2-5-2007

 

História da Ilha da Madeira

 

Por volta de 1526, visitou a Ilha da Madeira o Conde Giulio Landi, um nobre italiano da Corte de Parma e Piacenza. Regressado a Itália, escreveu em latim uma memória do que viu a pedido do seu patrão da altura, o Cardeal Ippolito de Medici. Do manuscrito, terão sido feitas na altura várias cópias. Falecido o Cardeal em 1535, Landi recuperou o seu manuscrito. Mais tarde, por volta de 1570, um seu amigo, M. Alemanio Fini, decidiu traduzir o texto para italiano e publicá-lo, dedicando-o à Infanta Maria de Portugal, filha mais velha do infante D. Duarte. Entenderam-se o autor e tradutor para uma publicação conjunta das duas versões, a latina e a italiana, num único volume que saiu em Roma em 1574 com o título Insulæ Materiæ Historia e, na capa:

 

La descrittione de l'isola de la Madera, gia scritta ne la lingua latina, dal molto ill. signor conte Giulio Landi, et hora tradotta dal latino ne la nostra materna lingua, dal reverendo m. Alemanio Fini, ne la quale si contengono molto belle, e delettevoli narrationi; e massimamente l'agricoltura del zucchero, e li costumi de gli huomini di quel paese ... v'è posta anco la Descrittione latina del primo autore di tutte le sovradette cose, acciò possa il lettore leggere in quella lingua che sia più di gusto suo. In Piacenza : appresso Francesco Conti, 1574.

 

Giulio Landi escreveu na altura também ele uma dedicatória à mesma Infanta. A edição encontra-se em fac-simile na base da dados de História das Ilhas Atlânticas em http://www.nesos.net/ver_livro.cfm?codigo=605 .

Em 1599, é publicado em Roma um livrinho em latim com o mesmo título, indicando como autor Manuel Constantino. Nenhuma referência é feita ao Conde Giulio Landi, mas o texto é o mesmo. Como refere o Prof. Silvano Peloso, “O autor … tem o cuidado de eliminar nas páginas de Landi todos aqueles passos que caracterizam negativamente os Portugueses, ou que são incompatíveis com a sua moral religiosa, sendo talvez constrangido, como resulta do sucessivo cotejo, a usar vários expedientes para obviar às discrepâncias cronológicas derivadas da readaptação duma obra na realidade redigida 65 anos antes”. As adaptações não são muitas; em geral, é cópia pura.

Quem foi Manuel Constantino dizem-no com bastante detalhe Barbosa Machado, Nicolau António e até Franckenau nas suas obras, textos que podem ser lidos aqui.

Já no século XX, o Padre João Baptista de Afonseca decidiu traduzir do latim o plágio de Manuel Constantino, ignorando certamente a existência do original de Giulio Landi (mesmo o facsimile acima referido vem da British Library – não devem existir exemplares em Portugal). A tradução foi publicada em 1930, com o título História da Ilha da Madeira e impressa na Tipografia do Diário da Madeira. A versão (?) latina de Manuel Constantino pode ser encontrada na referida base de dados em

http://www.nesos.net/ver_livro.cfm?codigo=448

e a sua tradução em

http://www.nesos.net/ver_livro.cfm?codigo=391

Entretanto, a obra de Giulio Landi, foi objecto de duas comunicações no 1.º (1986) e 2.º (1989) Colóquio Internacional de História da Madeira.  E, em 2004, o mesmo Professor publicou a obra “Al di là delle Colonne d’Ercole. Madera e gli arcipelaghi atlantici nelle cronache italiane di viaggio dell’Età delle Scoperte.  Con la prima edizione integrale della Insulae Materiae Descriptio (c. 1534)di Giulio Landi, piacentino, 2004, Sette Città, Viterbo, ISBN   8886091761  334 pags., que estranhamente não se encontra em nenhuma biblioteca de Lisboa. 

Pareceu-me que teria interesse traduzir a versão italiana de M. Alemanio Fini, já que me faltam conhecimentos para fazer uma tradução directa da versão latina. Optei por uma versão bastante fiel ao texto original, inclusive na pontuação, para lhe manter o sabor de texto antigo, procurando apenas deixá-lo compreensível.

  

A Infanta D. Maria de Portugal (1538-1577) foi filha do Infante D. Duarte (1515-1540), por sua vez filho do Rei D. Manuel I. Em 1565, casou com Alessandro Farnese, bisneto do Papa Alexandre III e neto do Imperador Carlos V. Este foi nomeado por Filipe II de Espanha, em 1578, Governador do  Países Baixos, sob domínio espanhol, sucedendo depois a seu pai Ottavio em 1586 no ducado de Parma e Piacenza. Nessa altura, já a esposa tinha falecido. No entanto, nos 12 anos em que durou o seu casamento, integrou-se muito bem no estilo e requinte das Cortes de Itália.

  

Segundo o Prof. Silvano Peloso, que seguirei nesta nota, o Conde Giulio Landi nasceu em Piacenza, em 30 de Maio de 1498, tendo falecido em 27 de Abril de 1579. Durante algum tempo, em Roma ao serviço de Guidobaldo, duque de Urbino e dos Cardeais Alessandro Farnese e Ippolito de Medici, sendo depois encarregado do governo de algumas cidades do Estado Pontifício. Na mesma altura, ainda jovem frequentou várias cortes europeias, entre as quais a portuguesa.

Para além da “Descrição da Ilha da Madeira” publicou ainda os seguintes livros:

 

Formaggiata di Sere Stentato al serenissimo re della virtude

Stampata in Piasenza [i.e. Venezia]: per ser Grassino Formaggiaro [i.e. Gabriele Giolito De Ferrari], 1542

 

La vita di Esopo tradotta, et adornata dal signor conte Giulio Landi

In Vinegia : appresso Gabriel Giolito de Ferrari, 1545.

 

La vita di Cleopatra reina d'Egitto. Dell'illustre s. conte Giulio Landi. Con una oratione nel fine recitata nell'Academia dell'Ignoranti, in lode dell'ignoranza.

In Vinegia : Gualtiero Scoto, 1551

 

Le attioni morali dell'illust. sig. conte Giulio Landi piacentino; nelle quali, oltra la facile e spedita introduttione all'Ethica d'Aristotele, si discorre molto risolutamente intorno al duello; si regolano in esso molti abusi; si tratta del modo di far le paci; & s'ha piena cognitione del uero proceder del gentilhuomo, del caualiere, & del principe.

In Vinegia : appresso Gabriel Giolito de' Ferrari, 1564

 

Le diletteuoli fauole di Esopo e di altri eleuati ingegni. Raccolte dal conte Giulio Landi

In Venetia : appresso Giouanni Bariletto, 1569.

 

Il secondo volume de l'azzioni morali de l'illustre Signor Conte Giulio Landi, doue si tratta de le virtù intellettuali et de li buoni affetti de gl'animi humani, secondo la intelligenza aristotelica & de le medesime cose trattasi secondo la nostra disciplina cristiana; si discorre ancora soura il voluntario di Aristotele, e di contra poi soura il libero arbitrio cristiano, & in ultimo trattasi de la tripartita felicità filosofica, mondana, e cristiana, con le particolari differenze, e conuenienze de lesudette cose, fra il filosofo, e noi cristiani.

In Piacenza : appresso Francesco Conti, et Giovan Antonio de' Ferrari compagni, 1575 ([Piacenza : Francesco Conti], 1576).

 

Estes livros tiveram depois outras edições, sobretudo a sua tradução de A Vida de Esopo.

Mais ou menos na altura em que escreveu a Descrição da Ilha da Madeira, foi preso por motivos que se ignoram, tendo sido depois libertado por intercessão do Cardeal Ercole Gonzaga e de Pietro Carnesecchi, protonotário apostólico e familiar de Cosimo I. O Papa Paulo III proibiu-lhe de residir em Roma e foi exilado para a cidade de Gubbio, cujo bispo Federico Fregoso conseguirá depois o perdão papal em 1536. Após um período ao serviço de Afonso D’Avalos del Vasto, representante do Imperador Carlos V em Itália e governador de Milão, Giulio Landi retira-se para a vida privada longe da corte.

Tem-se tentado situar no tempo a visita do Conde Giulio Landi à Madeira. Como ele diz que assistiu ao casamento de D. João III com D. Catarina de Áustria, irmã do Imperador Carlos V, então quer dizer que, na data deste, 10 de Fevereiro de 1525, se encontrava em Portugal.

Por outro lado, ele diz também no texto que, na festa do Pentecostes, que foi no dia 21 de Maio (a.d. XII Kal. Iunii), estava na Madeira. Esta referência tem-se prestado a confusões, porquanto só em 1553, é que o domingo de Pentecostes, segundo o Calendário Juliano, foi no dia 21 de Maio. Possivelmente perturbado por esta divergência, o Prof. Silvano Peloso leu na versão latina “Pentecostes sexto”, ou seja sexto dia antes do Pentecostes, onde está claramente “Pentecostes festo”, isto é festa do Pentecostes. Deste modo concluiu pelo ano de 1529, data em que o Pentecostes foi a 27 de Maio.

Não está correcto. Entendo eu que o ano foi o de 1526, em que o domingo de Pentecostes foi a 20 de Maio, podendo ter-se dado uma das seguintes hipóteses:

a) Um lapso na versão para o calendário latino e em vez de XII seriam a.d. XIII kalendas Iunii (20 de Maio), tanto mais fácil, porque poderia ter confundido Maio com um mês de 30 dias;

 b) Ou então, Landi refere-se à festa de Pentecostes em geral que, na época, durava três dias, domingo, segunda e terça. Assim, 21 de Maio, seria a segunda-feira de Pentecostes, chamada também “seconda festa di Pentecoste”, por exemplo, no livro “Dizionario di erudizione storico-ecclesiastica da S. Pietro sino ai nostri giorni”, compilazione del Cavaliere Gaetano Moroni Romano, in Venezia dalla Tipografia Emiliana, 1842, vol. XVII, pag. 19, 1.ª coluna. Inicialmente, a festa do Pentecostes durava oito dias, tendo sido reduzida a três pelo Concílio de Constança (1094). A revogação da proibição de trabalhar na segunda-feira foi decretada por Pio X em 1911. Ainda hoje a segunda-feira de Pentecostes é feriado obrigatório na Alemanha, Áustria, Suiça, Bélgica, França, Holanda, Luxemburgo e mesmo em Itália, no Alto Adige.

 

N.B. Já concluída e posta online esta página, descobri que o livrinho de Giulio Landi foi já traduzido para português e publicado em "A Madeira vista por estrangeiros, 1455-1700", coordenação e notas de António Aragão, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Funchal, 1981, 420 pags.

 

Descrição

da ILHA DA MADEIRA

anteriormente escrita

em língua latina

pelo muito Ilustre Senhor

CONDE GIULIO LANDI,

e agora traduzida do latim

para a nossa língua materna

pelo REVERENDO M. ALEMANIO FINI,

e que contém muito belas e agradáveis narrativas:

sobretudo, a agricultura do Açúcar,

e os nobres exércitos cavalheirescos, e particularmente

o jogo das Canas, e o modo de lutar,

e as Touradas a pé e a Cavalo.

 

Inclui também a Descrição latina do primeiro

de todas as coisas supraditas,

a fim de que o leitor possa ler

na língua que seja mais do seu gosto

 

Em Piacenza, em casa de Francesco Conti, 1574.

  

 

À SERENÍSSIMA SENHORA, A SR.ª PRINCESA DE PIACENZA E PARMA

 

Não se admire Sereníssima Senhora se eu, de muito baixa fortuna, e de Vossa Alteza não conhecido, me tenha decidido a dar-vos um presente de uma minha débil fatiga, pois as vossa brilhantíssimas virtudes, e grandíssima humanidade de Vossa Alteza, a isso me fizeram atrever, e também incitado a executar este meu louvável desejo: para além de que, sendo eu servidor de um muito afeiçoado e reconhecido servidor do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Duque vosso sogro, e não menos do Ilustríssimo e valorosíssimo vosso Cônjuge, assim como de Vossa Alteza, o Reverendíssimo Monsenhor Di Nicastro, agora Legado de Sua Santidade junto da Sereníssima República de Veneza, o qual tendo gratíssima memória das benesses recebidas de Sua Excelência e do Ilustríssimo e Reverendíssimo Cardeal Farnese, Vosso tio; por isso mantém um insaciável desejo, de ter ocasião de poder ser agradável a Vossa Alteza e tendo Sua Senhoria Reverendíssima louvado esta minha intenção, ainda mais me decidi a dedicar a Vossa Alteza esta minha tradução da Ilha da Madeira, famoso membro do Reino da Vossa Real e Sereníssima Casa de Portugal.

Esta Ilha foi já descrita em Latim pelo Senhor Conde Giulio Landi; tal descrição é louvada como ampla, bela e não menos verdadeira; tendo ele estado lá naquela Ilha alguns meses; e em que ele (como lhe ouvi) escreveu coisas, em parte por ele vistas, e que noutra parte lhe foram contadas pelos habitantes, homens maduros e graves. E, embora esta minha tradução seja escrita num baixo e humilde estilo, mesmo assim pensei que não desagradaria a Vossa Alteza; já que ela contém variadas e belas coisas; sobretudo, a descrição do cultivo do açúcar, que é muito abundante nesta Ilha; e que não foi descrita (que eu saiba) por mais ninguém; e também porque nesta obra, faz-se honradíssima menção dos muito generosos e muito Cristãos costumes dos Reis da Vossa Casa Real. Portanto, suplico a Vossa Alteza  se digne considerar-me o mais humilde dos Vossos Servidores, e aceitar este meu pequeno presente, com a mesma boa vontade com que a moeda da pobre viúva hebreia aceitou Deus; a Ele praza (como sempre rezo) conservar felizmente Vossa Alteza; de quem reverentemente beijo a mão, etc.

 

      De Vossa Alteza

 

                                                   Humilíssimo Servidor,

 

                                                                                              Alemanio Fini

 

 

 

 

 

 

À SERENÍSSIMA SENHORA, A SR.ª PRINCESA DE PIACENZA E PARMA, minha Senhora.

 

Acontece muitas vezes, Sereníssima Senhora, que, embora um homem tome uma razoável resolução em relação a uma empresa que se lhe apresenta, todavia podem depois acontecer circunstâncias tais, que tem com boa razão de alterar a sua deliberação. Foi o que agora me aconteceu: tendo eu (já lá vão cerca de quarenta anos), como penhor da minha amável consideração para com o grande Hipólito de Medicis, Cardeal da Santa Igreja, de Ilustríssima e Reverendíssima memória, descrito em latim a Ilha da Madeira, texto com que o presenteei; tendo ele falecido precocemente, procurei que voltasse às minhas mãos o livro que lhe havia dado, que conservei até agora escondido junto de mim e que me é muito querido como coisa que era também muito cara àquele grande Senhor; pois eu tinha decidido nunca o publicar, enquanto Deus me mantivesse em vida; mas guardá-lo entre as coisas que me são mais queridas, em memória daquele alto espírito, quase divino; a quem os Céus e a natureza haviam dado tantos e tão raros dons, que parecia tivessem posto toda a sua força em formar um Senhor dotado de todas as belas qualidades: como pessoa apta e inclinada a qualquer alta e virtuosa empresa. Servindo eu aquele Senhor, parecia-me verdadeiramente reinar. Tendo eu esculpida no coração uma amorosíssima recordação dele, não pude deixar de aqui o recordar.  Voltando agora ao meu propósito, digo, Sereníssima Senhora, que, embora pela razões referidas, eu tivesse deliberado não dar à estampa, aquela minha Descrição em latim; tendo-a eu mostrado em Veneza ao Reverendo e muito virtuoso M. Alemano Fini, decidiu ele traduzi-la para linguagem comum e dedicá-la a Vossa Alteza, desejando ele fazê-la imprimir sob a Vossa protecção. Assim vi-me reflectindo para mim mesmo: Portanto, será impressa em linguagem comum a Descrição da Madeira, dedicada a tão alta Princesa, e ti que dela és vassalo, e tão afeiçoado servidor, poderás guardar escondida a versão em latim, a língua em que aquela grande Senhora tanto se deleita? E, como se eu quase falasse com o meu livro, disse: Não será de nenhum modo reprovável , que, embora eu de ti tenha feito presente àquele Senhor, que foi prelado veneradíssimo, e sobrinho de Clemente VII, óptimo e máximo Pontífice, Senhor verdadeiramente nobilíssimo, liberalíssimo, magnânimo, cheio de cortesia e de caridade, cuja alma era ornada de esplendidíssimas virtudes, agora eu faça de ti presente a uma tão alta Princesa; a qual, seja pelas qualidades virtuosas que se queira, não é inferior ao que já foi o teu Senhor, e nem a outra nenhuma digna e admirada pessoa, já que ela por nobreza de sangue vai de par com outras Rainhas; tendo nascido da Casa Real dos Sereníssimos Reis de Portugal, pelos quais tantas e tão magnânimas empresas foram levadas a cabo para a exaltação do nome de Jesus Cristo; que foi filha do alto infante D. Duarte, irmão carnal do Sereníssimo D. João, Rei de Portugal, de quem é sobrinha: prima direita do mui Católico Rei das Espanhas, D. Filipe de Áustria; igualmente prima do Imperador Maximiliano II e da Imperatriz Maria: que nobreza de sangue pode ser superior? A isto se junta o grandíssimo esplendor de tantas e tantas virtudes da sua alma. Pois que, no que toca à piedade e devoção ao Senhor, ela está a par de qualquer homem ou mulher religioso e Santo, observando as Santas e Evangélicas leis; amicíssima dos pobres, toda inflamada de caridade, Senhora liberal e generosa, tanto quanto exigem os tempos e as ocasiões. Ora, quanto ela seja humana, benigna e misericordiosa, vê-se manifestamente quando, embora com muita amabilidade e graça de boa vontade, pede ao Ilustríssimo e Excelentíssimo seu sogro pelos pobres encarcerados, sem ofensa nenhuma da justiça; por isso, ela é por todos os seus povos e vassalos meritoriamente amada e reverenciada. E para abreviar os louvores a dar-lhe, já que para os explicar a todos, precisaria de muito tempo, e um texto muito longo, ela é em todas as suas acções discretíssima e prudentíssima, e muito guarnecida de todas as virtudes morais e também das intelectuais. Por isso quis o Senhor Deus, para fazer um casal raro de duas virtuosíssimas pessoas, acompanhá-la com o Ilustríssimo e Excelentíssimo Príncipe de Piacenza e de Parma, sobrinho do Rei Filipe: de quem a força singular e o alto valor, nesta sua jovem idade, demonstrados na batalha naval contra os inimigos de Jesus Cristo bendito, nosso Salvador, se tornou claro e famoso para o mundo. Daí que o óptimo e máximo Pontífice Pio V, lhe manifestasse a sua gratidão com muita honra, dos seus ilustres feitos neste conflito. Nele vive a verdadeira semelhança das belas e claras qualidades do Ilustríssimo e Excelentíssimo Duque, seu pai e se vê também a viva imagem das muitas e grandes virtudes da sua mãe Sereníssima, Madame Margarida de Áustria, irmã do Rei Filipe, de incomparável valor, cujo justo e prudentíssimo governo é hoje por toda a Magna Bassa não só comentado com amorosíssima memória; mas também desejado com quentes lágrimas e infinitos suspiros. Por isso, posso verdadeiramente concluir que eu não poderia presentear-te a Senhora, ou a homem de nobreza, ou de maior virtude; porém far-te-ia não pequena honra, se aquela tão nobre e tão virtuosa Princesa se dignasse receber-te; pelo que me decido a presentear-te a Sua Alteza; nem poderás duvidar que ela benignamente não te aceite; se alguma tua inépcia, ou ignorância não te prejudicasse, e não te retraísse da sua grave e humaníssima presença.

Discorrendo, Sereníssima Senhora, este meu discurso entre mim mesmo e quase com o meu livro, e as vossas nobilíssimas e divinas qualidades contemplando, de modo a que mais facilmente eu pudesse animar-me e decidir-me e fazer-vos dom desta minha Descrição em latim, aqui na última parte impressa: de modo a que Vossa Alteza possa (se lhe agradar) apreciar uma e outra, tendo confiança que ela se dignasse pela sua grande humanidade aceitá-la; vindo sobretudo de um ânimo sincero e afeiçoadíssimo a Vossa Alteza, a quem reverentemente beijo a mão, rezando sempre a Deus Nosso Senhor pela Vossa conservação, e do Ilustríssimo e Excelentíssimo Príncipe vosso consorte, e pelos Vossos dilectíssimos Filhos, que sua Majestade Divina tenha sempre benzidos na Sua Santa protecção.

 

      De Vossa Alteza

 

                                      fiel Vassalo e afeiçoadíssimo Servidor

 

                                                                                                       Giulio Landi.

 

 

 

 

DESCRIÇÃO

da Ilha da Madeira, escrita em latim

pelo Muito Ilustre Senhor Conde Giulio Landi,

e agora traduzida por M. Alemanio Fini

 

Lá para o Poente do Mar Oceano, fica uma Ilha chamada vulgarmente Madeira, que não era conhecida dos escritores antigos; e, fora alguns modernos que apenas mencionam o nome, não há Geógrafo nenhum (que eu saiba) que sobre ela tenha escrito uma única palavra. Esta Ilha fica afastada cerca de 720 milhas da terra firme da Província de Portugal e é o território mais vizinho, que esteja do lado da Europa. Reconhece por seu Senhor o Rei de Portugal, porque foi primeiro descoberta quando reinava sobre os portugueses o Rei D. João II, filho de Afonso V, por um certo francês chamado Machin, que primeiramente a descobriu. De facto, navegando este por motivo de comércio das partes setentrionais para levante, tendo-lhe saído uma grandíssima sorte, foi obrigado a pôr-se à mercê dos ventos. De maneira que, longe de qualquer pensamento seu, veio ter a esta ilha; na qual não procurou muito, quando lá chegou, não fazendo o reconhecimento do lugar. Como não se fizesse logo calmaria, ele, desejoso de prosseguir viagem, pôs-se a navegar. E, pouco depois, chegou ao Cabo de S. Vicente. Daí, partindo para a Ilha do Cálice, chamada Gades pelos antigos, encontrou uma armada de Mouros, por quem foi feito prisioneiro e conduzido para África. Na altura, guerreavam continuamente os portugueses contra os africanos, por causa dos confins do Império, e também pela religião, e tinham por costume entre eles resgatar os prisioneiros, vez à vez. Por isso, Machin escreveu ao Rei João, pedindo-lhe ardentemente que, pela liberalidade e singular piedade, que ele costumava ter para com todos os prisioneiros cristãos, quisesse libertá-lo da sua prisão. E uma vez que Sua Majestade o fizesse, ser-lhe-ia retribuída muita gratidão de um tão grande benefício. E disse que lhe mostraria uma bela e rica Ilha, até ali desconhecida, onde ele há pouco tinha estado arrastado pelos ventos. Prometia-lhe ainda que aquela Ilha trar-lhe-ia honra e grandíssimo proveito. Recebidas as cartas de Machin, o Rei reuniu imediatamente o seu Conselho, a quem tudo expôs. Naqueles tempos, as coisas dos portugueses não eram largas, mas estreitas e pobres; de maneira que, no respeitante ao número de pessoas, e à glória da guerra, parecia ao Rei e a muitos nobres do País, ter confins demasiado curtos e riquezas diminutas. Na verdade, deve dizer-se (como eu ouvi a algumas pessoas de idade e de crédito, quando estava em Portugal), que, no início, aqueles Reis tinham tão poucas receitas daquele Reino, que a custo podiam comprar vestes Reais e por isso vestiam panos. E então, para prover à dignidade do Rei, foi ordenado que coligissem dinheiros, um tanto por cabeça, para comprar vestes preciosas e de púrpura; para que ele as vestisse pelo menos nos dias festivos. Outros ao contrário diziam (o que me parece mais verosímil) que, embora as receitas daquele Reino fossem pequenas, não eram no entanto tão diminutas, que os Reis não tivessem meios de se vestirem ricamente, e conforme se exige de um Rei. Mas porque naqueles tempos, os Reis nenhuma coisa tinham mais a peito do que gastar os seus dinheiros em sustentar as guerras, e nas despesas que se faziam para engrandecer o Reino e a religião cristã, por isso não se interessavam por fatos sumptuosos, nem por ricos ornamentos, assim como pouco interesse tinham em estar rodeados de muita ou pouca fidalguia. E diziam-me ainda que, querendo o Rei deslocar-se de Almeirim para Lisboa, os residentes de Almeirim acompanhavam-no até metade do caminho, onde depois se encontravam os de Lisboa, que o conduziam à Cidade; pois, de outro modo, não poderia fazer aquela viagem segundo o que convinha à sua dignidade, tão pequeno era o número dos oficiais e dos cortesãos que o acompanhavam. Por estas razões, o Rei e todos os portugueses desejavam muito engrandecer o Reino e enriquecer. E assim foi por decisão unânime ordenado, que logo se mandasse dinheiro para África, para resgatar o Machin, e não se demorou muito a fazer isso. Libertado o Machin da prisão, veio logo para Lisboa, e depois de agradecer muito ao Rei, deu-lhe minuciosa informação da Ilha. O Rei mandou logo aparelhar uma armada e disso encarregou o Infante D. Henrique, seu irmão; e que ele fosse com Machin reconhecer o lugar. Entrado o Infante com vento favorável em alto Mar, em virtude de Machin não ter acertado de princípio com o sítio da Ilha, e não sabendo bem sob que graus do Céu ela estivesse, andou vários dias errando por aqui e por ali. Finalmente, ou por acaso, ou por vontade divina, mais do que por conhecimento, pôde ele na viagem descobrir a desejada Terra, em que desembarcaram com grande alegria todos os navegantes. Então, tendo primeiro invocado o nome de Deus, tirou Machin alguns barquitos e começou com alguns companheiros seus a rever minuciosamente a Ilha, para ver que gente a habitava, quais fossem os seus costumes e o que produzia aquela terra. Mas tendo eles procurado grande parte da Ilha, não encontraram mais do que bosques de árvores altíssimas e alguns pombos selvagens; de modo que parecia haver mais aparência de floresta virgem que outra coisa. Assim aconteceu que, segundo a língua espanhola, a Ilha fosse chamada Madera, que quer dizer apenas lenha. Conhecida depois a bondade dos ares, a amenidade do sítio, a comodidade das águas e que aquele solo seria por natureza apto a produzir toda a espécie de frutos, voltou Machin ao mesmo lugar onde tinha primeiro desembarcado, lugar quer até hoje mantém nome do Condottiere; por isso, em português é chamado Machico. Então parou por ali com ele o Infante, já que era sítio a jeito para os navios, e com abundância de água doce, e começou-se a construir casas de madeira; mas, porque era tanta a espessura das árvores, que impediam que ali se habitasse, portanto, a uma distância de vinte milhas, incendiaram a selva, a qual, ardendo por seis meses, obrigou os primeiros habitantes a deixar a Ilha e a embarcar nos navios. Com este incêndio, a terra tornou-se não só mais fácil para ser cultivada, mas também mais rica e fértil. Enquanto se faziam estas coisas, o Infante Henrique regressou a Lisboa, para reportar ao Rei tudo o que tinha acontecido, e para que se enviassem para ali artesãos de toda a espécie, e grande quantidade de roupas e de toda a espécie de instrumentos; pois ele esperava, que não ficaria desiludido da opinião que já se tinha feito daquela Ilha. Por isso, o Rei, para não faltar em coisa nenhuma, nem a si, nem ao Infante, arranjando várias grandes naves, fê-las carregar com tudo o que o irmão lhe tinha pedido. E para mais facilmente pudessem ir para lá pessoas para aí habitar, anunciou-se que fosse lícito a qualquer pessoa navegar para a Ilha da Madeira; e que àqueles que para ali fossem, se lhes concedesse tanto terreno, quanto cada um fosse apto para trabalhar. Aconteceu, porém, que foram para lá tantas pessoas, que depois foi proibido que alguém pudesse ir para lá sem licença expressa do Rei; e cresceu em pouco tempo o número de habitantes, tanto que, no espaço de cinco anos, ali se edificou uma Cidade e mais duas localidades.

Até aqui, se disse resumidamente como se começou a navegar para a Ilha da Madeira, quem foi o descobridor; e depois de que modo começou a aumentar. É tempo de ver o sítio, as Terras, os frutos e igualmente os habitantes.

Fica a Ilha da Madeira (como já se disse) no Mar Oceano para poente, distante 32 º da linha do Equinócio, ao Pólo Ártico (espaço que é chamado por muitos a largura do Céu); de poente para levante, está a 2 graus, sobre o primeiro Meridiano descrito por Ptolomeu e este espaço é por alguns chamado o comprimento do Céu. A Ilha tem o seu aspecto virado para o meio dia, e é mais comprida que larga e a sua largura vai crescendo à vista de um Monte altíssimo; distando do norte ao sul cerca de vinte milhas; o comprimento depois de levante para poente é de cerca de setenta milhas. O circuito de toda a Ilha, deve ser à volta de 140 milhas. A parte que está virada para sul, é muito habitada.  Pelo contrário, na parte virada para norte tem poucos habitantes, por o ar ser pouco temperado e ser fria por causa do vento boreal, que aí reina; e também por não ter porto para amarrar os navios, por causa de pedras e rochas que aí se encontram.

Esta ilha é tanto mais maravilhosa, porque, em tão pequeno espaço de terra e montanhosa, há grande multidão de pessoas e de edifícios; pois na verdade (no que respeita à natureza do lugar) é grandíssima. Pois na parte que vira para sul, há uma Cidade nobilíssima, com seis povoações colocadas ao longo do mar, e há também um grande número de Vilas. Encontra-se primeiramente para levante  sobre um promontório, a povoação chamada Machico, tornada famosa, seja pelos edifícios ali construídos, seja pelo nome de Machin, de quem teve o nome; e pela sua morte pois foi aí que ele terminou a sua vida. É esta povoação bastante grande e agradável onde, em vez dos barracões, que ao princípio ali foram fabricados, agora vêem-se ali habitações bastante cómodas, feitas em pedra. Aqui surgem claríssimas nascentes; e há um grande número de jardins muito amenos. Em seguida, situado a vinte milhas, vê-se o Castelo de Santa Cruz, assim chamado, porque (como dizem os habitantes) foi iniciado no dia em que se celebra a solenidade da Cruz. É esta terra maior, mais bela, e mais abundante em tudo que a primeira, e pode-se dizer que ali é quase como uma feira, onde comodamente se podem fazer todos os negócios.

Depois desta terra, a cerca de quinze milhas, está a cidade chamada Funchal, pela grande quantidade de funcho que no princípio aí encontraram, nascido naturalmente; os portugueses chamam funcho ao finocchio. Estende-se esta cidade ao longo da costa onde existem, em jeito de duas línguas, dois pequenos promontórios, que se estendem um pouco Mar dentro, e que rodeiam a cidade, de maneira que se apresenta a quem observa, como uma parte de um semi-círculo. E a sua largura não é nem metade do seu comprimento. Está virada para sul e para levante; e por estar colocada ao longo da costa, e algo inclinada, manda todos os detritos para o Mar. Donde resulta que é ampla e limpa. E ao mesmo tempo tem muitas construções, quer privadas, quer públicas, e abunda naquelas coisas que são necessárias à vida e ao enfeite de uma Cidade. Aqui vêm muitas vezes mercadores de países longínquos, de Itália, da França, da Flandres, de Inglaterra e da Irlanda; os quais trazem as coisas destinadas aos da Ilha; e a seguir levam aquelas coisas que a Ilha produz, como açúcares e vinhos, por disso ali haver grande abundância. Nem na Cidade, nem em toda a Ilha, há porto algum: todavia conseguem-se prender bem as naves com a âncora, por ser boa a praia. É bem verdade que, quando reinam certos ventos meridionais, ficam em grande perigo. Quando é necessário entrar no alto Mar, à discrição da sorte, ou se retiram de costas para a Ilha. Correm pela cidade algumas ribeiras, que vêm das colinas da Ilha. E assim acontece que com muita facilidade poder-se-ia conduzir a água em tubos até ao cimo das casas. Há uma belíssima fonte no litoral, de água doce, de que se costumam servir os habitantes da Cidade.

Depois da Cidade, há uma Terra chamada na sua língua, Câmara de Lobos, o que quer dizer Camera de lupi. Esta é uma escarpa junto do Mar, cujas costas fazem um Vale, que, porque já tinha muitas árvores, vergônteas e espinhos, parecia que fosse realmente lugar para os lobos; a verdade é que nem um existe na Ilha. Foi por isso que chamaram àquela Terra, Câmara de Lobos; mas houve alguns que querem que o lugar assim seja chamado porque ali se encontraram muitos lobos marinhos, no côncavo de um rochedo. É esta Terra a mais pequena de todas as outras, e tem a forma de uma Aldeia e, na sua entrada, há um pequeno golfo, a servir de porto.

Depois, a vinte milhas, há a terra vulgarmente chamada Ribeira Brava, o que quer dizer “rápida torrente”; isto porque corre no seu interior um rio, o qual no tempo das chuvas corre com tanto ímpeto, que muitas vezes arruína as casas.

Encontra-se depois a quinta Terra, chamada pelos habitantes Ponta do Sol, isto é, promontório do sol; isto porque há uma certa língua de terra que entra tanto Mar dentro, que é a última a perder a vista do Sol quando ele se põe.

Vê-se por fim a sexta Terra, chamada Calheta, pela grande abundância de pedras de guerra que ali há, chamadas pelos portugueses calhaus.

Depois, nas costas da Ilha, isto é, na parte virada para Norte, há muitas aldeias, onde estão apenas aldeões e pastores. E parece de facto que esta parte da Ilha tivesse sido feita pela natureza tão selvagem para proveito e deleite dos habitantes; pois aí se apascentam os rebanhos e daí se tiram as coisas que são necessárias, seja para construir as naves, seja para cozer os Açúcares.  Coisas que, se se tivessem de importar, dariam grandíssima despesa e só a custo se poderiam ter. É esta parte não menos deleitosa, que útil; porque as praias e os bosques muitas vezes trazem grandíssimo prazer. Aqui costumam ir os habitantes a toda a hora, quando têm vontade de ir ao porto, ou de beber leite.

Além disso, coisa não menos maravilhosa, que agradável, é que na Ilha há sempre Primavera e sempre Inverno; já que o cimo daquela parte que é virada para norte, é sempre friíssima, devido à altura da Ilha. E na parte inferior, virada para sul, que é muito habitada (como se descreveu) sente-se doce Primavera nos tempos do Inverno. E embora esta parte seja no Verão um tanto quente, no entanto, vai-a refrescando um vento agradável que sopra do cimo da Ilha. Mas, no meio da Ilha, onde os Madeirenses costumam ter as suas casas e quintas, gozam a todo o tempo de um ar muito temperado.

Já que até aqui, se falou da natureza de toda a Ilha e dos seus lugares, resta-nos escrever sobre todas as coisas que ela por si, ou pela sua natureza, ou pelo trabalho dos homens, costuma produzir; e nisso é verdadeiramente maravilhosa. Mesmo se não é muito grande, produz no entanto frutos de toda a espécie e em tanta abundância que chegam para a vida dos habitantes. Aqui colhe-se trigo melhor que qualquer outro que se possa importar, o que claramente se conhece pelo pão, que ali se faz. A Ilha produzi-lo-ia em grande quantidade, se lá se semeasse. Mas a cupidez das riquezas fez com que os habitantes, cuidando pouco de semear trigo, dedicam-se só a fabricar açúcares, já que destes tiram maior lucro. Por isso acontece que na Ilha, apenas se colhe grão em seis meses; mas não há carestia de cereal, porque é trazido com abundância das ilhas vizinhas. Há, porém, tanta quantidade de açúcar, que em cada ano se costumam recolher duzentas mil arrobas. Nos portugueses, esta é uma espécie de peso, que corresponde a 32 libras. Este açúcar é o mais duro, o mais branco e mais agradável ao gosto do que outro qualquer; o Rei cobra para si um direito igual à quarta parte.

O açúcar faz-se desta maneira: Apanham-se primeiro as canas e estendem-se por ordem em sulcos; cobrem-nas de terra e regam-nas com água muitas vezes, de modo a que a terra por cima dos sulcos não fique nunca seca, mas esteja sempre húmida. E, por força do sol, cada nó produz a sua cana e crescem pouco a pouco em volta, quatro braças (1 braça = cerca de 55 cm ou 7/8 de um côvado). No princípio, cresciam até oito e dez braças; isto acontecia, porque o terreno laborado desde há pouco, tinha mais força para produzir. Agora, ou seja pela mudança do tempo, ou por não deixarem repousar o terreno, ou por este ter perdido a espessura, e pelo contínuo correr das águas, seja de torrentes rápidas, seja da água das chuvas, as quais, por ser a Ilha à maneira de um Monte, levam necessariamente a terra fértil para o Mar, apenas produz canas de quatro braças. Amadurecem ao fim de dois anos e, depois de maduras, cortam-nas no tempo da Primavera, junto ao pé. Estes, germinando de novo, produzem no ano seguinte outras canas, as quais não resultam tão altas, mas têm uma braça a menos, e estas amadurecem no prazo de um ano. Cortadas estas segundas, arrancam totalmente as plantas, para recolocar a seu tempo outras canas, como se disse. Quando amadurecem, são muitas vezes danificadas pelos ratos. Por isso os escravos são muito ocupados a caçar estes ratos e a matá-los. Depois de os apanharem, costumam pendurá-los e assim os deixam por muito tempo. Fazem isto os escravos para demonstrar o seu trabalho aos patrões; estes louvam-nos tanto mais, quanto maior for o número de ratos pendurados. Tendo eu um dia ido passear com o Senhor D. Manuel Noronha, gentil homem honrado, e rico, a uma sua quinta, vi pendurados numa longa fileira estes ratos, a qual tinha mais de cem passos de comprimento. Não podendo eu deixar de me rir, disse-me o Senhor D. Manuel: “Isto não é caso para rir, Senhor, pois este trabalho dá-me cada ano um lucro superior a quinhentos escudos. Há duas coisas que causam muito dano às canas de açúcar: uma, são os ratos; a outra, certos vermes que roem o pé das canas. Mas isto acontece raramente e só na altura de muito grandes nevoeiros, que porém raríssimas vezes se vêem na Ilha, e não há maneira de combater este prejuízo. Ao outro, há o remédio de que vós agora vos ris; e nós muito o louvamos para estimular a diligência dos escravos, que cuidam das nossas propriedades.”

Mas voltemos a falar do modo como se faz o açúcar. Os lugares, onde com muito grande diligência e arte, se faz o açúcar, são as grandes quintas. O modo é o seguinte: Primeiro, trazidas para os referidos lugares as canas cortadas, põem-nas sob uma mó movida a água, que, premindo e destroçando as canas, faz sair delas todo o seu sumo. Aqui há cinco recipientes, postos por ordem, a cada um dos quais se passa por uma conduta o sumo, que sai das canas. Conduzido ao primeiro recipiente, deixa-se ferver até certo limite de tempo e de cozedura; depois, passando de mão em mão para os outros recipientes, com fogo brando, dá-se-lhe com arte a cozedura; até que ele fique tão espesso que, colocado nas formas de terra, se possa endurecer. A espuma que se faz ao cozer o açúcar, repõe-se nos tonéis, excepto a que sai da primeira cozedura, que se deita fora; mas a outra, que se conserva, é semelhante ao mel, embora um pouco mais negra e líquida; e é chamada pelos da terra, melaço. A este não dão uso os Madeirenses, senão para engordar os cavalos, misturando-o com a farinha e com a palha. Os mercadores Franceses, Flamengos e Ingleses, apanham-no para o levar para os seus países, onde se utiliza depois em vez do mel. Os da Ilha comem com gosto em jejum canas maduras e frescas; e dizem que faz bem para ter o corpo saudável, para refrescar o fígado, para matar a sede e para branquear os dentes. Enfim, esta é uma coisa suavíssima e não tem nada a ver com as canas de açúcar, que se vendem em Roma, trazidas do Reino e da Sicília. As mulheres de parto costumam fazer umas sopas com o pão primeiro torrado e depois posto na última cozedura do sumo das canas, deitando-lhe por cima as gemas de ovo: e dizem que este alimento faz reaver as forças perdidas, conforta o estômago e os intestinos, e compõe a pouco e pouco o ventre. E com isto basta de falar no açúcar, coisas, porém, não descritas (que eu saiba) por nenhum escritor.

Produz igualmente esta Ilha grande quantidade de vinho, de toda a espécie; mas na sua maior parte são vinhos amargos e brancos e semelhantes aos que em Roma chamam Gregos. Produz também Malvasia, mas não em muita quantidade; e é considerado melhor que o de Candia. E porque os habitantes da Ilha não costumam beber vinho, vendem-no a Mercadores; por estes é depois levado para a Irlanda e para outros países setentrionais.

Há também grande abundância de maçãs, de peras, e de frutos de toda a espécie; mas entre todos os outros, há pêssegos, figos e melões excelentes. Ali todos os frutos amadurecem antes que em Itália. Eu na festa de Pentecostes, que foi a 21 de Maio (deve ser 20-5-1526), comi lá uvas maduras. Os limões, as laranjas e os marmelos são tão bons e tão abundantes, que não há pessoa (se não for muito avarenta) que não os tenha para vender; de maneira que qualquer pessoa pode à vontade ir apanhá-los das próprias árvores.

Produz esta Ilha árvores selvagens de Cedros muito altos e grossos, que emanam um odor, que não se consegue sentir coisa mais suave, nem mais agradável. Estas árvores de cedros nascem naturalmente na parte alta da Ilha; e costumam os nobres da terra fazer as mesas, as camas, as caixas e as cadeiras de madeira de cedro. O Cardeal Georges d’Amboise, que já foi Legado para toda a França, mandou trazer da Madeira para Rouen muitas tábuas de cedro, para ornamentar de volta os pórticos e as paredes de alguns quartos e as salas do Palácio, que ele tinha mandado construir junto de Santo Odoveu (Château de Gaillon). E uma coisa boa é que, em toda a Ilha, não há nenhum animal venenoso, nem nocivo de qualquer forma, nem espantoso de se ver. Ali não se vêem lobos, nem ursos, nem outras feras que causem medo. Há apenas grande abundância de coelhos, e não muitas lebres; e codornizes e pombos selvagens, sem fim. Há uma enorme falta de faisões. Há duas espécies de animaizinhos sórdidos: ratos e pulgas. Os ratos foram levados para lá pelas naves dos forasteiros; as pulgas foram produzidas pela própria terra, a qual, sendo por sua natureza seca, logo que fica molhada, produz pulgas sem fim. Alguns juntam-lhe uma terceira espécie, que é a das mulheres do mundo. Por isso é dito um provérbio pelos portugueses, que os Madeirenses têm abundância de três coisas, entre outras, de pulgas, de ratos e de meretrizes.

O Mar da Madeira produz muitos peixes e bons: mas ainda há alguns monstruosos. Havia entre outros um certo peixe chamado Canícula, o qual é muito inimigo do homem. Sabe-se aqui que ele procura sempre atacar quem anda a nadar. Dois jovens, aflitos com o calor, foram um dia a um certo recife não muito longe da ilha. Ali se despiram e começaram ambos a nadar. Depois de ter nadado um bocado, um deles, já cansado, saiu fora da água e, sentando-se num penedo, estava a observar o companheiro. E enquanto estava a vê-lo, deu conta que o jovem se cansava muito; e já tinha ido para debaixo de água; parecendo que tal acontecesse, ou pelo cansaço, ou pela fraqueza dos nervos, ocasionada talvez pelo frio da água e que por isso não pudesse nadar para terra. Então ele lançou-se de novo à água para o ajudar. Chegando perto, e vendo que a água estava tingida de sangue, suspeitou que fosse aquilo que era verdadeiramente. Por isso voltou logo ao recife, entrou num barco e indo socorrer o jovem tirou-o para fora, quando estava já a morrer; e viu que tinha o ventre e os intestinos retalhados, e destruídos por aquele peixe.

Mas até aqui, já dissemos bastante das coisas que produz a Ilha da Madeira. Trataremos agora da natureza e dos costumes dos habitantes.

 

Os Madeirenses quase todos descendem de portugueses, e por isso a sua língua é a portuguesa. Para os espanhóis, esta língua é rude e destituída de toda a polidez. Agradável porém, porque facilmente leva as pessoas a rirem-se. E assim costumam os espanhóis, ao recitar as suas comédias, introduzir algum português a discorrer, para fazer rir os assistentes. Como também em França, se servem dos de Amiens ou de Arras, a quem os franceses chamam picards. E como são entre nós os italianos, os lombardos, especialmente os bergamascos, cuja fala ( em relação com a toscana e a romana, a qual é toda graciosa e gentil) costuma ser rude e a puxar para o ridículo. Uma coisa me pareceu maravilhosa : que os portugueses, que estão tão longe de Itália e os mais afastados de todos os outros hispanos, se adaptem muito nas palavras com os Italianos. Isto não pode deixar de ter a sua origem no facto de o País estar tão afastado, que não foram lá parar tantas gentes estrangeiras, que costumam contribuir para corromper a língua materna.

Gabam-se os portugueses de ser só eles os verdadeiros hispanos, e dizem que as suas cadeiras nunca foram ocupadas por bárbaros; e de tal modo que muitos expulsos da outras espanhas se refugiaram em Portugal, como porto seguríssimo. De maneira que esta língua, com os vocábulos e nomes que lhes deixaram as Colónias dos Romanos, permaneceu quase intacta. A linguagem dos Espanhóis e dos Béticos está muito corrompida, mas ainda mais a dos Aragoneses; mais ainda a dos que são vizinhos do Reino de França; porque esses lugares foram possuídos por muitas e variadas nações. E, embora os portugueses tenham uma certa aspereza no falar, usam porém palavras muito expressivas. Um tolo ou rude que os outros hispanos chamam néscio, dizem eles que é parvo (pequeno, em latim). E bem, porque os pequeninos, devido à sua pouca idade, costumam ser simples e pouco menos que maluquinhos. A um temerário, cruel e celerado, chamam Sandeu, quase sem Deus. E em verdade ele é mesmo assim, pois Deus está longíssimo das pessoas feitas assim. Poderia eu aduzir muitas outras palavras, que para abreviar, deixo de lado, e volto a falar dos costumes destes habitantes.

Os Madeirenses observam as mesmas leis e ordens que são observadas pelos portugueses. Por isso, aquilo que se disser de uns, devia entender-se também como referindo-se aos outros. Como magistrados supremos junto deles, têm dois personagens a quem chamam Capitães. A estes e aos seus sucessores, foi ao princípio dado o encargo pelo Rei, de governar toda a Ilha em nome de Sua Majestade. O governo está dividido em duas partes: um governa a Cidade até à Calheta; e o outro a parte que vai da Cidade até ao Machico. E têm ambos o poder de decidir sumariamente, e têm autoridade para julgar sobre a morte e a vida; mas cada um deles não se deve intrometer na jurisdição do outro. Há outros magistrados, mas de menor autoridade; como os que cuidam das coisas atinentes à Cidade; os que cobram os impostos; e os que tomam conhecimento dos litígios e os dirimem em Tribunal. É verdade que se pode recorrer para o Rei das decisões de todos estes magistrados. Penso que isto seja feito para que o povo saiba que eles têm por superior o Rei de Portugal; isto para que ninguém se deixe vir ao pensamento de ocupar o domínio da Ilha. Acontece assim que os Madeirenses e os Portugueses, em geral, amam e reverenciam incrivelmente o seu Rei e têm tal opinião dele, que crêem que ele não poderá fazer algo que não seja bom e justo; e que ele não poderá de maneira nenhuma ser enganado; mas observam o que ele faz e ordena, como coisa feita e ordenada por Deus. E costumam dizer, que, se Deus tivesse vontade de abandonar o governo do Mundo, e de todas estas coisas inferiores, Ele poria no seu lugar o Rei de Portugal, pois assim o estimam como o mais sábio, o mais célebre e o mais poderoso Senhor de todo o Mundo. E, além disso, consideram todos os outros príncipes Cristãos, inferiores ao seu Rei; pois vêem que, posta de lado a religião Cristã, não cessam de se guerrear uns aos outros. Louvam sobremaneira o seu  Rei, por ele ter subjugado tantas províncias e reinos; por ele guerrear continuamente os infiéis, lhes pôr o freio e os reduzir ao culto de Deus; e que pelo seu valor, o conhecimento do Evangelho penetre os últimos confins da África e da Ásia; e pensam que o Rei de Portugal seja de longe superior a qualquer outro Rei; não menos que se ele fosse o Rei dos Reis. Assim gabam-se de ser eles os primeiros entre todas as outras nações. O que surge por acaso; porque estando eles (pode dizer-se) lá no extremo da Europa, estão tão longe do contacto com os homens, que não experimentaram quanto seja o saber e o valor dos outros. E só têm comércio com pessoas que em si não têm um mínimo de gentileza, de civilidade; nem sequer de prudência, nem da gestão das coisas privadas ou públicas, privadas da disciplina militar, e da paz, como são os Negros, e os outros povos que habitam lá, no extremo da África; e os Indianos, em especial os dos países marítimos; e todos os do Novo Mundo, os quais se pode dizer que vivem como as feras. São, porém os Madeirenses e os portugueses por natureza engenhosos, vivos, aptos a tolerar toda a espécie de fadiga, e moderados no comer. Beber vinho é para eles (excepto para os idosos) coisa vergonhosa, sobretudo para os jovens e para as mulheres. A razão é que eles consideram que as que bebem vinho são também mulheres de pouca honestidade. Os jovens abstêm-se de beber vinho , para não ofender as senhoras, às quais muito desagrada o cheiro do vinho.

São os Madeirenses e os portugueses muito inclinados aos amores, e à sensualidade: e assim acontece que lhes agrada tanto a música, que poucos são aqueles, que não procuram saber tocar algum instrumento, porque crêem que o som e o canto valem muito para conquistarem os seus amores. Cantam também com muita gravidade e afecto. Os apaixonados amam com tanto ardor, que muitas vezes cometem loucuras. E, para que as damas que estão na Corte mais facilmente se possam casar, é permitido aos jovens declarar-se publicamente, conversar com elas, cortejá-las e dar-lhes presentes à vontade. E assim acontece que quase todos se casam não por cupidez de riquezas, mas por amor; e encontram-se muitos nobres que tomam mulher, sem espécie alguma de dote. Para dizer-vos de um entre tantos, o Senhor D. Manuel Noronha, que é um dos nobres e ricos da  Madeira, tomou como esposa a senhora Dona Maria Ataíde, sem qualquer dote. As Donzelas, quando se casam, podem tomar o sobrenome, que mais lhe agrada, do pai ou o do marido; mas depois de o tomarem, não podem já modificá-lo.

Entre os portugueses, há uma lei, segundo a qual os mais ricos e mais poderosos dão um dote não só às donzelas, mas também aos jovens, que tenham estado ao seu serviço durante sete anos. Esta lei é muito observada sobretudo pelo Rei, que aos jovens, por mais nobres e ricos que sejam, quando se casam lhes dá uma certa soma de dinheiro, à guisa de dote. O mesmo faz a Rainha às Damas, que estão na sua Corte. E na verdade esta lei, que nasce da caridade, é muito louvável. No entanto, em Itália, ela seria prejudicial e difícil de cumprir, pois que, entre eles, por carência de pessoas livres, só os ricos e nobres se servem de homens livres; os outros têm escravos. Mas, entre nós, há tanta abundância de pessoas livres, que não se liga aos escravos, podendo nós à vontade servir-nos de empregados livres. E, se tivéssemos de dar o dote aos que nos servem, não haveria riquezas que chegassem. E aconteceria que muitos prefeririam ir servir do que ser servidos. Assim, muitos ficariam privados de uma tal comodidade. Donde se vê, que uma mesma lei num lugar será útil e necessária; e que, pelo contrário, noutro não será proveitosa, mas danosa e excessiva.

Depois de casadas as mulheres, guardam-nas com muita diligência nas casas; e não se lhes permite saírem sem a companhia do marido, ou do irmão, ou do filho; isto porque são todos ciumentos, de maneira que só a grande custo se fiam dos parentes mais próximos. Embora irracionalmente, já que , quanto mais nobres são as senhoras, tanto mais são honestas e castas. Porém, os homens são muito dados aos prazeres amorosos; por isso costumam dizer o provérbio seguinte: “Os Castelhanos falam bem, os Franceses bebem bem e os Portugueses fazem bem o amor.”Acontece portanto que por ciúme, algumas vezes algum homem mata a mulher, movido pela suspeita que tem de adultério. E é espantoso por isso que facilmente sejam os maridos absolvidos por tais homicídios. Só às mulheres maduras é lícito frequentar as Igrejas; mas às jovens e às belas não casadas, não se lhes permite lá ir senão nas festas solenes. Vão as senhoras nobres com grandíssima pompa, com grande número de pajens e criados, os quais lhes levam almofadas de ouro, e de seda, e finíssimos tapetes, para que possam sentar-se de acordo com a sua categoria e dignidade. Os criados não podem conversar com as suas patroas, se não com os joelhos dobrados em terra. Aqui as senhoras não fazem nenhum cuidado das coisas de Casa; todo o seu estudo e preocupação é de se vestirem e enfeitar-se. Não contentes da beleza natural, usam o seu engenho para com arte a aumentarem, utilizando mil formas de arrebiques. E, embora isto seja coisa feia e reprovável, é porém tolerada pelos maridos sem problemas. E entrou de tal maneira nos usos e costumes, que não são apreciadas as esposas que não se pintam bem. Este abuso não existe apenas na Ilha da Madeira e em Portugal, mas já está espalhado por toda a Espanha; daqui para o Reino de Nápoles; e agora por toda a Itália. Resta a França, onde ainda não entrou este mau costume. Aliás não há coisa mais detestada pelos Franceses e suja, e de que mais se enojem do que de uma mulher demasiado pintada. Não será fora de propósito se eu contar aqui o que aconteceu a um jovem mercador francês na época em que eu me encontrava nesta Ilha. Tinha vindo este jovem da Rouen, Cidade da Normandia, à Madeira, para comprar uma grande quantidade de Açúcar. Ora aconteceu que, quando passeava, viu um dia uma senhora já madura, mas embelezada de tal maneira, que não percebendo ele que isso era devido à pintura que ela tinha posto nas faces, de longe pareceu-lhe belíssima; e imediatamente se apaixonou de tal maneira, que se tornou ideia fixa. Não podendo esconder por mais tempo aquele seu amor desenfreado, foi com palavras e com promessas pedir a um certo homem da Ilha que fizesse de maneira a que ele pudesse ter a mulher para si. Este sabia que a mulher era cortesã, mas, no entanto, para mostrar que o negócio era complicado e para obrigar mais o jovem, disse-lhe: “Ficas a saber que esta senhora, por quem te apaixonaste, é verdadeiramente nobre. Mas (como pudeste dar conta) é toda lasciva e dada aos amores. Não perco pois a esperança que tu consigas o teu desejo, sendo tu um jovem belíssimo, rico e forasteiro. Pois as mulheres de boa vontade amam tais pessoas, sobretudo quando são estrangeiros; crendo elas que assim, podem ficar mais secretos os seus amores. Prometo-te pois toda a minha diligência nesse sentido.”Feitos pois primeiro muitos recados de um e de outro lado, foi por fim acordada uma noite, na qual teriam os dois de se encontrar juntos. Chegada a desejada noite, tendo o mercador primeiro (segundo o costume dos franceses) bem comido e melhor bebido, quase embriagado, foi em companhia daquele Madeirense a Casa da Senhora de quem foi acolhido com muita alegria. Assim que o jovem se deitou na cama, pôs-se logo a dormir, nunca acordando toda a noite. Entretanto a mulher, que sonolenta não era, roubou-lhe todo o dinheiro da bolsa. Chegada a manhã, acordando o jovem, a quem já tinha passado a bebedeira com o longo sono, decidiu-se a abraçar e a beijar a mulher. Mas vendo-a toda enrugada na cara e macilenta (pois que saindo-lhe de noite a pintura da cara, ficara mal cheirosa e suja), ficou de tal maneira enojado que saltou da cama, pensando que tivesse sido enganado  e que, em vez daquela belíssima jovem, o tivessem posto a dormir com uma decrépita e velha mulher. Tornando à sua hospedaria, deu conta, por fim, que lhe tinham roubado todo o seu dinheiro. Cheio de raiva, foi à autoridade da terra, lamentando-se muito de ter sido gozado daquela maneira e do dinheiro que lhe tinha sido roubado pela maldosa mulher. Esta foi chamada pelo Juiz e apareceu já pintada e atrevida, pressentindo que o jovem pensaria ter-se deitado com outra. O mercador, ao ver a mulher, gritou logo que aquela não era aquela de quem ele se queixava. E acrescentou que esta era mulher fresca, bela e gentil e a outra, velha, feia e nojenta. Ouvindo tal o Juiz, não pôde conter o riso e disse: “Não te admires, meu jovem, porque as nossas mulheres mudam de feições a seu bel-prazer: têm um aspecto de dia e outro à noite.” Deu conta então o jovem que o Juiz estava a gozá-lo e disse: “Ouvi dizer várias vezes que só Deus e o demónio podem à vontade tomar várias espécies e várias formas. Mas, uma vez que Deus nunca quis tomar a forma de mulher, então é necessário concluir que as vossas mulheres sejam outros tantos demónios transformados nos seus corpos. E por isso resulta que ter de lidar e conversar com elas, é coisa tão infeliz e tão prejudicial. Ficai pois com estas vossas mulheres que não são outra coisa, senão demónios em forma de mulher. “ Sentindo o jovem ter feito ultraje com aquela fala, saiu logo para fora do Palácio do Juiz e pouco depois voltou para França.

Mas voltemos a falar dos costumes dos Madeirenses e dos portugueses. Todos os que habitam na Madeira, ou em Portugal, ou são livres ou são escravos. Estes tomam o nome por uma destas três razões:

- ou pela lei: como são os que por eles são chamados mouros, porque observam a lei de Maomé,

- ou da cor, como os Etíopes, chamados por eles, negros,

- ou então da criação, como os que nascem de um preto e de uma branca, que sejam ambos escravos; ou de uma negra e de um homem livre, ou o contrário e estes são chamados mulatos, como gerados de um sémen de espécies diversas; e não são nem brancos nem negros, mas têm uma cor de azeitona. Por isso, encontram-se Madeirenses e portugueses, os quais deixando as suas mulheres, põem-se a amar sobremaneira estas pretas. E também há mulheres livres que de boa vontade procuram o prazer com estes negros. Conheci em Évora, cidade daquele Reino, um jovem mercador (e que tinha uma belíssima esposa, segundo me foi dito) que se tinha apaixonado por uma ardente preta. A esposa não somente mostrava não levar a mal, mas ela igualmente se tinha enamorado de um escravo negro. E assim os dois, sem mostrar enfado pelo amor do outro, viviam alegremente com muito prazer.

Entre os mouros, encontram-se muitos celerados e outros que fogem dos seus patrões. E não é de admirar que suportem a servidão de má vontade, já que primeiro foram livres; mas quando são feitos prisioneiros na guerra, ficam logo escravos e são mantidos presos por cadeias.

Os que são chamados negros, são na sua maior parte bons e fiáveis, mas de feitio refilão. E dizem que são de tal natureza, que se não são mantidos pelos seus patrões em trabalhos fatigantes, e também às vezes batidos, facilmente se tornam inúteis e preguiçosos. E por isso fazem-nos ter uma vida trabalhosa, mas já não os têm em cadeias, como fazem aos mouros, se não como castigo por qualquer maldade.

Quanto aos mulatos, por terem quase todos nascido em Casa, são os melhores de todos os outros escravos; e porque servem com gentileza, muitas vezes é-lhes dada a liberdade.

A compra e venda de escravos é negócio feito com muita atenção; pois não basta aos compradores experimentá-los passeando, correndo, a sua destreza e galhardia; querem ainda ver minuciosamente se têm qualquer defeito físico; e se lhe faltam dentes; pois julgam que aqueles a quem faltam dentes são ainda mais débeis para o trabalho, faltando-lhes os instrumentos para comer, de onde derivam as forças. Como têm de levar os escravos à mostra para os vender, costumam untá-los todos os dias com óleo, a fim de que os seus corpos apareçam mais lustrosos e belos.

Há duas espécies de homens livres: os nobres e os plebeus. Chamam nobres os que têm antepassados nobres e ilustres. E se acontece que àquela pureza de sangue estejam também ligadas as riquezas, estes (como acontece também em Itália) são muito estimados. Estes põem todo o seu estudo e pensamento em prosseguir amores, as caças, e ter cavalos; e sobretudo procurar adquirir e manter-se na estima do Rei, de quem vêm, não só as riquezas, mas também as honras e dignidades. De modo que a Corte está sempre cheia de nobres. Na verdade a nobreza merece muita estima ao Rei de Portugal: por isso querem que se escrevam os nomes de todos os que nascem nobres; aos quais, não apenas quando são grandes, mas também desde jovens e logo que vão à Corte, atribuem uma certa remuneração (embora não muito alta); não apenas aos filhos, mas também aos seus educadores. Acontece que, para maior dignidade do ofício que têm, costumam os Reis dar-lhes o nome de seus escudeiros. O ofício destes é ir diante do Rei nas viagens e na guerra, como guardas da sua pessoa. Quanto à educação dos filhos, têm o encargo de lhes dar boa criação, ensinando-os a ter todas aquelas partes que convêm aos verdadeiros nobres, e suscitar neles um desejo de louvor e de honra, recordando-lhes frequentemente as façanhas feitas pelos seus antepassados ao serviço do Rei ou para manutenção e exaltação das suas próprias famílias. Mas sobretudo, cuidam que sejam honestos no falar, e não profiram blasfémias contra o nome de Deus e dos Santos. De facto, para os portugueses nada é tão reprovável como as blasfémias e as palavras desonestas. Por isso, o maior juramento que possam fazer (por mais furiosos que estejam) é jurar pela própria barba. Este juramento é por eles inviolavelmente observado. Por fim, esforçam-se de os instruir a que sejam bons, e verdadeiros Cristãos e que, nas suas acções, não se note ligeireza, mas ponderação e prudência. Poucos são os que desde crianças, se dão às disciplinas e artes liberais. De facto, saídos da idade de crianças, não se divertem com outra coisa que não seja andar a cavalo e manejar as armas. Estes jovens nada fazem na Corte, que tenha utilidade. Seguem apenas a Corte Real; e quando o Rei come, estão-lhe em volta com os joelhos em terra. Então acontece por vezes que o Rei pergunta aos educadores, como se portam os filhos no que respeita aos estudos e se são bem educados. E, de acordo com o proveito de cada um, assim vem a ser louvado. Quando se tornam mais velhos, é-lhes aumentado o estipêndio. E, porque nos Portugueses, como também nos Espanhóis e nos Franceses, há uma lei segundo a qual, só os primogénitos são herdeiros dos bens paternos, acontece que muitos são obrigados a irem-se embora para diversos países: uns para África, outros para a Índia, e outros para outros lugares dependentes do Rei de Portugal. Por estes, o Rei costuma ter grande consideração. A alguns, nomeia-os Governadores das Cidades, e das Ilhas e das terras do seu Reino e domínio. E a outros dá funções e cargos de guerra. Acontece que eles conseguem desta maneira riquezas e reputação: e o Rei vê nisso grande benefício e utilidade, porque assim se alarga e torna-se maior o seu Império; e o nome dos Portugueses vai-se espalhando por todo o mundo.

A disciplina militar deles é só de cavalaria, já que a infantaria combate sem nenhuma ordem. Utilizam espadas, escudos, com certas armas de haste à guisa de partigianelle (espécie de lanças). Ainda usam as balestras e os arcos; mas não fazem uso daquelas armas longas que nós chamamos picas; assim como não usam nenhuma espécie de Arcabuzes e de Escupetas, que ainda ali não chegaram. Mas daquele tempo até agora, podem, a exemplo dos soldados Espanhóis, Italianos e Alemães, ter aprendido a disciplina militar dos infantes, e de toda a espécie de armas. Não existem homens de armas; mas os cavaleiros trazem espada, adarga e arma com haste ao guerrear, à maneira de zagaias, mas um pouco mais longas. A cavalgar, costumam ter as pernas retiradas; fazem isso para serem mais destros e valentes a ferir o inimigo; e também para se assegurarem melhor que não são atingidos nas pernas. Isto porque os soldados a pé dos Mouros, com quem têm guerreado por muito tempo costumam trazer em tempo de guerra certos bastões do comprimento de um braço, ou pouco mais, com que atiram às pernas dos cavalos e dos Cavaleiros; e estes (que não trazem perneiras) imaginaram este modo de cavalgar à curta, para que não lhes sejam partidas as pernas.

Em tempo de paz, para que os homens pelo ócio não se tornem moles e efeminados, exercitam-se em jogos de cavalaria à maneira de escaramuças, chamadas jogos de canas. Costumam nestes seus jogos fazer duas Companhias de cavalos, cada uma das quais tem o seu Capitão e condottiere. Para que se conheçam uns aos outros, para que não haja desordem nem confusão na luta, cada um dos Capitães veste os seus do modo que lhe agrada, enrolando um véu de seda ou de linho branco em volta da cabeça, à maneira dos mouros; e enfeitados deste modo entram em campo aberto. Aí fazem primeiro uma bela exibição, percorrendo o campo, dois a dois, ou três a três, fazendo tremer as lanças viradas para o alto. A seguir, dividem-se em duas partes, e pegando em canas em vez das lanças, ao som de trompas e de tambores, com a mesma ordem, e número, com que percorreram a praça, os Cavaleiros da primeira Companhia, assaltam a outra com canas afiadíssimas. Depois com muita rapidez, cobrindo a cabeça e as costas com os escudos, retiram-se com grande velocidade para o seu sítio. Logo os da outra Companhia fazem também eles o mesmo assalto, perseguindo com muito ímpeto os primeiros que os haviam assaltado. Retirando-se depois os segundos do mesmo modo, são perseguidos pelos do primeiro grupo. De modo que continua a escaramuça entre uns e outros até que tenham todos combatido até um só. Crescendo depois o número, pouco a pouco, voltam a combater a quatro, a cinco e a seis. Esta forma de torneios a Cavalo com as canas, respeita só aos nobres. O que se faz, na Corte do Rei, por prazer, e ainda por exercício e sobretudo para se mostrarem bravos e valorosos às suas namoradas.

 

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