2-7-2005
George Frideric Handel
(1685-1759)
Dionisio Re di Portogallo
The Opera season of 2004/2005 in the Teatro Nacional de S. Carlos, Lisbon, included five representations of “Dionisio Re di Portogallo”, by George Frideric Handel. The truth is that Handel never wrote such an opera, but only one called “Sosarme, re di Media”, whose première took place on February 15, 1732 in the King’s Theatre at the Haymarket, in London.
What happened was that Handel began to compose an opera called “Fernando, Re di Castiglia” dealing with the hostility between Dom Dinis, King of Portugal, and his son Dom Afonso and with the pacification done by Isabel of Aragon, the Queen Saint Isabel, wife of Dom Dinis. For this, someone adapted for the composer the libretto previously written by Antonio Salvi in 1707, with the title “Dionisio, Re del Portogallo”, to put on stage with music by Giacomo Antonio Perti, and which was performed in the theatre of the Medicis villa in Pratolino – Firenze on September 30, 1707. The music of Perti was lost. It’s almost certain that Handel saw this opera in Italy, when he was under the protection of Ferdinand III de’ Medici.
For reasons unknown, Handel changed the title and all the characters (but not the subject), when half of the opera was already composed.
The Portuguese representation was directed by the Handel expert, Alan Curtis and I think it was successful. I liked it very much, when I saw it in S. Carlos on February 22, 2005.
Apparently, the name “Dionisio, Re di Portogallo was used against the will of Alan Curtis, who declared to have the intention of recording the opera with the title “Fernando, Re di Castiglia”.
The main characters in the Opera are
Fernando, prince of Castiglia, Elvida’s fiancé Elvida, daughter of the King Dom Dinis (historically Dona Constança) Dinis, King of Portugal Isabel, Queen, wife of Dom Dinis Afonso, prince son of Dom Dinis and Queen Isabel Sancho, illegitimate son of Dom Dinis (historically Afonso Sanches) Altomaro, counselor of Dom Dinis (invented character).
The cast of singers was:
Fernando di Castiglia – Lawrence Zazzo – Counter-tenor Elvida – Simone Kermes – Soprano Isabel – Marianna Pizzolato – Contralto Sancho – Max Emanuel Cencic – Counter-tenor Afonso – Michele Andalò – Counter-tenor Altomaro – Vladimir Baykov – Baixo – Baritono Dinis – Stefan A. Rankl - Tenor |
Simone Kermes |
The Orchestra was Il Complesso Barocco, from Italy, directed by Alan Curtis. The mise-en-scène was by Jakob Peters-Messer.
The presentation represented the realization of an old aspiration of Alan Curtis, as can be read in this interview.
Contexto histórico:
Dom Dinis I, Rei de Portugal (Lisboa 9-10-1261 – Santarém, 7-1-1325). Filho de D. Afonso III e de D. Beatriz de Castela, subiu ao trono aos 18 anos, por morte de seu pai, em 16-2-1279.
O seu reinado distinguiu-se pela pacificação do Reino nas lutas com Castela e internamente nas disputas entre o Clero e a Nobreza e ainda pelo desenvolvimento económico.
D. Dinis casou por procuração em 11-2-1282 com D. Isabel, filha mais velha do Rei de Aragão, a Rainha Santa Isabel. Esta teve um papel muito importante como apaziguadora dos conflitos suscitados pelo Rei seu marido.
São atribuídas a D. Dinis 138 composições, que se podem ler nos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa.
O Rei está sepultado no Mosteiro de S. Dinis, em Odivelas.
Teve 2 filhos legítimos
- D. Afonso IV, que lhe sucedeu no trono e casou com D. Beatriz de Castela;
- D. Constança, que casou com o Rei Fernando IV de Castela.
e 7 ilegítimos:
- D. Afonso Sanches
- D. Pedro de Portugal, conde de Barcelos
- D. João Afonso
- D. Fernão Sanches
- D. Pedro Afonso
- D. Maria Afonso que casou com Juan Afonso de La Cerda
- outra D. Maria Afonso, que foi freira em Odivelas.
Rainha Santa Isabel, ou Isabel de Aragão, nascida em Saragoça em 1271 e falecida em Estremoz em 1336, filha de Pedro III, Rei de Aragão e de Constance von Hohenstaufen. Teve um papel preponderante como pacificadora na luta de seu marido contra o filho de ambos, D. Afonso, que se revoltou contra o pai, por causa da predilecção deste pelo filho bastardo, D. Afonso Sanches. Com a morte do marido, recolheu-se ao convento de Santa Clara, em Coimbra. Morreu em Estremoz onde se deslocara com o objectivo de reconciliar seu filho D. Afonso IV de Portugal e seu neto D. Afonso XI de Castela que haviam declarado guerra entre eles.
O Papa Leão X beatificou-a em 1516. Iniciou-se o seu processo de canonização em 1612. A canonização solene teve lugar em 1625.
D. Fernando IV, Rei de Leão e Castela (1295 – 1312), o filho mais velho de D. Sancho IV, Rei de Leão e Castela e de Maria Alfonsa, casou em Valladolid em 1302 com D. Constança de Portugal (1290 – 1313), filha legítima de D. Dinis, Rei de Portugal.
"O Verdadeiro Handel Está nas
Passagens Mais Emocionais"
PÚBLICO Sexta-feira, 18 de
Fevereiro de 2005
Ópera de Handel inspirada em D. Dinis estreia-se hoje no São Carlos. Reconstituição da versão original de "Dionisio Re di Portogallo".
Cristina Fernandes
"Dionisio Re di Portogallo" é o título do libreto de Antonio Salvi (escrito em 1707 e posto em música por Giacomo Antonio Perti) que esteve na origem de uma das óperas menos conhecidas de Handel: "Sosarme, Re di Media", estreada em Londres em 1732. A meio da composição da obra, possivelmente por razões políticas, Handel viu-se obrigado a transportar a acção (que evocava os conflitos familiares entre D. Dinis, o seu filho herdeiro, D. Afonso IV, e o seu filho bastardo D. Afonso Sanches) da Coimbra medieval para o Médio Oriente. Numa co-produção com o Theater St. Gallen (Suíça), o São Carlos estreia hoje, às 20h, uma reconstituição da hipotética versão inicial feita pelo maestro e musicólogo Alan Curtis. Será também uma das raras ocasiões em que o São Carlos apresenta ópera barroca em instrumentos originais, com a participação do agrupamento Il Complesso Barocco e um elenco especializado neste repertório.
PÚBLICO - A versão de "Dionisio Re di Portogallo" é muito diferente da de "Sosarme"?
ALAN CURTIS - Não é muito diferente, mas na prática é como se se tratasse de uma estreia, uma vez que "Sosarme" é uma das óperas menos interpretadas de Handel. Restaurámos algumas peças de recitativo acompanhado que pertenciam à versão inicial e que mais tarde foram convertidas em recitativo "secco" [apenas com baixo continuo]. Consultei os manuscritos originais na Brittish Library e usei algumas passagens, mas noutros casos também cheguei à conclusão de que Handel tinha feito muito bem em ter realizado certos cortes! Quanto às árias já se conheciam todas da versão de "Sosarme".
Como caracterizaria esta ópera no contexto do percurso criativo de Handel?
Foi escrita a seguir a "Ezio", uma ópera que não teve sucesso. Handel tentou encontrar algo que prendesse a atenção do público. Fez uma ópera mais breve e usou maior variedade musical nas árias. Algumas são muito modernas para a época. A última ária de "Sosarme" é tipicamente napolitana. Handel gostava da música de Leonardo da Vinci. É boa música mas não é necessariamente o melhor trecho da ópera. O verdadeiro Handel - aquele em que se reconhece a sua vertente germânica - está nas passagens mais profundas e mais emocionais, por exemplo na aria de Isabella "Cuor di madre e cuor di moglie".
Considera a voz de contratenor a melhor solução para recriar os papéis dos "castrati"?
Fui o primeiro a usar contratenores nestas situações. Nos anos 60, numa ópera de Cavalli ["Erismena"] usei quatro contratenores! Desta vez tive a sorte de encontrar três contratenores excelentes. Acho que em palco as coisas resultam melhor se tivermos um cantor do sexo masculino a fazer um papel masculino. Mas também não há razão para não usar mulheres. Por exemplo Marianna Pizzolato, que faz de Isabella, também poderia fazer um bom papel masculino. Tem a voz e a expressão musical certa.
Vai gravar esta ópera?
Sim, mas com o título que Handel lhe deu, "Fernando Re di Castella", uma vez que ele mudou a ênfase da personagem de Dionisio para a de Fernando, que era interpretado pelo grande "castrato" Senesino.
Actual n.º 1687, de 26-2-2005
DINIS, DIONÍSIO, FERNANDO, SOSARME
Handel regressou finalmente a S. Carlos numa encenação a preto e branco
Texto de Jorge Calado
Handel pertence com Mozart, Verdi, Wagner e Janácek, ao grande pentagrama de geniais compositores músico – dramáticos. Foram eles que inventaram as maneiras de pôr as emoções em música. Apesar disso, Handel continua a ser, entre nós, o grande desconhecido. É certo que só nos últimos vinte ou trinta anos começaram a reaparecer os cantores capazes de lhe fazer justiça. Mesmo assim, contam-se pelos dedos de uma mão – e sobram dedos – as ocasiões em que ele foi por cá visto no palco. A última foi em 1997, com o Amadigi (1715) trazido ao Trindade pela Opera Theatre Company de Dublin, na eficaz encenação de James Conway. Aguardava-se por com emoção o regresso de Handel ao S. Carlos, tanto mais que a vez derradeira – o Rinaldo (1711) de Pier Luigi Pizzi em 1991, com a Berganza – deixara marca refulgente.
Handel compôs mais de 40 óperas, incluindo alguns pastiches (fora as oratórias, quase todas elas eminentemente operáticas). Se. alguns anos atrás, o cânone das grandes se reduzia a meia dúzia, hoje sabe-se que Handel, tal como Verdi, é todo bom e interessante. Não serei eu quem porá pitafes à escolha de Sosarme (1732). Que tem ela que se recomende? A música – sempre! A concisão dramática, apesar dum número maior de personagens (7) do que o habitual. (O público londrino começava a estar cansado dos longos recitativos em italiano). A ligação original a Portugal, pois Handel fora buscar o libreto de António Salvi para Dionisio, Rè di Portogallo. A nova ópera, porém, chamar-se-ia Fernando, Rè di Castiglia, honrando assim o monarca castelhano, uma espécie de rex ex-machina cuja intervenção precipita o desmascaramento do intriguista e mau da história, Altomaro.
Durante cerca de século e meio, de 1700 a 1850, a ópera era uma forma aberta aos pruridos da censura e conveniências dos cantores. (Às vezes, ainda é). Compositores sujeitavam-se a ver o libreto alterado como quem muda de camisa, e prontificavam-se a trocar árias e a compor outras consoante os intérpretes. Coros apareciam e desapareciam conforme a fartura dos teatros. (Pelos vistos, os nossos governantes ainda julgam que é assim.) A história de Portugal, como a de qualquer outra nação, está cheia de situações operáticas. Dionísio – que é, afinal, o nosso bom Dom Dinis, poeta e lavrador – Alfonso, e outro bastardo, Sancio (além da filha, Elvida, prometida a Fernando, Rei de Castela). Julgando que Dionísio favorece Sancio, Alfonso rebela-se contra o pai e toma Coimbra. Intervêm a (Santa) Rainha Isabella e Fernando, mas a maldade é alimentada por Altomaro, avô paterno de Sancio. No fim, tudo se esclarece e Altomaro afoga-se no Mondego.
Parece que foi o Rei Jorge II (que muito tinha admirado a ópera anterior de Handel, Ezio, a ponto de assistir a todas as representações) quem insistiu na mudança de local para não ofender o seu mais velho aliado, na pessoa de Dom João V. Em Dionísio, aliás Fernando, Dom Dinis é facilmente enganado e, à falta de melhor, reage com ataques de fúria. Handel, que aprendera a lição do fracasso de Ezio (apesar do patrocínio real) aproveitou para passar alguns recitativos acompanhados a recitativos a secco. Mas é para admirar que se mantivesse a trama da luta entre o monarca e o seu herdeiro, na medida em que Jorge II tivera as suas escaramuças com o pai, como as tinha na altura com o Príncipe de Gales, seu filho. O que não está claro nos textos do programa (um deles de Alan Curtis, responsável desta produção e importante figura do renascimento handeliano) são os arranjos musicológicos a que foi necessário proceder, tanto mais que há duas versões de Sosarme (reposto em 1734).
Por cá, o público ainda está desabituado de Handel, com as suas fiadas de árias “da capo” (depois de prontas, volta tudo ao princípio ou à cabeça). E espera ansiosamente ver a rainha Santa Isabel de coroa espetada e rosas no regaço. Mas a música de Handel é intemporal e inespacial. O que interessa são os sentimentos pessoais e as relações entre homens e mulheres. Por isso se pode passar com facilidade dum real Dinis de Portugal a um inventado Sosarme de Média, algures no Médio Oriente. O que temos aqui é uma família disfuncional, como há muitas nos tempos que correm. Casais com filhos de várias mães, desentendimentos entre pais e varões, casamentos adiados, colos vários, complexos de Édipo a Freud. As emoções estão todas na música, e nenhum outro compositor demonstrou tal maestria a traduzir os sentimentos mais profundos através duma profusa variedade rítmica e tímbrica. Ajudou o notável Complesso Barocco de Alan Curtis (embora a secura do ar causasse problemas de afinação). Já tinha saudades de ouvir estas sonoridades em S. Carlos!
A encenação a preto (Portugal) e branco (Castela) de Jakob Peters-Messer é eficaz e segue a moda dos trajes modernos (figurinos de Sven Bindseil). Boa solução rotativa para a constante mudança de lugar, interior-exterior, com recantos conspiratórios e molduras abertas para o ar livre (cenários e luzes de Markus Meyer). Sosarme contou na estreia com algumas das maiores estrelas da época, entre elas o famoso “castrato” Senesino no protagonista (aqui, Fernando). Ao contrário da tendência recente doutros colegas como Christie, Minkowski, etc., Curtis favorece o uso de contratenores neste reportório (até por razões dramáticas). Lawrence Zazzo é um dos melhores contratenores da actualidade e o seu Rè di Castiglia não desapontou. De fato branco e pomba da paz, é também o geómetra esclarecido, capaz de manobrar a esfera, a pirâmide, o poliedro estrelado. “Alle sfere della gloria”, com trompas e oboés, foi muito bem vocalizada.
O que Handel requer, dada a concentração emocional, são grandes actores. Max Emanuel Cencic, um Sancio de ténis e fralda de camisa por fora das calças, foi o mais convincente. A voz é mais escura do que o habitual num contratenor, mas a agilidade é excelente (oiçam o seu disco de Cantate d’Amore, de Scarlatti). Simone Kermes (Elvida) confirmou o seu estatuto de prima donna de Handel, e o contralto de Marianna Pizzolato (Isabella) exibiu primorosos estilos vocal e dramático, cruciais à seconda donna. |
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O correcto contratenor Michele Andalò (Alfonso) e o tenor um tanto esmaecido de Stefan A. Rankl (Dionísio) compuseram o ramalhete. Só foi pena Vladimir Baykov desafinar e não estar à altura de Altomaro (os baixos, em Handel, são importantes eo papel foi escrito para o sensacional António Montagnana). Uma das glórias de Dionísio está na profusão (rara) e variedade de duetos , entre eles o sublime “Per le porte del tormento” para os dois amantes, que Handel voltaria a usar em Imeneo (1740). Sem dinheiro para contratar um coro, na estreia de Sosarme o compositor entregou as partes corais aos solistas (até Altomaro morto cantava nos bastidores). Desta vez tivemos uma realização elegante e bem merecida. Valeu a pena!
O pretexto de D. Dinis...
PÚBLICO, Segunda, 21 de Fevereiro de 2005
Cristina Fernandes
É
compreensível que na primeira apresentação em Lisboa de uma ópera de Haendel que
teve a sua génese num libreto inspirado na história de Portugal (situado no
final do reinado de D. Dinis) se procurasse recuperar essa dimensão. Mas também
não podemos perder de vista que as diferenças entre "Dionisio, Re di Portogallo"
(que se estreou na sexta-feira no São Carlos) e "Sosarme, Re di Media", o título
que consta do catálogo de Haendel, não são substanciais e que o processo é até
musicologicamente questionável. Haendel simplificou o libreto de Salvi, o nome
das personagens foi modificado e a acção transferida para a Ásia menor, a meio
da composição, possivelmente por razões políticas. Não se trata pois da estreia
de uma versão original de "Dionisio" (que não chegou a existir enquanto tal),
mas de uma tentativa de reconstituição do que poderia ter sido a obra se Haendel
tivesse mantido o projecto inicial. É certo que o enredo resulta ligeiramente
mais consistente quando associado à história europeia, que se recuperaram
passagens em recitativo da versão inicial e corrigiram pequenos aspectos da
simplificação atabalhoada do libreto, mas não há nenhuma ária que não fizesse já
parte de "Sosarme". Como não existem referências musicais explícitas ao contexto
ibérico - na prática não é muito diferente ter em palco D. Dinis ou Aliate (rei
da Lídia), Sosarme ou Fernando de Castela.
Poderia ter sido a encenação a tornar visível a ligação com Portugal, mas isso
não acontece, já que Jakob Peters-Messer preferiu centrar-se na decadência de
uma família, "que poderia ser uma família moderna"... Não quero dizer que
tivesse de ser assim (nem se pode invocar a questão da "autenticidade" já que no
século XVIII os cantores se apresentavam com trajes da sua própria época...),
mas reforçar a ideia de que a recuperação de "Dionísio" não tem consequências
tão significativas como se poderia pensar na realização concreta do espectáculo,
sendo mais um pretexto publicitário.
O que converte esta produção num acontecimento importante desta temporada (que a
direcção do São Carlos se viu obrigada a cancelar a partir de 31 de Março por
não ter garantias do Ministério da Cultura) é o facto raro de podermos assistir
a ópera barroca no São Carlos com instrumentos da época e intérpretes
especializados. Não sendo uma das óperas de Haendel dramaticamente mais
coerentes, a música é belíssima e o espectáculo funciona bem em linhas gerais,
não obstante algumas reservas.
A encenação de Peters-Messer tem algumas ideias práticas hábeis (o dispositivo
rotativo alterna interior e exterior) e momentos pontuais conseguidos (o
enquadramento da maravilhosa ária "Cuor di madre e cuor de moglie"
admiravelmente cantada por Mariana Pizzolato), mas também muitos aspectos
inconsequentes e de gosto duvidoso como a cena em que Elvida e Fernando cantam o
dueto "Per le porte del tormento". Pode-se invocar que se pretendia
ridicularizar um mundo decadente, mas denota grande falta de sensibilidade
musical. Esta é uma das páginas mais geniais de Haendel e os timbres e nuances
expressivas de Simone Kermes e Lawrence Zazzo ajustaram-se como uma luva, mas
escutar música tão sublime mergulhada num pesadelo "kitsch" é um perfeito
contrasenso.
No plano vocal, a prestação mais impressionante (a mais genuinamente "Haendeliana")
foi a de Pizzolato (com a voz e a sensibilidade ideal para o papel de Isabella),
sendo secundada pelo contratenor Lawrence Zazzo (belíssimo timbre e óptima
plasticidade vocal) e pela ágil soprano Simone Kermes, se bem que mais
superficiais do ponto de vista dramático. Destaca-se também o Sancio do
contratenor Max Emanuel Cencic. Dionísio merecia uma voz menos baça e uma
interpretação mais imponente que a do tenor Stefan Rankl, Michelle Andalò (Alfonso)
esteve num plano intermédio e Vladimir Baykov (Altomaro) revelou-se uma escolha
infeliz devido ao excessivo vibrato e a problemas de afinação e agilidade.
Quanto à prestação do Complesso Barocco e à direcção de Alan Curtis, não sendo
tão imaginativa ou arrojada como a de outros agrupamentos vocacionados para este
repertório e tendo até algumas falhas (afinação nos "soli" de violino, deslizes
nos oboés e trompas), funcionou em geral bem e evidenciou uma compreensão
estilítica competente da música de Haendel.
Hipóteses de Haendel
PÚBLICO Sábado, 12 de Fevereiro de 2005
Augusto M. Seabra
Será ainda necessário sublinhar que Haendel está longe de ser só o autor de "O Messias", a "Música Aquática" e o dito "Largo", aliás "larghetto", o "Ombra mai fu" que em "Serse" o rei canta a um salgueiro? Não o deveria ser, mas, sabe-se lá...
Entretanto, é certo, outras oratórias têm-nos surgido recorrentemente na programação - "Saul", por exemplo. E, todavia, pouco têm sido as possibilidades de apreciarmos o génio de Haendel - e sublinho o génio de Haendel - no campo concreto em que ele se manifestou, e frequentemente com imensas vicissitudes, ao longo de 36 dos seus 74 anos de vida: a ópera.
De um modo ou de outro, os seus maiores intérpretes actuais, Christopher Hogwood, John Eliot Gardiner, René Jacobs, Marc Minkowski, etc., sublinham todos esse "génio dramático".
Constate-se agora quantas vezes tivemos oportunidade de apreciar o impacto desse génio e de considerar o devido estatuto de Haendel na história da ópera, a meu ver um dos autores de primeiríssimo plano. Constate-se então e rememore-se; que me ocorra, um "Serse" pela Ópera de Leipzig, em 1977, um "Rodrigo", primeira ópera italiana, numa das edições iniciais das Jornadas de Música Antiga da Gulbenkian, em versão de concerto, as particularmente memoráveis representações do "Rinaldo", em 1991, na célebre encenação de Pier Luigi Pizzi, dessa feita com Teresa Berganza, em vez de Marilyn Horne em torno de quem a produção tinha sido originalmente concebida (e que, por coincidência, chegou a Lisboa, para um recital também no São Carlos, ainda as récitas decorriam), e a não menos memorável realização de concerto do "Giulio Cesare", dirigida por René Jacobs, na Lisboa-94 - e ainda, salvo erro, o "Amadigi", pelo Opera Group de Dublin antes da Expo-98.
Dito de outro modo, e mesmo considerando esse "Giulio Cesare" em concerto, daquelas que os anglo-saxónicos por vezes designam, entre as 36 óperas de Haendel (!), as "big six", "Rinaldo", a espantosa "trilogia" de 1724/25, "Giulio Cesare", "Tamerlano" e "Rodelinda", "Alcina" e enfim "Serse", "six" a que haverá que acrescer por consagração recente "Ariodante", pois dessas sete, quatro nem nunca foram apresentadas em Portugal!
Há meses, e a propósito de algumas novas edições, assinalei aqui o facto de que a continuidade do alheamento das programações em relações às obras dramáticas de Haendel seria tanto mais estranha, caso se prolongasse - o que, estava em crer, não sucederia, pois que actuais responsáveis de instituições públicas portuguesas tinham estado na origem de célebres produções de obras de Haendel: Paolo Pinamonti, director do São Carlos, concluíra o seu mandato no La Fenice com um "Siroe" encenado por Jorge Lavelli e dirigido por Andrea Marcon, e Anthony Wittworth-Jones, director artístico da Casa da Música, fora o programador em Glyndebourne da célebre "Theodora", encenada por Peter Sellars e dirigida por William Christie. Iríamos certamente ter notícias em breve.
A produção de "Dionisio, Re di Portogallo", que o musicólogo e maestro Alan Curtis virá agora propor no São Carlos, pode ter justificações mais ou menos óbvias de "tema nacional", com o rei Dinis, a revolta do infante Afonso, a interposição da rainha Isabel, Coimbra como cenário, etc. À falta das periodicamente propaladas, mas afinal não concretizadas, apresentações de "L'Africaine" de Meyerbeer, com Vasco da Gama a cantar "Oh Paradis!", ou do "Dom Sebastien" de Donizetti, temos pois agora, pela pena de Haendel, uma ópera de "tema nacional". Com a voga de restituições musicológicas deste tipo, ainda pode ser que a alguém ocorra propor "Luisa Guzman", que, aliás, por motivos semelhantes mas inversos daqueles pelos quais "Dionisio" não chegou a estrear-se enquanto tal, foi um libreto alternativo (1640, claro) que Verdi chegou a considerar para o caso de a censura parisiense não lhe permitir a ousadia de abordar uma revolta antifrancesa nas "Vésperas Sicilianas".
No parágrafo anterior já estão enunciadas duas considerações: que "Dionisio, Re di Portogallo" nunca chegou a estrear-se enquanto tal e que estamos perante um caso de restituição musicológica. Importa ter isto presente, porque os termos em que o São Carlos anunciou a produção, como "estreia moderna" da obra, são ambíguos e podem fazer supor que a ópera teve uma estreia histórica, mas que recentemente, digamos que em mais de dois séculos e meio, não tem sido apresentada, o que não é a realidade. Sendo mais pertinente no tocante ao programa de intenções, também não é correcto o enunciado, ora rectificado, de ser "a estreia absoluta da versão original", já que esta enquanto tal nunca chegou a estar concluída em 1732.
Vejamos pois o imbróglio, bem como a situação de Haendel à época.
Antonio Salvi, o autor do libreto original do "Dionisio, Re di Portogallo" propriamente dito, era um estimado poeta da corte dos Medici de então, duques da Toscana. Foi Perti o autor da ópera para a qual foi escrita esse libreto. Para além de Zeno e depois Metastasio, e sem ter a consagração daqueles, Salvi foi, no entanto, um libretista muito considerado, atendendo ao número de texto seus que originaram óperas de importantes compositores, como Vivaldi - "Dorilla in Tempe", "L'Adelaide", "Ginevra, Pincipessa di Scozia", "Ipermestra" ou "Scandeberg" - , Alessandro Scarlatti ou Caldara, que ambos musicaram "Arminio", tal como aliás Haendel, que a Salvi foi ainda recolher "Rodelinda", "Lotario" (novo título de "L'Adelaide"), "Berenice" e "Scipione", além de "Ginevra", a personagem titular passando a ser "Ariodante". Se não considerarmos o caso de Nicola Haym, que em regra trabalhou directamente com o compositor adaptando textos anteriores, Salvi foi mesmo o libretista a cujos textos Haendel mais recorreu, mais que aos de Metastasio.
Em 1732, estava Haendel num período difícil, na sua dupla situação de empresário e compositor. Tinha a protecção do novo Rei, Jorge II, mas longe iam os tempos da sua triunfal "conquista de Inglaterra" com o "Rinaldo" (1711), ou mesmo dos privilégios da primeira Royal Academy of Music, que falira em 1728. A segunda Academy foi-lhe outorgada, a ele e ao co-empresário Heidegger, em 1729. Já entretanto se tinha estreado com considerável sucesso a satírica "Beggar Opera" de Gay e Peppusch, e em torno de Frederico, príncipe de Gales, em litígio com o pai, organizava-se uma companhia rival, a Opera of Nobility. Nem "Lotario" nem "Partenope" foram êxitos; sucesso foi enfim "Poro", título haendeliano de um dos mais célebres libretos de Metastasio, "Alessandro nell'Indie", mas "Ezio" foi de novo um fracasso. Então surgiu "Dionisio", de resto poucas semanas antes de "Esther", o primeiro oratório inglês - situação de encruzilhada, portanto, ainda que à época os contornos não se adivinhassem.
Não se conhecem as razões por que a meio da composição de "Dionisio" Haendel optou por outro libreto. Tem sido aventado, nomeadamente pelo musicólogo Wynton Dean, grande especialista de Haendel, que a aliança política luso-britânica desaconselharia a abordagem da figura de um rei de Portugal. Embora mantendo as características gerais da intriga, a acção foi então transposta para a Antiguidade, para uma Lídia e Média imaginárias, e o título passou a ser "Sosarme", o que leva a outras considerações - é que Sosarme é o nome não da personagem correspondente a Dionisio, agora designado Haliate, mas sim à do rei de Castela, Fernando. Como refere nomeadamente Jean-François Labie na sua monumental obra sobre Haendel, e mesmo que o compositor tivesse recorrido ao libreto de Salvi, a ópera que compunha, ainda antes da mudança, era "Fernando, Re di Castiglia" - ou seja, não existe uma versão original do "Dionisio, Re di Portogallo" de que agora possa haver "estreia absoluta" ou "estreia moderna", pelo simples facto de que a ópera que Haendel planeara não tinha tal título!
Em qualquer caso, e aventando-se sempre a hipótese de ter sido a perspectiva de representação de um rei de Portugal a determinar a mudança de libreto, diga-se que a alegoria política do príncipe herdeiro revoltado contra o monarca foi, essa sim, com certeza perceptível aos espectadores - e esse é o dado politicamente surpreendente da ópera, designe-se ela por "Dionisio" ou "Sosarme".
Não sendo dramaticamente uma das melhores óperas de Haendel, "Sosarme" ainda assim está longe de ser das mais ignotas. Para que fosse razoavelmente conhecida bastavam dois factos: um, respeitante ao moderno conhecimento haendeliano, é o de ter sido uma das primeiras a ser gravada, num registo que é também célebre por ser uma das duas únicas integrais de ópera do mestre dos contra-tenores, Alfred Deller; o outro facto, que já remonta à época da estreia, é o extraordinário dueto "Per la porta del tormento" - do qual a mais recente gravação é a de Patrizia Ciofi e Joyce Donato em "Amor e gelosia", um álbum concebido e dirigido por este mesmo Alan Curtis.
Acontece contudo - e é neste ponto que ocorrem as expectativas e possíveis dúvidas - que "Dionisio, Re di Portogallo" não poderá ser tão-só a retroversão para o libreto original da ópera que nos chegou como "Sosarme". Por razões várias.
Uma "versão original" não chegou a existir enquanto tal, pois Haendel desistiu do libreto de Salvi antes de ter terminado a sua composição. Importa saber se Curtis recuperou trechos e fragmentos de que o compositor tenha prescindido em função da alteração de texto. Também importa saber como trabalhou ele sobre o "Sosarme" que conhecemos, já que essa não é exactamente a obra que acabou por se estrear em 1732, mas sim a da revisão de 1734, com diversos cortes, sobretudo nos recitativos (uma tendência constante ao longo desses anos da segunda Academia, verificando-se a particular resistência do público àqueles), e a inclusão de quatro números novos. E sobretudo ocorre um motivo maior de expectativa: sabendo-se que o autor, uma vez mudado o libreto, reorganizou os trechos já compostos, será que nesta apresentação recuperada é superada a situação flagrante de "Sosarme", que é a da inconsistência dramática de uma ópera que, todavia, inclui trechos que são dos mais belos de Haendel?
Sucede que, alheados que temos andado nas programações nacionais do moderno reconhecimento do génio dramático de Haendel, de um dos génios maiores da história da ópera, insisto, nos ocorre acidentalmente, a pretexto da legitimidade da invocação nacional - um pretexto para o São Carlos ser co-produtor financeiro da operação com o teatro suíço de St. Gallen, que é tão-só isso, embora seja indispensável -, nos ocorre acidentalmente, dizia, assistir a um gesto que necessita de uma ampla perspectivação. Esta hipótese de reconstrução surge quando acaba de se concretizar o que ainda não há muito parecia um horizonte mirífico: todas as 36 óperas de Haendel foram já gravadas!
Independentemente da avaliação da situação discográfica de cada obra e não só do prazer e satisfação que propiciam como das insuficiências que deixam ainda a descoberto (para dar um exemplo, de "Floridante" é certamente preferível os extractos que este mesmo Alan Curtis gravou com a Tafelmusik na CBC canadiana à integral da Hungaraton, ou, noutro caso, da maravilhosa "Rodelinda", a que uma Joan Sutherland tanto se dedicou, nenhuma das várias versões em disco é satisfatória, enquanto é esplendoroso o vídeo de Glyndebourne), ou da constatação de que este ora logrado registo da totalidade das óperas de Haendel só foi possível pelas variadas gravações de alguns dos títulos menos conhecidos dirigidas por Rudolf Palmer e John Ostendorf na Vox, que, contudo, isolados, têm em geral poucos motivos de recomendação, o facto é que, tendo Alan Curtis, ainda ele, gravado "Lotario", se completou o quadro - que só não é o da disponibilidade total, porque entretanto alguns títulos não só foram descatalogados, como se tornaram mesmo impossíveis de encontrar, casos de "Scipione" e "Arianna in Creta", que Christophe Rousset gravou para a efémera editora da Fnac.
Como se constata nestas páginas, a derradeira gravação que faltava, a do "Lotario", coincide com a primeira publicação de um "pasticcio" confeccionado pelo próprio Haendel, o "Oreste". A seguir-se com este autor os modos de hipótese e invocações com que tantas vezes o passado vem sendo literalmente inventado, e dado o facto de Haendel, músico pragmático e para mais empresário, ter tido como prática frequente alterar as suas obras em função de intérpretes e circunstâncias, há sempre a possibilidade de alguém vir a clamar a "estreia moderna" da obra x tal como apresentada no dia n do ano de 1700 e tal. Em qualquer caso, passou-se da realização factual do "corpus" operático de Haendel para as variantes e hipóteses. "Dionisio, Re di Portogallo" é uma hipótese que, embora apresentada de modo senão abusivo pelo menos controverso, é ainda assim historicamente sustentável e deixa-nos especialmente expectantes.