um dos pretendentes à sucessão do trono), pedindo pressa na ida dos Padres, para a encomendação do cadáver do Rei. Despedi os portadores, dando-lhes 2 peças de lenços e uma garrafa de aguardente.
Soubemos que os Selos Reais, e outros objectos do falecido Rei D. Henrique, param em poder do Marquês de Catende. Entre aquela gente liga-se bastante importância à posse de tais objectos, sendo por isso que este último pretendente à coroa os conserva.
Tendo-se retirado o Catende, fomos nós percorrer a sua senzala. Em uma cubata, perto da nossa, estavam dois cadáveres, amortalhados como os que vimos em Quitare, e já mirrados, prontos a serem sepultados. Em outra cubata, junto da banza do Catende, estavam outros dois, sendo o de D. Manuel, irmão do falecido Rei do Congo, e o de um seu filho, ambos envolvidos em grande quantidade de fazenda. O primeiro achava-se colocado sobre duas cadeiras, e resguardado à vista pelo manto que o Catende trazia quando nos visitou. O segundo estava sobre uns paus. O Marquês mostrou desejo de que nós assistíssemos ao enterro daqueles corpos; mas, como era necessário convocar toda a parentela, o que levaria muito tempo, não anuímos.
Como já dissemos, quando morre qualquer pessoa é logo envolvida em peças de fazenda, e assim posto o cadáver numa espécie de tarimba, com fogo por baixo, que se conserva por largo tempo, até o corpo estar seco. Só passado um ano, ou mais, é que o dão à sepultura.
Ao meio dia e 45 minutos seguimos viagem, deixando ao Catende 4 maços de contas.
À uma hora e 15 minutos passámos em Riba, pequeno povo de 20 casas, situado num mato, do qual é soba D. António. Na baixa que se lhe segue corre o riacho Molequelo, assaz largo, mas pouco fundo, e todo obstruído com paus e pedras. Na margem oposta está o povo de Cazonga, com 20 a 30 casas, de que é soba D. Afonso.
À uma hora e 40 minutos chegámos a Boiare, povo de 20 cubatas, situado numa baixa, de que é soba D. Manuel. Logo se lhe segue um grande morro, que subimos, indo passar, às 3 horas e um quarto, o rio Enzoco, com pouca água, e obstruído. Às 4 horas chegámos a Ebuque, povoação de 250 fogos, do soba D. Garcia, aonde pernoitámos. Estava o povo reunido e armado, para celebrar uns funerais. Correu todo a ver-nos, manifestando admiração.
Fizemos hoje 3 horas e um quarto de marcha efectiva. O Padre Gavião vai ainda com febres.
Dia 12 de outubro
Pela manhã fomos à banza. Entrámos na casa em que se achavam os corpos dos falecidos, que eram dois: o de D. Cristóvão, que tinha sido soba, e o de um filho deste, D. Pedro, ambos amortalhados ao modo ordinário, mas o do primeiro em fazenda achitada, e tendo sapatos encarnados, à moda chinesa, com enfeites de fitas e taxas amarelas.
Reconhecemos que havia desejo de que os Padres encomendassem os cadáveres, e tendo nós dito que não havia dificuldade nisso, nos responderam, com certa hesitação, que não tinham esmola a dar. Dissemos que tal se não exigia, e então se mostraram satisfeitíssimos. Funcionou José Agostinho e assistiu o povo com muito recolhimento.
Pelas 7 horas e meia continuámos a viagem. Às 10 horas passámos em Quipango, de umas 40 casas, soba D. André Rafael. Fica perto desta povoação o rio Coco, estreito, mas com bastante água, e também obstruído como os outros por onde temos passado.
Às 10 e 40 minutos chegámos a Mállo e Quincollo, duas povoações juntas,de uns 80 fogos, sendo nesta soba D. António, e naquela governando um Macota, cujo nome não soubemos.
Ao meio dia estávamos com o rio Luége do Congo, de 8 a 10 metros de lado, e com metro e meio de fundo. No tempo das cheias costuma levar muita água. Pode nele haver navegação, por estar desembaraçado. As suas margens são cobertas de arvoredo, e mato que exalava o mais agradável cheiro. Rodeia este rio o morro em que está a cidade de S. Salvador, pelos lados de leste e sul, a umas três milhas de distância.
À uma hora da tarde chegámos à entrada de S. Salvador, aonde parámos, estando aí uns 20 pretos armados, que nos esperavam de ordem do Duque de Bamba, D. Álvaro. Pediram licença para fazer fogo de alegria, e assim foram disparando as espingardas. Em breve espaço estávamos cercados por grande multidão de gente. Os mais velhos pediam a bênção aos Padres, beijando o chão, quando a recebiam. Foram-nos guiando para o interior da povoação, e a uns 300 passos nos mostraram um corpulento embondeiro, no qual costumam gravar seus nomes as pessoas que vão ao Congo. Nós fizemos outro tanto mais tarde. Aqui vieram mais uns 50 a 60 pretos armados, comandados por outro de bastão, os quais formavam em fileira, descansando as armas. Era gente de D. Álvaro Dongo, pretendente à coroa. Mostrava-se taciturna e descontente, creio que por nos supor pouco afeiçoados ao dito pretendente. Não nos preocupámos disto, e seguimos até às cubatas que nos estavam destinadas, as quais eram três, velhas e arruinadas como todas as da cidade. Disseram-nos que tinham sido feitas pelo cónego Necessidades.
Aqui parámos, tendo feito hoje 5 horas de marcha efectiva, e toda a viagem, desde o Bembe, em 27 horas e um quarto, distribuídas por cinco dias e meio.
Durante o resto do dia recebemos várias visitas. Perto da noite chegaram as nossas cargas, e o resto da comitiva.
Dia 13 de outubro
Pernoitámos sem novidade. Veio muita gente ver-nos. O respeito tributado aos Padres é o maior possível; todos lhes pediam a bênção, e muitos faziam o sinal da cruz, beijando o chão.
Soubemos que a Rainha viúva, D. Ana, estava noutro povo a mais de um dia de viagem, assistindo ao enterro de sua mãe, mas que a tinham já mandado chamar.
Fomos ver a povoação. Está situada na planura de um morro, que terá umas seis milhas de circunferência. Só à entrada é que tem uma pequena elevação, própria para se assentar ali um forte, que ficaria dominando toda a cidade. Esta compõe-se de 350 a 400 casas, todas miseráveis, sem ordem, e em grandes distâncias umas das outras, com capim mui crescido pelo meio, e bananeiras, palmeiras e embondeiros, de sorte que nada se vê, de um para outro lado. Junto de cada casa há pequenos quintais, onde cultivam hortaliça, mas com mui pouco cuidado, atendo-se só à rega da chuva.
Voltando a casa, foi o tenente Pinheiro dar parte da nossa chegada ao Duque de Bamba, irmão do Catende, por ser quem estava governando. Esta formalidade era indispensável. Respondeu que se achava regendo, na ausência da Rainha, e que esta não poderia ter demora em chegar. Que havia dois partidos sobre a eleição do sucessor à coroa, sendo um pelo Marquês de Catende, e outro a favor de D. Álvaro Dongo, comprado pelas dádivas deste, pois que ele não tinha direito à cadeira (trono).
Pouco depois veio uma carta do dito D. Álvaro aos reverendos Padres, pedindo licença para vir visitá-los, e manifestando o desejo de que fossem baptizados alguns de seus filhos. Respondeu-se favoravelmente a tudo.
Também escreveram os Príncipes D. Garcia e D. Álvaro de Água Rosada, a cumprimentar-nos, enviando ao mesmo tempo um cabrito. Correspondeu-se-lhes com uma garrafa de aguardente e 100 corais.
Saímos depois para ir à banza, a qual é no interior da povoação, próximo da Sé. Fizeram-nos esperar um pouco e, tendo entrado, achámos o Duque de Bamba, D. Álvaro, irmão do Catende, que é homem pela estatura deste, com a barba já um pouco encanecida. Vestia panos comuns, camisa, e colete de veludo roxo.
Dentro estava o corpo do falecido Rei D. Henrique, sobre uma tarimba alta coberta de panos, e na parte superior com o manto real, que é de gorgorão lavrado, cor de laranja e forrado de seda branca, tendo o cabeção, desta mesma seda, semeado de estrelas de prata, e com alamares deste metal dourado. Aos pés estava um crucifixo de marfim, do tamanho de um palmo. Não pudemos ver como o corpo estava amortalhado.
Junto à banza, acha-se uma casa arruinada, feita de tábuas, aonde guardam as antigas Imagens, que restam. São estas as seguintes:
S. Salvador, de 6 palmos de altura; Santo António e São Francisco, ambos de 3 e meio palmos; um crucifixo, de 12 palmos. Também ali está um sino, com 3 palmos de diâmetro na boca, e uma grande umbela de lã e algodão, de cor encarnada, forrada de paninho, sendo o pau dourado nas extremidades. Estes objectos acham-se em bom estado. E, finalmente, uma porção de instrumentos bélicos do país, alguns de marfim, com duas caixas de guerra das nossas.
Disseram-nos que o Duque de Bamba e seu irmão, o Catende, tem muitas coisas escondidas, que só aparecerão depois da eleição do novo Rei, vingando esta no dito Catende.
Saímos da banza, deixando 4 garrafas de aguardente.
Por alguns pretos de negócio, soubemos que costumam ir trocar as suas mercadorias, por fazenda, ao Mangue Grande e a Boma, no Zaire, para onde gastam 4 dias, tendo de atravessar no terceiro o rio Coango, que é um braço daquele. Também nos disseram que o rio Luége, desta localidade, vai desaguar no Lunda, e este no [M]Pozo, o qual desemboca no Zaire. Que os brancos de Boma costumam mandar comprar mantimento a S. Salvador, e que, em Agosto último, viera do Zaire um inglês, que se demorou três dias, fazendo observações, recolhendo depois ao Bembe, ou ao Ambriz.
Direi agora o estado em que se acham as antigas Igrejas, que ali construímos:
Igreja de S. Miguel – Existe o grande arco e as paredes da capela-mor, estas mais arruinadas, mas aquele bem conservado. Este templo era maior do que o de S. João, em Luanda, todo de pedra e cal, e coberto de telha. Ainda existe o altar-mor, de pedra. Sob o pavimento, há muitas sepulturas, mas cobertas com as ruínas das paredes e do telhado.
Igreja da Sé – Ficava-lhe à esquerda o hospício de Santo António, com o qual era ligada. Ainda se vê dois grandes torreões e um grosso muro, ao meio do qual estão paredes e arcos, em sacada, que indicam ter sido ali o vestíbulo do edifício. Os arcos conservam-se em bom estado. Os pretos disseram que era a entrada para o palácio dos bispos; e que também tinha residido nele um dos seus reis. Toda a frente das ruínas mede 250 metros. Da igreja, estão de pé as paredes da capela-mor, com o seu arco, este em perfeita conservação, e as de duas sacristias laterais, com seus altares de pedra, como o altar-mor. Também existem as escadas do corpo da igreja para a capela-mor. Nestas está a sepultura de um Padre, segundo dizem os pretos. Tem letras gravadas na pedra, mas gastas e ininteligíveis. O adro do edifício era imenso: acompanhava-o em todo o comprimento, e estendia-se uns 50 passos para fora. Também está cheio de sepulturas, cobertas com as ruínas. Tudo era de pedra e cal.
Seria bem possível arranjar uma igreja da capela-mor. A dificuldade maior consistiria na condução das madeiras, que ficam longe.
Convento de Santo António – Somente restam os alicerces. Devia de ser grande. A cerca conhece-se pelo alinhado das palmeiras e bananeiras, que ainda existem, principalmente as primeiras.
O mesmo tenho a dizer dos templos de Nossa Senhora da Conceição, da Bela-Cruz, da Misericórdia, de Nossa Senhora do Rosário, de S. Tiago, S. João, S. José, e do Espírito Santo. Apenas há deles as ruínas no chão, e um ou outro bocado de parede erguida! Todos eram também de pedra e cal.
Passando pela povoação, vimos que todas as casas têm quintais, fechado com hastes de incendeira, maiores ou menores conforme o capricho dos donos, mas deixando apenas passagem entre uns e outros, e com tais voltas, que é difícil acertar com o caminho em semelhante labirinto. Nos primeiros dias era-nos preciso tomar um guia.
O solo, apesar de elevado, mostra ser da melhor qualidade, sendo a terra preta e fofa. Por muito sol que faça, sempre o chão se encontra húmido, e por isso cheio de capim, mas não de plantações úteis, dizendo os pretos que emigram às vezes por causa da fome!
Não há pântanos, todas as águas da chuva correm logo ao rio.
Enquanto nos demorámos ali, sempre reinou o cacimbo abundantíssimo, não se dissipando senão depois das 9 da manhã.
Junto ao rio há várias povoações, com seus sobas ou fidalgos. Uma delas é denominada Banza a Puto o que significa povoação do Rei de Portugal.
Entre os corpulentos embondeiros, que por ali abundam, medi um de 18 braças de circunferência, no pé.
Os Padres baptizaram alguma gente.
O Duque de Bamba e D. Afonso Mani-lembo mandaram-nos dois porcos e um cabrito. Retribui-lhes com 4 garrafas de aguardente.
Além das visitas, que sempre estávamos a ter, nada mais houve neste dia.
Dia 14 de outubro
Veio visitar-nos o Duque de Bamba, pelas 9 horas da manhã. Chegou numa cadeirinha muito velha, e com pequeno séquito. Queria dar-nos parte de que a Rainha vinha em breve.
Perguntei-lhe se havia papeis antigos guardados em alguma parte. Disse-me que sim, entre outros os livros de baptismos e óbitos, e que tudo parava em poder dos secretários.
Nesta ocasião vimos um preto, de nome Pedro Luis, que dirigia o trabalho de limpeza do terreno ao pé da nossa morada, feito por algumas pretas. Disse-nos o dito Pedro Luis, que eram todos escravos da Igreja, sendo ele o principal (Nlembo), por nomeação de um Padre Frei Bernardo. Foi buscar esta nomeação, da qual tirei cópia. Vestia um velho pano encarnado, todo semeado de cruzes. Os antigos escravos das igrejas têm morrido quase todos: os que hoje se chamam assim, são descendentes daqueles: vivem nos arimos que foram dos frades, em número de mais de 800; mas fazem o que lhes parece, havendo deles uns 300 armados, a soldo do Príncipe Dongo, pretendente à sucessão do reino.
Pelas 10 horas chegou uma carta deste Príncipe, a anunciar-nos a sua visita. Estavam os Padres a baptizar, junto do grande embondeiro de que já falei, quando veio o Dongo, precedido de dois clarins, o som dos quais, junto à algazarra do povo, se tornavam verdadeiramente insuportáveis. Vinha numa tipóia de rede, coberta com um velho capote de pano encarnado, e acompanhado por uns 80 pretos armados, que saltavam e gritavam, atirando com as armas ao ar. A erupção de tal comitiva no lugar em que estávamos afugentou a gente que recebia o baptismo, ou assistia a este acto. O Dongo apeou-se e veio assentar-se numa cadeira, que trazia, junto do altar. Sobre a minha observação, mandou retirar o seu acompanhamento, e ele mesmo foi esperar à porta da nossa residência.
Logo que se acabou o baptismo, fomos para casa para receber o Dongo. É homem de estatura regular, de 20 a 25 anos, com o olhar mui vivo, e tendo os dois dentes superiores de diante limados a ficarem pontiagudos, o que lhe dá um aspecto pouco agradável. Trajava sobrecasaca de uniforme do extinto batalhão de linha de Luanda, e sapatos de veludilho verde. Traziam-lhe, como já disse, uma cadeira para se assentar, e um tapete para pôr os pés. Tudo isto era muito usado.
Ofereceu uma preta aos Padres que estes aceitaram, dizendo-lhe que a mandariam educar. Deu-se-lhe 2 garrafas de aguardente, que fez distribuir pela sua gente, sem beber ele próprio. Pouco depois se retirou.
Durante o dia nada mais houve. Pelas 2 horas da noite fomos assaltados de inumerável quantidade de grandes formigas, que nos obrigaram a largar as camas e a fugir para a rua, tendo de mudar a roupa, depois de as havermos afugentado.
Dia 15 de outubro
Às 11 horas fomos pagar a visita a D. Álvaro Dongo, mandando-o prevenir primeiro. Estava ele no seu quintal, assentado num banco coberto com o velho tapete de que já falámos, vestido de panos ordinários e descalço, rodeado de gente armada, assentada no chão. Feitos os cumprimentos, perguntou-nos como nos havíamos dado com os povos do caminho, e com o Marquês de Catende, ao que lhe respondemos que perfeitamente. Acrescentou que bem sabia que nós éramos mais do partido daquele seu competidor na sucessão do reino, e que por isso ali íamos, mas que esta sucessão só a ele pertencia, e contava com os votos dos grandes do estado e de todo o povo.
A isto lhe observei, que as ordens do Rei de Portugal eram para se respeitarem os usos do Congo, quando à eleição do novo rei, e que uma vez que o eleiro guardasse a obediência que devia a Sua Majestade, como os seus antecessores desde muito tempo, pouco importava a pessoa. Que só ali tínhamos ido por causa da encomendação do cadáver do Rei D. Henrique, e que se o motivo fosse o que ele Dongo tão mal supunha, bem sabia que podíamos levar força bastante, e não apenas uma pequena escolta de segurança. Pouco depois nos retirámos.
Era dia de Cando (feira), que se faz de 4 em 4 dias, no chão que fica por detrás da igreja de S. Miguel. Não é permitido entrar na feira com facas ou qualquer outra arma, e por isso a carne que ali se vende já vai partida. Pouca gente estava quando chegámos: as mulheres quiseram fugir logo que nos viram, mas conseguimos aquietá-las. Os géneros que estavam à venda eram: carnes de porco, cabrito, e caça, ratos assados, peixe seco do rio, mandioca, fuba, feijão e milho, bananas, couve e ervas, tabaco, pólvora e fazendas. Por tudo pediam o dobro dos preços correspondentes do Bembe. É aquela a melhor quitanda da localidade.
Recolhemo-nos a casa, e os Padres tornaram a sair para baptizar, o que fizeram a 120 pessoas, pela maior parte, crianças.
Às 4 da tarde recebi uma carta do Catende, pedindo-me algum coral, que era para pagar à gente da comitiva com que queria apresentar-se. Mandei-lhe 4 maços.
16 de outubro
Pela manhã saí a passear na povoação, na qual me perdi, sendo necessário que me ensinassem o caminho para o rio, aonde queria ir. Não é deste que tiram para consumo, e sim das doze fontes, que saem na falda do morro, em diferentes lugares. A água corre nelas em pouca abundância, mas boa e cristalina.
Tendo voltado a casa, veio o duque de Bamba, D. Álvaro, visitar-me. Entre outras coisas, disse que era costume, nos interregnos, o mordomo-mor, que é hoje o marquês de Vunde, D. Francisco, guardar as jóias reais – como coroa, caginga (barrete) (1), selos, cadeira etc., mas que, por morte do rei D. Henrique II, ele duque e o marquês de Catende, ficaram com a maior parte daqueles objectos, por vontade do falecido, que os reconhecera como seus legítimos herdeiros, e lhes recomendara que conservassem as coisas do reino como ele as tinha estabelecido em vida.
No fim da tarde recebi uma carta da rainha viúva, D. Ana, acompanhando a dádiva de um cabrito. Remunerei os portadores com 100 corais e 2 garrafas de aguardente.
17 de outubro
Celebrou-se missa às 8 e 9 horas da manhã, concorrendo bastante povo. Depois vieram a nossa casa bastantes fidalgos, entre eles D. André, secretário do pretendente D. Álvaro Dongo, o qual me perguntou pelo presente que lhe pertencia, dizendo saber que eu lho trazia. Respondi-lhe que isso vinha declarado nas cartas para a rainha, cujo conteúdo eu ignorava. Dei-lhe 200 corais. Também veio o duque de Bamba, com o qual tratei da reedificação de alguma das igrejas, e de mais coisas relativas ao restabelecimento do culto divino.
18 de outubro
Estive com o duque de Bamba, em sua casa, e disse-me que desejava que os reverendos Padres marcassem o lugar para a sepultura do rei, e que esta fosse fechada pelos nossos pedreiros. De tarde fomos todos a isto, e escolheu-se o lugar para a cova no adro da Sé, ficando o duque de a mandar abrir.
O irmão mais novo do duque, D. Henrique, escreveu-me a pedir coral, e recomendando que não entregasse os presentes sem estarem todos, aliás nada lhe dariam a ele. Respondi, e dei 200 corais aos portadores da carta.
Seriam 6 horas e meia da tarde quando ouvimos grande grita e tiros pela povoação. Era a rainha que chegava. Vinha em tipóia coberta com um pano encarnado, precedida de música ao modo do país, seguida por uns 80 pretos armados.
O secretário D. André trouxe-me alguns papéis antigos, para eu lhe mandar tirar cópias, por estarem mui danificados. Assim o fiz, ficando eu também com traslados, e restituindo-lhe os originais.
19 de outubro
Pelas 7 horas recebi uma carta de D. Álvaro de Água Rosada, sobrinho do rei D. Garcia 5.º (2), o tio do Dongo, pretendente à coroa, a prevenir-me que vinha visitar-me. Veio efectivamente às 8 horas, em companhia de D. António, filho do sobredito rei, trazendo uns 50 homens armados, por escolta.
D. Álvaro terá 30 anos, é de estatura regular e, ainda que um pouco picado das bexigas, tem o rosto simpático. Trajava farda cor de pinhão com botões amarelos, que nos pareceu ser do uniforme da marinha mexicana, dragonas de subalterno de infantaria, do antigo padrão, com a franja presa, chapéu armado com o laço português e penacho de pita, e pano branco de seda bordado a prata. No peito tinha um placard da Ordem de Cristo, de fio de prata sobre veludo preto, muito usado, e ao pescoço, pendente de fita, uma chapa de metal com as armas reais portuguesas.
D. António é homem de 40 anos, reforçado, e com a barba já grisalha. Vinha vestido de panos, sendo o de sobrevestir de damasco encarnado com franjas de retrós, que mostrava ter sido feito de um frontal de altar. Este pano era todo semeado de cruzes, como eles usam para denotar que se consideram cavaleiros da Ordem de Cristo.
Vinha com eles um rapaz de 25 anos, chamado D. José Pedro de S. Salvador, que lhes serve de secretário. Fala e escreve o português, e sabe ajudar à missa. Disse-nos que é natural de Massangano, tendo estado empregado na igreja dos Remédios em Luanda, aonde aprendeu, e que há 8 anos que veio para o Congo.
Tratando dos negócios do estado, disseram que não se apresentavam sob bom aspecto, pois que havia vários pretendentes à sucessão do reino, entre os quais o Dongo, de carácter violento, que manifestava querer vencer à força, tendo para isto muita gente armada, no que havia despendido grande quantidade de fazenda. Que assim tinham já praticado os da sua família, quando fora da eleição do falecido rei D. Henrique 2.º, sendo então necessário, para evitar guerras, que se lhes desse a graduação de príncipes da família real, do que este agora se prevalecia.
Depois de os haver regalado de bebida, retiraram-se. Logo que saíram, mandei pedir à rainha, pelo intérprete Pinheiro, que me destinasse hora para lhe falar, e entregar-lhe a carta de que era portador.
Respondeu que ia conferenciar com os seus conselheiros, e que me faria saber a decisão tomada.
Às 10 horas e meia veio D. António, irmão da rainha, com uma carta em que esta nos convidava a irmos à sua presença. Acompanhava-o algum povo, e trazia um preto de mimo para os Padres.
Este D. António é alto e grosso, de uns 40 anos de idade, e pessoa de grande respeito entre aquela gente. Trazia panos de riscado, e capa de damasco encarnado, que também parecia provir de armações das antigas igrejas.
Fomos para a banza real. Entrando nela, achámos a rainha num largo do quintal, assentada num banco, sob a umbela aberta, que um preto segurava. Formava-lhe alas uma porção de gente armada.
A rainha terá 50 anos, é de estatura regular, e magra. Estava com um vestido encarnado de damasco de lã, franjado com retrós amarelo, mui largo e mal feito, e todo cheio de cruzes. Nos ombros tinha um xaile branco de lã, com barras escuras, bem usado; uma espécie de barrete, feito de retalhos de pano de diversas cores e com cruzes; calçava sapatos encarnados de marroquim, bordados com seda branca.
Depois dos cumprimentos do estilo, apresentei-lhe a carta de sua ex.ª o governador-geral, que ela recebeu, beijando-a, e logo entregou a um dos secretários, o qual leu o sobrescrito em voz alta, tornando a passá-lo à rainha, que de novo a beijou. Então os principais fidalgos se afastaram um pouco e, após breve conferência, disseram que Sua Alteza a Rainha queria mandar ler a carta em presença de todos os seus conselheiros, e daria resposta no dia seguinte. Em seguida nos retirámos.
Durante esta recepção esteve tocando a charanga, que eu para ali havia mandado com antecedência. A rainha não proferiu uma única palavra. Com o xaile fazia que encobria o rosto, mas procurando mirar-nos com grande curiosidade.
Na volta para casa passámos pela quitanda, onde vimos à venda os mesmos géneros que já dissemos, mas em muito maior abundância, e também muito mais concorrida.
Pelas 4 horas da tarde já eu tinha uma cópia da carta de sua Ex.ª para a rainha, e por estar assim sabido o seu conteúdo, me vi importunado com pedidos dos presentes, que a vários vêm destinados.
Os reverendos Padres baptizaram neste dia umas 150 pessoas.
20 de outubro
Às 11 horas da manhã mandei dizer à rainha que ia fazer-lhe entrega dos presentes.
Achei-a assentada à porta da casa em que estava o cadáver do falecido rei D. Henrique 2.º, com o mesmo aparato da outra vez.
Apresentei-lhe tudo, à excepção do que era destinado para o novo rei e sua mulher. O duque D. Álvaro disse que a rainha agradecia muito.
Por esta ocasião lhe signifiquei a necessidade de se proceder à encomendação do cadáver do rei, a fim de nos retirarmos, voltando quando tivessem as coisas dispostas para a eleição do sucessor à coroa; isto em razão de que o enterro tinha de ser simultâneo com a dita eleição, conforme os seus usos, e esta ainda estava para demora, que nós ali não podíamos ter. Responderam que se ia reunir o conselho, para fixar o dia da encomendação.
Às 5 horas da tarde vieram o duque de Bamba, e D. António, irmão da rainha, e disseram que só para dezembro poderia ter lugar a eleição do sucessor do reino, e que por isso, visto nós não podermos esperar, se faria a encomendação do defunto rei D. Henrique 2.º no dia seguinte.
Neste dia se baptizaram 160 pessoas.
À meia noite se retirou para regressar ao Bembe, o morador Leivas, levando alguns filhos dos principais fidalgos, que nos foram confiados para serem educados.
21 de outubro
Pelas 7 horas da manhã fomos para a banza, proceder à encomendação. Estava ali a rainha, com uns 100 pretos armados, os fidalgos e o povo. A cerimónia fez-se com bastante recolhimento, da parte dos indígenas. Os Padres celebraram missas, por alma do defunto.
Chegou o marquês de Catende, pelas 9 horas. Trazia só uns 20 pretos armados, e era precedido de outro, que tocava clarim. Foi recebido com descargas de alegria, que mandou dar o duque seu irmão. Às 2 da tarde veio visitar-nos, em companhia do dito duque, seu irmão, e de D. Álvaro, tio do Dongo. Trazia consigo um filho do falecido rei D. Henrique, e outro do Duque de Bamba, os quais me entregou, pedindo que os fizesse educar e instruir para Padres. Aceitei estes, e não mais que os fidalgos ainda queriam dar-me, dizendo-lhes que já tinha bastantes, mas que na seguinte visita, que faria ao seu país, poderia tomar alguns outros. Depois de regalados de bebida, retiraram-se.
O Nlembo dos escravos das igrejas, Pedro Luis, veio, acompanhado de muitos outros, trazer-me uma cabra, dizendo que era para rancho da viagem. Retribui-lhe com 800 corais.
Às 7 horas da noite fui despedir-me da rainha, a qual achei com o Catende e com o duque. Instou para que ficássemos até à eleição do novo rei; mas eu ponderei-lhe de novo a impossibilidade de termos tão grande demora.
O Catende veio também despedir-se de nós. Falou das suas esperanças de suplantar o concorrente à coroa, D. Álvaro Dongo, e entregou-me uma carta para sua Ex.ª o governador-geral. Fiz-lhe presente de alguma fazenda e coral, e retirou-se.
Durante o dia continuaram os Padres a baptizar e confessar.
22 de outubro
Pelas 3 horas da madrugada, com um belo luar, nos pusemos em marcha, para regressar ao Bembe. Seguimos o mesmo caminho, que tínhamos levado, e viemos pernoitar em Quincalla, povoação do Catende, onde chegámos às 3 da tarde, andando 8 horas, e havendo descansado 2 horas, durante as quais almoçámos. Perdemos, porém, uma boa meia hora de caminho, na lagoa próxima da povoação, por nos havermos extraviado.
O irmão do Catende, D. Henrique, que nos tinha acompanhado desde a quitanda, por onde passámos, pediu que se baptizasse alguma gente, que assim o desejava. Disse-lhe que seria satisfeito, no seguinte dia.
23 de outubro
Logo pela manhã se começou a baptizar.
Pelas 9 horas continuámos a viagem, sempre pelo mesmo caminho. Às 3 da tarde chegámos a Quitare, tendo feito uma marcha efectiva de 5 horas, e descansado durante uma. Os rios e lagoas tinham mais água do que quando passámos na ida para o Congo.
Nesta povoação estavam com o itâme (funeral) de um dos corpos que da outra vez aqui vimos. O concurso de gente era imenso, sendo não pouca de outras povoações. Segundo os usos destes indígenas, os enterros são solenizados como se fossem folguedos. Ali estavam em danças e mascaradas. Um preto representava de bobo, vestindo saiote de liconde, com muitos enfeites, e tendo uma máscara de pau, pintada de encarnado até ao nariz, e branca para baixo, com cabelos e barba do mesmo liconde, caindo até à cintura, tudo obra assaz bem feita, que não parecia de pretos. Na cabeça tinha um grande barrete negro. Este truão fazia mil cabriolas e trejeitos, para receber o coral que lhe lançavam, o qual ele recolhia, pela boca, nuns depósitos interiores que a máscara tinha.
Logo que amanheceu baptizaram os Padres 60 pessoas, depois do que, sendo 7 horas e 10 minutos, nos pusemos em marcha, seguindo agora caminho diverso daquele que trouxemos para S. Salvador. Às 7 horas e meia passámos em Sanzamba, povo de 50 cubatas, de que é soba D. Afonso. Fica esta senzala numa baixa, toda rodeada de altos montes, e corre junto dela um riacho, por entre uma pequena floresta.
Sobre o cume do monte, por onde saímos daquela baixa, está a povoação de Quimilulo, do soba D. Pedro, de umas 15 cubatas. Eram 8 horas quando a atravessámos.
Às 8 e meia encontrámos Macoco, de 80 casas, soba D. Pedro. Esta povoação está dentro de uma mata tão extensa quanto se alcança com a vista. Foi onde vi melhores madeiras de construção. Numa cubata estavam muitas figuras de pau, feitas à faca e pintadas com vivas cores, as quais, conquanto toscas, demonstram a paciente aplicação dos pretos e o seu talento de imitação. Uma era de tamanho natural, representando um preto assentado: de longe parecia um orango-outango. Quis comprar duas figuras e, não tendo com que pagar, mas trouxeram de boa vontade até ao rio, onde lhes satisfiz o que tínhamos ajustado.
O rio é o Ambriz: chegámos a ele às 9 horas e um quarto. Num morro, que o precede, há o povo de Quingo, de 30 cubatas, soba D. Pedro. Não passámos, porém, por esta povoação, e sim à esquerda, entre quebradas, por onde descem as águas das chuvas, e mesmo entra um braço do rio, quando vai muito cheio. Há por ali boa pedra, e também areia própria para argamassa.
Estava junto ao rio uma grande quibuca (comitiva) de marfim, aos pretos da qual a gente das senzalas próximas vendia comestíveis e outras coisas. O capata (capataz da comitiva) disse-me que ia para o Ambriz, que distava quatro dias de viagem, sendo mais um dia para o Ambrizete. Acrescentou que outras três quibucas iam adiante.
Naquele lugar o rio é muito largo, e levava então grande corrente. Contudo ali é a passagem mais frequentada, para a qual há quatro grandes canoas. As margens são elevadas, e com muito arvoredo.
Enquanto passava a nossa gente, almoçámos nós. Pelas 11 horas continuámos a viagem, tendo dado aos chimbicadores (pretos vareiros das canoas) meia peça de fazenda.
Passámos por Quimacondo às 11 horas e 25 minutos: é uma povoação de 40 cubatas, num alto descoberto, cujo soba se chama D. Simão.
Um quarto depois do meio dia chegámos a Quinganga, onde já tencionávamos pernoitar, por nos constar que ali existia uma antiga igreja, tendo ainda imagens e outros objectos do culto religioso.
Logo soubemos que não nos haviam enganado. O soba desta povoação, de umas 80 casas, que também se chama D. Simão, homem de mais de 80 anos e quase cego, imediatamente se prestou a fazer-nos mostrar a dita igreja, mandando a isto o preto que disto está encarregado, que é um rapaz de uns 14 anos de idade.
O edifício é como uma cubata de tamanho regular, com sua porta de pau, apenas presa por um cordel. Fronteiro à porta está o altar, feito de bordão e coberto com dois xailes de lã e algodão amarelos, sobre o qual se acham as seguintes imagens:
De Nossa Senhora do Rosário, de 5 palmos.
De Santo António – duas Imagens -, uma de 2 palmos, e outra mais pequena.
Santo Cristo – duas Imagens - , uma de madeira, outra de prata.
De Santa Luzia.
Há mais ali: uma cruz de bronze, das que se usam em procissões, turíbulo, naveta, cálice e três resplandores, tudo de prata, patena, pedra de ara, sineta, campainha e uma caixa de pau para hóstias.
Tudo se acha mui sujo, mas não estragado.
No meio da capela está uma sepultura, que dizem ser do último frade que lá esteve, chamado Frei José.
Tendo-nos recolhido ao nosso aposento, ali veio o soba e nos contou a seguinte história daquela ermida.
“Entre os antigos sobas seus predecessores houve um de nome D. Simão que foi a Portugal, sendo ele o que trouxe aqueles objectos do culto religioso, e outros mais que já não existem. Que ali estiveram diferentes Padres, enquanto os houve nos conventos de S. Salvador do Congo, sendo dois os últimos, dos quais um se retirara e o outro falecera, que era o que estava na sepultura. Que o nome da povoação provinha desta residência dos Padres nela, por ser, em ambundo, equivalente o termo ganga a Padre, donde se formara o dito nome Quinganga”.
Mostrou-nos os livros e papéis que possuía, sendo dois breviários, muito arruinados, e várias cartas, das quais tirei as seguintes notas, a custo, por estarem quase todas também estragadas.
Uma carta com data de 30 de dezembro de 1603, assinada por D. Simão de Medeiros.
Outra, de 17 de fevereiro de 1778, dirigida a D. Simão, por D. António da Nazareth.
Uma certidão, incompleta, passada pelo Padre missionário André do Couto Godinho, em 30 de junho de 1778, e tendo uma nota de outro Padre, José Raimundo, capuchinho, missionário apostólico da sagrada congregação, lançada em 9 de junho de 1793.
Outra carta, sem data, do mesmo André do Couto Godinho, que nela se intitula presbítero do hábito de S. Pedro, bacharel em cânones formado pela universidade de Coimbra, e missionário apostólico no reino do Congo.
Estas cartas, e todas as mais cujas datas e assinaturas já não se pode decifrar, são de correspondência particular, de nenhum interesse histórico.
Tudo restituí ao soba, que se retirou, tendo-o eu presenteado. Também ele me enviou um cabrito, que retribuí ainda, com fazenda e aguardente.
Fui pagar-lhe a sua visita e propor-lhe que ficasse ali o Padre José Agostinho, por alguns dias, para instruir o povo e administrar-lhe os sacramentos.
Neste dia (24) só fizemos 3 horas e um quarto de marcha efectiva.
25 de outubro
Pelas 3 horas da madrugada, com belo luar nos pusemos a caminho, deixando na povoação o Padre José Agostinho.
Às 4 e meia passámos por Pusa, povo de umas 120 casas, soba D. Afonso, e às 6 e um quarto em Lufuco, de 200 casas, dentro de uma grande mata. O soba, D. Manuel, veio logo cumprimentar-nos, e deu dois pretos para nos ensinarem o caminho. Retribuí-lhe com 200 corais.
Às 6 horas e 50 minutos chegámos ao rio Calucalo, o qual, próximo do lugar da passagem, corre sobre grandes rochas, e delas se precipita formando cascata.
Às 8 horas e 50 minutos chegámos ao Iembe, povoação de mais de 200 fogos, soba D. Paulo, onde almoçámos e esperámos a reunião das cargas, pois que nos havíamos perdido no caminho por duas vezes, fazendo mais de 2 horas de marcha inútil.
Largámos às 11 horas, e ao meio dia e 20 minutos estávamos em Mocama, pequeno povo de 30 cubatas, soba D. Romão.
À uma hora, em outra povoação do mesmo nome (Mocama), de 20 cubatas, soba D. Álvaro.
À uma hora e 30 minutos, já se divisava a fortaleza do Bembe, pelo alvejar de suas muralhas e das paredes das casas. Um quarto de hora depois (1 hora e 45 minutos), atravessámos o povo de Puina, de 15 fogos, soba D. Garcia e, finalmente às 2 horas e meia entrámos no Bembe.
No dia de hoje fizemos 9 horas e 20 minutos de marcha efectiva, e em toda a viagem, desde S. Salvador, andámos 25 horas e meia, em 3 dias e meio de viagem.
Observações gerais
Uma boa quarta parte do caminho só se pode fazer a pé; no restante, anda-se em tipóia, mas o mato é tanto que rasga.
Na ida para o Congo, a gente das povoações mostrava-se receosa, por ver soldados: na volta já vinha esperar-nos ao caminho, trazendo o que tinha para vender.
Os rios iam todos mais grossos agora no regresso, e as lagoas achavam-se mais cheias, posto que só víssemos chover por duas vezes. Provavelmente eram águas vindas de longe.
O país é muito povoado: além das senzalas mencionadas neste itinerário, como sendo as do caminho, vêem-se outras em qualquer lado para onde se lance a vista.
Todas têm água perto, de charcos ou de cacimbas, geralmente, e por isso, suja e má. Fora das povoações há grandes largos, bem assombrados por arvoredo, onde se fazem as feiras (quitandas), uma vez na semana. Cumpre advertir que a semana só tem quatro dias entre aqueles povos, sendo – Sona, Cando, Canzo e Quengue.
Há muita abundância de palmeiras e bananeiras. Das primeiras tiram o maláfo (é como ali chamam ao vinho dessas árvores) com que se embriagam tão continuadamente. As bananas comem-nas verdes.
Os homens não largam jamais a espingarda. Em caminho vão-lhes esfregando os metais com um trapo azeitado, e por isso as trazem sempre mui limpas; o que não quer dizer, todavia, que todas andem em bom estado para fazer fogo.
Tendo perguntado em S. Salvador do Congo o motivo por que estavam tantas casas abandonadas e em ruína, disseram-me que era consequência do interregno: costumando ser sempre assim, porque muitos habitantes da cidade, temendo as guerras que há em tais ocasiões, se ausentavam, e só voltavam depois de haver novo rei.
Disseram-me também ali, que há tradição de uma mina de ouro em Boma, no rio Zaire. De nenhuma circunstância a tal respeito sabem dar notícia.
De todos os documentos que vi em S. Salvador, e em Quincanga, que me pareceram de algum interesse, tirei cópias, que tenho em meu poder.
Durante o nosso regresso daquela capital, tivemos sempre notícias de se conservar lá o sossego.
F I M
(1) Este barrete é de tecido de fio de plantas diversas, conforme as localidades, com lavores de gosto, assaz aprimorado. Só o usam os sobas e semelhantes potentados, bem como os seus fidalgos.
(2) O rei D. Garcia 5.º precedeu a D. André 2.º, imediato antecessor do último rei falecido, D. Henrique 2.º, que começou a reinar em 1842.
(Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola, n.º 690 e 691 (1858); e n.ºs 692, 695, 696, 701, 702, 710 e 711 (1859).