2-9-2002
REVISTA, 6-7-2002
A FAMÍLIA SANTOS SILVA
Quatro
gerações
Textos de Jorge Fiel
Aquilino Ribeiro ensinou-nos que «uma das condições dos homens de carácter é imprimir esse carácter na sua prole». Uma frase que soa como adequada a quatro gerações de Santos Silva. Se olharmos para os principais acontecimentos que marcaram a vida do país nos últimos 120 anos, é muito difícil não encontrar por lá espalhadas as impressões digitais de um membro desta ilustre família burguesa do Porto.
O revoltoso do 31 de Janeiro
Já passava da meia noite - ou seja, já era 31 de Janeiro -, quando Dionísio Santos Silva saiu da tipografia Empresa Literária de que era co-proprietário. Estivera largas horas a rever provas e, como de costume, dirigiu-se ao Suíço para cear na companhia dos amigos Sampaio Bruno e Eduardo de Sousa. O dia 30 de Janeiro de 1891 tinha sido comprido e agitado - e não iria terminar à mesa. Pela manhã tinha ido à cadeia visitar João Chagas, o director do diário «A República Portugueza», que lhe deu numerosos bilhetes e telegramas de felicitações, enviados de diferentes pontos do país, por causa da sua condenação por abuso de liberdade de imprensa e destinados a serem impressos no jornal.
Dionísio tinha andado numa roda viva, em contactos conspirativos preparatórios para a revolta contra a Monarquia que se anunciava para o dia seguinte. A tipografia não era o único negócio deste homem já maduro e vivido nos seus 47 anos, proprietário da Chapelaria Portuense, de porta aberta no 61 da Rua de Santo António (actual Rua 31 de Janeiro) onde tinha à venda um sortimento completo e variadíssimo de tudo o que havia de chapelaria, das coisas mais modestas às mais chiques.
No Suíço, assim que o chispe chegou à mesa, Dionísio e os amigos anteciparam a vitória da sublevação, para onde partiriam logo que a fome estivesse saciada, fazendo proclamações num tom de voz que não passou desapercebida aos restantes comensais e criadagem. Com os olhos postos no acepipe, brindaram a que fosse aquele o último chispe por eles deglutido em regime monárquico. Não quis a História que isso fosse verdade. A acção levada a cabo pelos militares foi bastante desordenada e acabou esmagada pela Guarda Municipal, que a meio da manhã disparou sobre a última bolsa de resistência dos revoltosos republicanos, concentrados na praça da D. Pedro (actual praça da Liberdade), aniquilando uma sublevação que apesar de fracassada foi um importante passo do irreversível processo revolucionário que conduziria ao 5 de Outubro.
Gorada a primeira tentativa de implantação da República em Portugal, logo começaram as perseguições. A publicação de «A República Portugueza» foi suspensa, transformando este vibrante diário de combate numa das primeiras vítimas daquele dia pavoroso e ensanguentado de 31 de Janeiro de 1891. João Chagas foi deportado para África. Sampaio Bruno partiu para o exílio. Dionísio e Eduardo Sousa foram encarcerados no paquete «Moçambique» ancorado em Leixões, juntamente com os outros implicados no movimento. Levado a Conselho de Guerra, Dionísio acaba absolvido. No interrogatório, reconhece que sabia da revolta que se preparava, «como toda a gente, excepto aquela que tinha ouvidos para não ouvir», pois falava-se nela em todos os pontos de reunião - mas nega o envolvimento nas operações militares.
De origem modesta, Dionísio iniciara a vida como operário chapeleiro. Em 1877 é um dos principais agitadores da greve dos chapeleiros, firmando logo ao 25 anos uma fama de revolucionário. Mercê de grande perseverança e uma vontade inquebrantável logrou triunfar na vida e estabelecer-se. Mas nunca esqueceu os mais desfavorecidos.
Esteve sempre apaixonado pela política. Começou na esquerda monárquica. Foi militante influente do Partido Progressista como se comprova pelo facto de, em 1881, apenas com 27 anos, ter sido eleito presidente da Junta da Paróquia de Santo Ildefonso, onde valeu aos desfavorecidos e dedicou especial atenção à instrução popular e à assistência. Envergonhado com a cedência monárquica ao Ultimatum britânico (a Coroa aceitou desistir do Mapa Cor-de-Rosa que consistia em criar a África Meridional Portuguesa, de costa a costa, ocupando os territórios situados entre Angola e Moçambique), adere ao Partido Republicano. Num ambiente de grande efervescência patriótica, funda «A República Portugueza», jornal de que foi administrador e onde colaboraram Teófilo Braga, Latino Coelho, António José de Almeida e Basílio Teles, entre outros.
O fracasso do 31 de Janeiro abala-lhe as finanças. A chapelaria abre falência. Para conseguir que as suas quatro filhas tirem o curso do Magistério Primário, é obrigado a socorrer-se do apoio de Eduardo, o filho mais velho e único varão, que quando o pai foi preso tinha apenas 11 anos e andava no 2º ano do Liceu Central do Porto. Mas nunca desistiria da militância republicana. A sua casa era frequentada por Afonso Costa, Guerra Junqueiro e Alves da Veiga, entre outros. Em 1907 funda o Centro Republicano Rodrigues de Freitas. Recompõe a vida como sócio-gerente do Teatro-Circo Águia de Ouro. Com o advento da República assume diversos cargos políticos, Até morrer, em 1920, foi administrador dos concelhos de Gaia e Santo Tirso, co-proprietário do diário republicano «O Norte». Nos idos de 80 teve uma casa de penhores, protagonizando a estreia da família num negócio (o do dinheiro) onde o seu bisneto Artur viria a triunfar, lá mais para o final do século XX.
O primeiro cidadão do Porto
Eduardo Santos Silva era presidente da Câmara do Porto das duas vezes que foi mandado prender por Sidónio Pais. A primeira, a 10 de Janeiro de 1918, não teve grandes consequências - poucos dias volvidos foi amnistiado. A segunda, ocorrida a 18 de Maio, foi muito mais séria: Sidónio proibiu-o de viver no Porto.
Impedido de viver na cidade a cuja vereação presidia, requereu ao secretário de Estado da Guerra a incorporação no Corpo Expedicionário Português (CEP), para ir combater os hunos - apesar de já ter 38 anos, ser casado e ter filhos. Em finais de Junho, impecavelmente fardado, partiu para França onde integraria o 3º Batalhão da Brigada do Minho. Foi um dos últimos portugueses a reforçar o desamparado CEP, órfão da atenção do Governo de Lisboa e destroçado pelas 7300 baixas sofridas a 9 de Abril na batalha de La Lys. O capitão-médico Santos Silva demora-se por França para além do Armistício de 11 de Novembro de 1918. Desmobilizado em Março de 1919, retornou ao Porto e à Câmara onde se manteve até 1922, trazendo na bagagem a Cruz de Guerra. Como vereador e presidente de Câmara esteve associado a um período de grande progresso na cidade. Criou cursos nocturnos para adultos, jardins de infância junto aos bairros sociais mais populosos, triplicou o parque de escolas primárias, fundou o Conservatório de Música e a Maternidade, estimulou a leitura (privilegiando os desempregados que frequentavam a Biblioteca Municipal), iniciou a construção da Avenida da Liberdade e do novo edifício dos Paços do Concelho, aprovou o feriado do 1º de Maio e a jornada de trabalho de oito horas para os operários e empregados municipais.
O desempenho na guerra e a acção na Câmara do Porto seriam porventura suficientes para deixarem o seu nome na história, mas a vida de Eduardo Santos Silva foi muito mais preenchida. O «primeiro cidadão do Porto» - assim o baptizou o seu amigo Ramos de Almeida - foi ainda um notável médico, com obra feita no capítulo da saúde pública (foi o grande obreiro do Hospital Rodrigues Semide, o primeiro grande empreendimento em Portugal de combate à tuberculose), um professor emérito e persistente opositor da ditadura salazarista.
As circunstâncias da vida obrigaram-no a ser precoce. Tinha 11 anos quando o pai foi preso no 31 de Janeiro. Aos 13 declarou-se republicano. Ainda miúdo, aprendeu a conciliar o trabalho com os estudos para ajudar o pai a sustentar a família. Aos 16 era escriturário no notário de Gaia, escrevendo «à rasa» as certidões de escrituras. Ingressa em 1898 na Escola Médico-Cirúrgica, onde pontificava Ricardo Jorge, e fez-se médico ao mesmo tempo que dava uma mão ao pai na gestão do Águia de Ouro e se envolvia no combate ao terrível surto de peste que deflagrou na cidade em 1904.
Tinha 23 anos quando se licenciou em Medicina e se apaixonou por Ernestina, uma lindíssima rapariga, de cabelos louros e olhos muito grandes, com quem casa no final do Verão de 1906. O jovem casal instala-se numa casa alugada na rua do Sol e depressa assegura farta descendência, obrigando o médico a uma actividade febril para assegurar o sustento da casa. Lecciona Ciências Naturais, Português, Francês e Geografia no Liceu Central do Porto. Arranja ainda tempo para uma militância activa no Centro Republicano Rodrigues de Freitas, fundado e dirigido pelo seu pai Dionísio, e para uma estadia em Paris (1909/10), onde se especializa em dermatologia e sifiligrafia - e faz amizade com Aquilino Ribeiro, Teixeira Lopes, Amadeu Souza Cardoso. Regressa a Portugal em Abril de 1910, poucos dias antes do nascimento do filho Artur, ainda a tempo de presenciar o derrube da Monarquia.
Foi um dos nomes grandes da I República. Era ministro da Instrução Pública no último Governo deste regime, o qual sobreviveu apenas dois dias à vitoriosa revolta militar do 28 de Maio de 1926, que abriu caminho ao Estado Novo e à ditadura de Salazar que Santos Silva iria consagrar o resto da vida a combater. Começou a ser preso logo em 1927, por apoiar activamente a fracassada Revolução de Fevereiro, a primeira sublevação contra a ditadura. «Durante a revolução de Fevereiro, a nossa casa foi quase um posto militar. Por lá passaram destacadas figuras do movimento, aí se realizaram reuniões, aí comeram e dormiram durante noites seguidas, oficiais e soldados», recorda o filho Eduardo. Estava dado o mote. Daí em diante vamos encontrá-lo na primeira linha de todos os grandes combates dos republicanos contra o salazarismo. Em 1930 é deportado para o Funchal. Em 1931 assina, ao lado de Tito de Morais e Norton de Matos, um manifesto da Aliança Republicana-Socialista. Em 1945, no final da II Guerra Mundial, redige um manifesto exigindo eleições livres e participa, com quatro dos seus filhos (Eduardo, Artur, Osvaldo e Fernando) no MUD, a grande estrutura unificadora das oposições. Em 1949 vemo-lo a discursar ao lado de Norton de Matos, perante mais de 100 mil pessoas, no célebre comício da Fonte da Moura. Em 1958, é ele quem recebe no Porto o general Humberto Delgado, um dos momentos mágicos do século XX português.
Pagou um preço elevado pela militância aqui descrita em pinceladas de factura larga. Em 1935, foi saneado do lugar de professor efectivo no Liceu Alexandre Herculano, e colocado em «inactividade permanente, seguida de aposentação». Em 1945, uma direcção salazarista da Santa Casa da Misericórdia afasta-o da direcção clínica do Hospital Rodrigues Semide. E nas tertúlias à mesa do café, no Ateneu, Brasileira ou Rialto, nas idas ao teatro, ao cinema ou a conferências, estava sempre vigiado de perto pela PIDE, em cujos arquivos foram encontrados relatórios detalhados de vários informadores, um dos quais se fez passar por seu doente para poder frequentar o seu consultório na Rua Formosa e assim o vigiar mais de perto. Gaspar Martins Pereira, o seu biógrafo, salienta acima de tudo «o carácter honrado que os próprios adversários lhe atribuíam, a coragem serena de quem conheceu os horrores da guerra, a prisão e o degredo, mas não calava a voz perante as injustiças nem se desviava dos seus princípios cívicos».
Em Janeiro de 1960, assinou pela última vez o panfleto da convocatória para a evocação do 31 de Janeiro, no cemitério do Prado de Repouso, onde o seu corpo foi a enterrar em Setembro. No dia do funeral, esgotaram as flores no mercado do Bolhão e o trânsito teve de ser interrompido. Chovia torrencialmente - era a cidade a chorar a morte do seu «primeiro cidadão».
O bom rebelde
Quando soube que a RAF tinha afundado o «Bismarck» (o orgulho da marinha nazi), no Mar do Norte, Artur Santos Silva não se conteve e entrou no café Palladium, na esquina de Santa Catarina com a Passos Manuel, aos berros de «Viva a RAF». Foi preso. Não seria nem a primeira nem a última vez que isso aconteceria a este advogado oposicionista, nascido no ano em que a monarquia morreu e que viveu o tempo suficiente para assistir à queda de Salazar da cadeira, à morte política de Marcelo e ao 25 de Abril, desfrutando no ocaso da vida de seis anos de actividade política em liberdade.
Quando, aos 18 anos, foi para Coimbra estudar Direito, já estava em construção o Estado Novo, e Artur, filho de um dos grandes vultos da Primeira República, sabia bem o que não queria. Alojou-se na República das Águias, onde também estavam aboletados os irmãos Cal Brandão e iniciou-se na Maçonaria. Era alegre e bem disposto, senhor de grande coragem moral e física. Por razões políticas, perde logo o primeiro ano e é obrigado a transferir-se para Lisboa. Uma vez por semana vai jantar a casa de João de Barros, também frequentada por Marcelo Caetano, que namorava a filha deste velho amigo de seu pai Eduardo. A mudança não pôs travão à actividade política vulcânica que por diversas vezes o leva à prisão: perde um ano (o terceiro) na secretaria, mas consegue recuperá-lo, com um recurso que obtém provimento e que lhe permite recuperar o atraso fazendo dois anos num só.
Em 1933, regressa à casa paterna, no 320 da Rua do Bonfim, casa enorme, com jardim grande, escala obrigatória de grandes figuras da oposição a Salazar - por lá passaram António Sérgio, Jaime Cortesão, Abel Salazar, Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro. Abre escritório, primeiro na Praça, depois no Prédio Singer (Sá da Bandeira). Em 37 começa a namorar com Alda, que conhecera numa festa perto de Felgueiras. Um ano depois casam-se e vão morar para uma casa alugada, o 321, do outro lado da Rua do Bonfim, amiúde visitada por gente como Lopes Graça, Sophia, Régio, Mário Soares, Salgado Zenha, Manuel Mendes e Miguel Torga.
Da sua actividade como advogado ainda hoje se contam histórias saborosas, ilustrativas do seu humor, coragem, criatividade, capacidade de improviso e rapidez de raciocínio. Como daquela vez em que viu que o juiz estava a dormir mas continuou a falar e disse: «Vossa Excelência não dorme. Está a pensar.» Mas a mais clássica de todas as suas histórias passou-se num julgamento do MUD. A dado passo, José Neves, seu colega de escritório, foi alvo de rude berraria do juiz Antero Cardoso. Indisposto com a forma malcriada como o colega tinha sido tratado, Artur pediu por diversas vezes a palavra. Quando ela lhe foi concedida, limitou-se a soltar uma gargalhada. O juiz perdeu as estribeiras e gritou: «Às armas, soldados, prendam aquele homem!» Ladino e arguto, Artur logo acusou o juiz de incompetência formal. Primeiro tinha de adverti-lo, depois retirar-lhe a palavra e só depois, se ele persistisse numa incorrecção, é que lhe poderia dar voz de prisão. A sessão foi suspensa.
“Pessoa estruturada na razão e no coração, era servido por uma cultura sólida, muito encostada à história, à literatura e às descobertas da ciência que o surpreendiam e o levavam a procurar, a compreender e a explicar o Mundo, a aspirar ao Homem Novo - utopia que para ele também era uma necessidade -, a questionar-se, inquieto, nas espirais de uma metafísica pessoal em que procurava reconciliar o profano com o sagrado e tranquilizar o susto do seu fim», testemunha o seu grande amigo Miguel Veiga.
Artur entendia a barra como uma extensão natural da sua grande paixão: a política. Durante todos os 38 anos que a ditadura durou, conspirou sem descanso para a derrubar. Em Dezembro de 1942 vemo-lo ao lado de José e Vitorino Magalhães Godinho, Gustavo Soromenho, António Macedo, Mário Cal Brandão, Paulo Quintela e Teixeira Ribeiro (de quem o seu filho Artur haveria de ser assistente) a fundar o Núcleo de Doutrina e Acção Socialista. Em 1958 encontramo-lo a embarcar com Artur Andrade no comboio para ir a Lisboa convidar Humberto Delgado para se candidatar à Presidência da República. Três anos depois, dá uma mão ao velho general, que andava fugido da polícia, escondendo-o em casa de um amigo. E assim continuou até que, a seguir ao 25 de Abril, ele e o seu grupo (Artur Andrade, Emídio Guerreiro, José Augusto Seabra, Artur Cunha Leal, Olívio França, Nuno Rodrigues dos Santos) aderem ao PPD. Na vida pessoal era despreocupadamente descuidado e desprendido. Só tirou a carta aos 45 anos e foi ainda mais tarde que comprou a sua primeira casa, nas Antas. O dinheiro entregava-o todo à mulher. «Não me lembro de alguma vez o meu pai ter comprado uma peça de vestuário ou calçado», conta o filho que lhe herdou o nome. «Vejo-o com aquele seu jeito descuidado, com aquele seu ar de bonomia com que ele descompunha as roupas que a senhora Dona Alda para ele amorosamente preparava com o esmero e a delicadeza das senhoras do tempo antigo. Artur Santos Silva podia dizer com a legitimidade e propriedade do clássico: 'Eu, moralmente é que tenho as minhas elegâncias'», escreveu Miguel Veiga, no elogio fúnebre. Todos aqueles que o conheceram convergiam nessa homenagem: «É uma daquelas pessoas que nunca mais se esquece.»
O banqueiro que foi bancário
Foram duas as vezes que Artur Santos Silva se encontrou com Cavaco no ano de 1980 - e não saiu satisfeito de nenhuma das reuniões. Nada do que lhe dizia o ministro das Finanças de Sá Carneiro o encorajava a andar para a frente com o projecto que há dois anos lhe consumia tempo, entusiasmo e imaginação. A saber, criar um banco privado. Logo à nascença, havia dois obstáculos. O problema da falta de dinheiro (dele) conseguira superá-lo recorrendo a um conjunto de 16 empresas que se dispunham a financiar o projecto. O pior eram as condicionantes legais e políticas. Desde Março de 75 que toda a banca estava nas mãos do Estado, excepção feita a uma ou outra pequena representação de um banco estrangeiro que escapara à voracidade que se apoderou da Revolução dos Cravos. Claro que nenhum destes obstáculos se revelou suficiente para demover o coriáceo Artur Santos Silva da firme intenção de ser o primeiro a fundar um banco após o 25 de Abril. A legislação vedava a banca à iniciativa privada mas ele sabia como contornar a questão. |
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Havia uma janela aberta: a possibilidade de criar uma sociedade de investimentos. Mas o quadro fiscal era tão negativo que, se não fosse amaciado, por si só inviabilizaria o projecto. Lutador incansável, não parou enquanto não logrou que esta esquina fosse arredondada e em 1981, aos 40 anos, Artur era o presidente da Sociedade Portuguesa de Investimentos (SPI), a primeira brecha no edifício da banca nacionalizada. Hoje, sabe-se que a história teve um final feliz. Em 1985, a SPI transformou-se no BPI, o primeiro banco privado após o 25 de Abril que, apesar de alguns acidentes de percurso (como a venda do BCI ao Santander e a fusão abortada com o BES), está instalado no «top five» da banca portuguesa, depois de ter comprado e digerido algumas marcas históricas da banca, como o Fomento, o Borges & Irmão e o Fonsecas & Burnay.
É difícil olharmos para os quase três anos em que Santos Silva andou a coleccionar accionistas para o projecto e a fazer lóbi junto dos políticos para que ele pudesse levantar voo sem nos lembramos do retrato que Miguel Veiga traça do banqueiro: «Personalidade de convicções, de causas, de sentidos e valores, que, honra lhe seja, nunca lhe foram moles ou gasosos. Da raça e com os talentos e as qualidade dos vencedores, dos ganhadores, dos homens de sucesso, embora bafejado pelos deuses da fortuna, que não são (pudera!) néscios nem parvos quando escolhem os seus preferidos, o Artur age como um homem de pensamento e pensa como um homem de acção. E detesta perder, mesmo a feijões. E, quando se aposta, o risco é sempre calculado em racional e exaustiva probabilidade.»
Artur Santos Silva cresceu numa família dominada por duas personalidades fortes e extrovertidas, que traziam sempre a alegria de viver tatuada no rosto: o pai e o irmão Eduardo, o Nené, que soube muito cedo que tinha a vida muito ameaçada e optou por viver depressa e intensamente os 25 anos que lhe estavam reservados.
O feitio contido e o ar sério que trás permanentemente afivelado levava os amigos a gracejar que ele parecia o pai do pai. E a firmeza tranquila que mais tarde seria uma das suas marcas de água, não o acompanhou nas primeiras decisões. Logo a começar pela escolha do curso. Como era muito bom em Matemática ainda pensou em ir para este curso, mas desistiu por não existir então a opção de Matemáticas Aplicadas. Decidiu-se pela Engenharia mas, quando já estava no 6º ano do liceu, arrepiou caminho e foi para Direito, o curso do pai, que era o seu grande ídolo e tinha uma vida fascinante.
Foi para Coimbra, onde viveu na mesma casa de Miguel Veiga, ali concluiu o curso em 1963, sem incidentes de maior a registar, com média de 17 valores, tendo ainda arranjado tempo para actividades extracurriculares. Frequentou o CITAC, presidido por Rui Vilar, e desenvolveu a militância antifascista emblemática da família (cruzou-se com o avô e o pai na campanha de Delgado) que mais tarde lhe causaria alguns dissabores.
No dia em que se formou foi convidado para assistente de Teixeira Ribeiro, dando aulas em Coimbra até ser chamado para o serviço militar. Na Marinha, fez o curso de cadetes no Alfeite até ser expulso, acusado de que não ter idoneidade política para oficial, por ser anti-salazarista. Não aceitou ser atirado para o Depósito Disciplinar de Penamacor e recorreu (com êxito) da decisão, acabando reincorporado na Marinha, devido ao apoio decisivo de Afonso Queiró, director da Faculdade de Direito de Coimbra. À saída da tropa agarrou com as duas mãos o convite que Câmara Pestana lhe fez para ingressar no BPA, em 1968, que lhe permitia regressar ao Porto. Demorou-se no Atlântico até que, em 14 de Março de 1975, a nacionalização da banca o impede de atingir o penúltimo degrau na carreira: a 26 iria ser eleito administrador.
Segue-se o parêntesis político na sua vida. Ele que, em 1974, tinha sido um dos fundadores do PPD, aceita o convite de Salgado Zenha para integrar, enquanto secretário de Estado do Tesouro, a sua equipa no Ministério das Finanças do VI Governo Provisório, liderado por Pinheiro de Azevedo. Retorna a Lisboa em 77 como vice-governador do Banco de Portugal (o governador era Silva Lopes), cargo que abandona no ano seguinte, desiludido: sentia que as coisas não estavam a ser feitas como deviam. Em 78 regressa ao Porto, em definitivo, para preparar o seu banco e assim chegar ao último degrau da carreira, passando de bancário a banqueiro. «O mundo da política não é o meu mundo. Tem de se andar no compromisso permanente e há uma grande diferença entre o que se quer fazer e o que efectivamente se pode fazer», explica. Tirou a prova dos nove de tudo isso quando, em 99, aceitou presidir à Sociedade Porto 2001, lugar de que se demitiu a escassos meses do abertura da Capital Europeia da Cultura, em conflito aberto com o ministro Carrilho. Saiu com a grande mágoa de não ter podido deixar o nome associado a um período de grande progresso na cidade - como o fizera, há 80 anos, o avô Eduardo. Mas, como costuma lembrar, «o Mundo não acaba amanhã».
As «pedras vivas» da nossa terra
Manuel Coelho dos Santos
1. Foi exactamente há 50 anos que iniciei a minha vida profissional no Porto. E fui logo parar aos antros da oposição ao salazarismo, que eram o café A Brasileira e, a meia dúzia de passos, a pastelaria Primus. Aí todos os dias se apostava na queda eminente de Salazar - ilusão de que nos íamos alimentando e que durou dezenas de anos. Foi por essa via que conheci vagamente os últimos sobreviventes da I República: o coronel Hélder Ribeiro, o engenheiro Mem Verdial e o seu parente o médico Santos Silva, a servirem de exemplo à geração que se lhes seguia - os irmãos Cal Brandão, Olívio França, Artur Santos Silva e tantos outros.
Do médico Santos Silva, ministro que foi da I República, ainda tenho na retina, com inteira nitidez, uma ou outra aparição sua na Primus, o ar sorridente e bondoso, a natural respeitabilidade e o respeito com que era recebido por todos.
A ele se deve - terá sido porventura a sua última intervenção política relevante - a indicação de Humberto Delgado como candidato a uma eleição presidencial por parte da oposição democrática, por sugestão que lhe fora feita por António Sérgio, como tantas vezes foi referido nos jornais.
Foram essas figuras venerandas que, com o seu sacrifício de vida, mantiveram acesa a chama da dignidade cívica e abriram o caminho - caminho longínquo e difícil - ao 25 de Abril.
2. O advogado Santos Silva tinha uma pesada herança a defender: cabia-lhe defender a Liberdade, tal como o fizera o pai na I República e antes o avô, combatente do 31 de Janeiro de 1891.
Era um homem determinado, impulsivo - por vezes demasiado impulsivo -, frontal, dotado de uma argúcia e de uma perspicácia invulgares.
Teve, demais, a sorte de contar com colegas de primeira água, numa época em que o idealismo não era só o dos livros e as ideologias ainda não eram prostituídas.
Esteve presente em todos os movimentos contra o salazarismo, com as consequentes prisões políticas.
Foi candidato a deputado pela Oposição pelo menos duas vezes e a candidatura presidencial de Humberto Delgado é sobretudo obra sua e de um outro Artur (Artur Andrade, hoje doente), os quais, em nome do grupo em que eu me integrava, foram a Lisboa fazer o convite ao general e foram figuras cimeiras naquela campanha.
De toda esta actividade política eu fui testemunha, porque em tudo colaborei modestamente, como também fui testemunha das suas intervenções como advogado nos processos políticos, da combatividade e ironia que punha nessas intervenções.
Artur Santos Silva gostava demasiado da vida. E sabia que a vida só se vive em plenitude assumindo riscos e posições de rebeldia, lutando por princípios por que vale a pena viver.
3. Mais um claro fenómeno de capilaridade social: ao bisavô chapeleiro - o combatente do 31 de Janeiro - segue-se como bisneto um banqueiro próspero.
Mas esse fenómeno não é tão vincado como parece: o bisavô não era só o comerciante limitado pela profissão e antes tinha já preocupações culturais (estava ligado a jornais) e preocupações de natureza cívica e social.
E o bisneto também não é o banqueiro com a sua marcada faceta negativa, tal como eu na generalidade os suponho, se calhar por deformação ideológica. O bisneto não se esqueceu de que tem uma pesada herança a defender, que passa em primeira linha pela luta pela democracia e pela solidariedade social.
Vivemos numa época em que as «pedras vivas» de que falava o Sérgio são remetidas para o limbo e substituídas pelos empreiteiros e futebolistas de sucesso. Mas as cidades e os países fazem-nos as pessoas - as pessoas válidas.