19-12-2001
VITORINO NEMÉSIO
1901 - 1978
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LINKS:
Nemésio (1901-2001): um ilhéu do mundo
DN, 16-12-2001
CRONOLOGIA:
1901
- A 19 de Dezembro, nasce Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, na Praia da
Vitória, Ilha Terceira, Açores.
1912
- Inicia os estudos secundários no liceu de Angra.
1916
- Colabora no Eco Académico. Semanário dos Alunos
do Liceu de Angra, desde o n.º 2 (13 de Fevereiro). Funda e dirige
Estrela d'Alva. Revista Literária Ilustrada e Noticiosa, também em Angra do
Heroísmo.
1918
- Conclui na Horta (Faial) o 5.º ano do liceu.
1919
- Inicia o serviço militar, como voluntário, em
Infantaria, o que lhe proporciona a primeira viagem a Lisboa.
1921
- Em Lisboa, é redactor dos jornais A Pátria e A Imprensa de Lisboa
e do Última Hora.
1922
- Conclui o liceu em Coimbra e inscreve-se na Faculdade de Direito. Trabalha
como revisor na Imprensa da Universidade.
1923
- Ingressa na Maçonaria, na loja Revolta, de Coimbra. Morte do pai, a 7 de
Abril. Colaboração na revista Bizâncio, de Coimbra. Primeira viagem a
Espanha, com o Orfeão Académico: em Salamanca conhece Unamuno.
1924
- Abandona o curso de Direito e matricula-se na
Faculdade de Letras, em Ciências Histórico-Geográficas. Com Afonso Duarte,
António de Sousa, Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões e outros, funda a revista
Tríptico.
1925
- Opta definitivamente pelo curso de Filologia Românica. Surge o jornal
Humanidade. Quinzenário de Estudantes de Coimbra, de que é redactor
principal Vitorino Nemésio. Colaboram, entre outros, José Régio, João Gaspar
Simões e António de Sousa.
1926
- A 12 de Fevereiro, casa com Gabriela Monjardino de Azevedo Gomes, de quem terá
quatro filhos, a primeira das quais, Georgina, nasce em Novembro.
1927
- Funda e dirige, com Paulo Quintela, Cal Brandão e
Sílvio Lima, Gente Nova. Jornal Republicano Académico.
1928
- Passa a colaborar na revista Seara Nova.
1929
- Início de correspondência com Miguel de Unamuno.
1930
- Nemésio colabora na Presença (n.º 27), Junho-Julho, e 29,
Novembro-Dezembro), com textos poéticos. Em Outubro transfere-se para a
Faculdade de Letras de Lisboa. Começa a pesquisa sobre Herculano que o ocupará
ao longo da vida.
1931
- Licencia-se na Faculdade de Letras de Lisboa, após o que inicia ali o
magistério, lecionando Literatura Italiana.
1933
- Começa a leccionar Literatura Espanhola (a par da Italiana) em Lisboa, na
Faculdade de Letras.
1934
- Passa por Salamanca para se encontrar pessoalmente com Unamuno. Início de
correspondência com Valery Larbaud. Inicia o desempenho das funções de chargé
de cours na Universidade de Montpellier. Larbaud lerá os poemas franceses de
Nemésio e proporcionar-lhe-á a chancela de um editor parisiense (Corrêa).
Doutoramento em Letras, em Outubro, com A Mocidade de Herculano até à Volta
do Exílio.
1935
- Colabora n'O Diabo com vários poemas.
1936
- Concorre a Professor Auxiliar da Faculdade de Letras.
1937
- Funda e dirige, em Coimbra, a Revista de
Portugal (n.º 1, Outubro), em cujo editorial, não assinado, se afirma: "Não
vamos traçar nenhum programa. O nosso melhor programa seriam vinte ou trinta
anos de vida e de realizações de cultura universal e portuguesa." Radica-se na
Bélgica e na Universidade Livre de Bruxelas lecciona, durante dois anos.
1939
- O n.º 7 (Abril) da Revista de Portugal publica o primeiro fragmento do
romance que virá a ter o título Mau Tempo no Canal ("Um ciclone nas
Ilhas"). Regressa a Portugal, para ensinar na Faculdade de Letras de Lisboa.
1940
- Concorre ao lugar de Professor Catedrático da Universidade de Lisboa.
1941
- Colabora com um poema nos Cadernos de Poesia.
1942
- Colabora na revista de António Pedro, Variante, e na de Ruy Cinatti,
Aventura.
1944
- É editada a primeira edição de O Mau Tempo no Canal. Colabora na
revista de Carlos Queiroz, Litoral (n.º 1, Junho).
1945
- O Prémio Ricardo Malheiros da Academia das
Ciências é atribuído a O Mau Tempo no Canal.
1946
- É colaborador regular no Diário Popular, com uma secção intitulada
"Leitura Semanal".
1947
- Colabora na revista Vértice ("Arquipélago dos Picapaus", vol. IV, n.º
52, Novembro-Dezembro).
1952 -
Primeira viagem ao Brasil, que se tornará um destino
frequente para Nemésio. Dela resultam os primeiros estudos, crónicas e poemas
brasileiros.
1955
- Viagem aos Açores, em Maio.
1956
- É Director, até 1958, da Faculdade de Letras de Lisboa, onde fora secretário
de 1944 a 47.
1958
- Lecciona no Brasil (Baía, Ceará, Rio de Janeiro, etc.).
1960 -
Intervém na reforma dos planos de estudos das
Faculdades de Letras então projectada. Viagem a África, relacionada com os
cursos de extensão universitária em Luanda e Lourenço Marques.
1963
- Efectua uma viagem à Holanda. É eleito sócio
efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.
1965
- Preside à Comissão Nacional do V Centenário de Gil Vicente, redigindo parte do
programa das comemorações. Nova viagem ao Brasil. A Universidade Paul Valery, de
Montpellier, doutora honoris causa o seu antigo leitor. Recebe o Prémio
Nacional de Literatura pelo conjunto da obra.
1966
- A Biblioteca e Arquivo Distrital de Angra comemora os "50 Anos da Vida
Literária de Vitorino Nemésio" com uma exposição bibliográfica e a realização de
conferências.
1969
- Inicia uma colaboração regular na RTP, com o programa "Se bem me lembro", que
o imporá como figura ímpar em matéria de comunicação audio-visual.
1970
- Inaugura as comemorações do centenário da Geração de 70 no Centro Cultural
Português de Paris, da Fundação Calouste Gulbenkian.
1971
- A partir de Fevereiro, colabora regularmente na revista Observador. A
12 de Dezembo, profere a sua "Última lição" na Faculdade de Letras de Lisboa,
onde ensinara durante quase quarente anos.
1974
- Recebe o Prémio Montagine, da Fundação Freiherr von Stein/Friedrich von
Schiller, de Hamburgo. A Bertrand lança a primeira colectânea de estudos sobre a
obra de Nemésio.
1975
- Colabora na Homenagem ao Prof. Aurélio Quintanilha, a quem dedicará
Limite de Idade. A 11 de Dezembro, assume a direcção do jornal O Dia.
1977
- Coordenador nacional do centenário de Herculano.
1978
- A 20 de Fevereiro, morre em Lisboa, no Hospital da CUF, e será sepultado em
Coimbra, no cemitério de Santo António dos Olivais. Publica-se o primeiro estudo
em livro que lhe é exclusivamente consagrado: Vitorino Nemésio, a Obra e o
Homem, de José Martins Garcia.
O homem e o escritor projectados no futuro
António Valdemar
O sorriso de Marga
LUIS FAGUNDES DUARTE
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Julho de 2003:
Vitorino Nemésio, Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga,
OBRAS COMPLETAS, Vol. III, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,2003. ISBN 972-27-1200-4
Sobre este livro, ver página neste site, aqui
Poesia
Canto Matinal.
Angra do Heroísmo, 1916.
Nave Etérea.
Coimbra, 1922.
La Voyelle Promise.
Coimbra, 1935.
O Bicho Harmonioso.
Coimbra, 1938.
Eu, Comovido a oeste.
Coimbra, 1940.
Festa Redonda
- Décimas &icom; Cantigas de Terreiro Oferecidas ao Povo da Ilha Terceira por
Vitorino Nemésio, Natural da Dita Ilha. Lisboa, 1950.
Nem Toda a Noite a
Vida. Ática. Lisboa, 1953.
O Pão e a Culpa.
Lisboa, 1955.
O Verbo e a Morte.
Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1959.
Poesia (1935-1940).
Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1961.
O Cavalo Encantado.
Colecção Círculo de Poesia. Lisboa, 1963.
Andamento Holandês e
Poemas Graves. Lisboa, 1964.
Ode ao Rio, ABC do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro, 1965.
Vesperais (1916-1918).
Angra do Heroísmo, 1966.
Canto de Véspera.
Colecção Poesia e Verdade. Lisboa, 1966.
Violão do Morro (...)
Seguido de Nove Romances da Bahia.
Lisboa. 1968.
Limite de Idade.
Colecção Auditorium (Livro e Disco). Lisboa, 1972.
Poemas Brasileiros.
Lisboa, 1972.
Sapateia Açoriana,
Lisboa, 1976.
Teatro
Amor de nunca mais,
Angra do Heroísmo, 1920.
Ficção
Paço do Milhafre.
Contos. Coimbra, 1924.
Varanda de Pilatos.
Romance. Lisboa, 1926.
A Casa Fechada.
Novelas. Coimbra, 1937.
Mau Tempo no Canal.
Romance. Lisboa, 1944.
O Mistério do Paço do
Milhafre. Contos. Lisboa, 1949.
Crónica e Viagens
O Segredo de Ouro
Preto e Outros Caminhos, Lisboa, 1954.
Corsário das Ilhas -
Notas de Viagens às Ilhas dos Açores.
Lisboa, 1956.
Viagens ao Pé da Porta.
Lisboa, 1965.
Caatinga e Terra Caída
- Viagens no Nordeste e no Amazonas.
Lisboa, 1968.
Jornal do Observador.
Lisboa, 1973.
Era do Átomo - Crise
do Homem.
Lisboa,
1976.
Biografia
e Crítica
Sob os Signos de agora
- Temas Portugueses e Brasileiros.
Coimbra, 1932.
A Mocidade de
Herculano até à Volta do Exílio (1810-1832).
Lisboa, 1934.
Isabel Aragão, Rainha
Santa, Coimbra, 1936.
Relações Francesas do
Romantismo Português. Coimbra, 1936.
Études Portugais - Gil
Vicente. Herculano. Antero de Quental, le Symbolisme.
Lisboa, 1938.
Gil Vicente, Floresta
de Enganos. Lisboa, 1941.
Vida de Bocage.
Lisboa, 1943.
Moniz Barreto -
Ensaios de Crítica. Lisboa, 1944.
Pequena Antologia da
Poesia Brasileira nos Séculos XVII e XVIII.
Coimbra, 1944.
Ondas Médias -
Biografia e Literatura. Lisboa, 1945.
Perfil de Adolfo
Coelho. Lisboa. 1948.
Destino de Gomes Leal
- Poesias Escolhidas. Lisboa, 1952.
Portugal e o Brasil no
Processo da História Universal. Rio de
Janeiro, 1952.
Perfil do Prof. Sousa
Júnior. Porto, 1953.
O Campo de São Paulo -
A Companhia de Jesus e o Plano Português do Brasil (1528-1563).
Lisboa, 1954.
Vida e Obra do Infante
D. Henrique. Lisboa, 1959.
Problemas
Universitários Luso-Brasileiros. Lisboa,
1955.
Conhecimento da Poesia.
Bahia, 1958, e Lisboa, 1970.
O Retrato do Semeador.
Lisboa, 1958.
Almirantado e Portos
de Quatrocentos. Lisboa, 1961.
Romance, Existência e
Visão do Mundo. Lisboa, 1964.
Elogio Histórico de
Júlio Dantas. Lisboa, 1965.
La Génération
Portugaise de 1870. Paris, 1971.
Quase Que os Vi Viver,
Lisboa, 1985.
Traduções
Traduziu, entre
outras obras, a História da Arte, de Henri Faure, e O Que É Vivo e o
Que É Morto na Filosofia de Hegel, de Benedetto Croce. Há traduções
italianas, francesas, inglesas e alemãs de Nemésio: Mau Tempo no Canal,
Le Serpent Aveugle, traduzida por Denyse Chast. Colecção Feux Groisés.
Paris; Ed. Plon; e tradução para inglês por Francisco Fagundes, com o título
Stormy Isles/Azorean Tale, lançada pela Gávea Brown; Isabel de Aragão,
edição espanhola, Isabel de Aragón, La Reina Santa de Portugal, traduzida
do portugês por Isabel Alcalde.
Barcelona. Editorial Olimpo.
Vitorino Nemésio aceita morrer em cada livro
Entrevista com Fátima Freitas Morna - Professora Universitária
Nemésio na voz de Amália
António Valdemar
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A vida em pedaços no mundo repartida
ANTÓNIO VALDEMAR
Pela sua origem e condição de açoriano, Nemésio desde o
nascimento à morte, permaneceu ligado a pequenos e grandes sítios: Praia, Angra,
Lisboa, Coimbra, França, Bélgica, Brasil. Há alusões contínuas celebradas em
prosa e verso. Aliás, um dos seus projectos era escrever acerca das cidades da
sua vida, tal como já fizera em relaçâo aos navios em que viajava, no seu
destino de ilhéu e embarcadiço. Esse desejo não se concretizou, embora deixasse
um levantamento sumário numa crónica das ruas de seu arruar, reabilitando
um verbo arquivado no velho dicionário Morais.
"A rua principal", observou, "é o foco do estilo de viver e por aí evocá-la é
dizer muito sobre as leis do comportamento humano. Ninguém consegue tornar-se
cidadão sem cruzar muitas vezes os seus semelhantes na terra que escolheu ou lhe
coube para morar, e todos eles tendem a afluir ao centro de cavaco e de trânsito
do aglomerado: à sua espinha dorsal. (...) a calle mayor da vila era a
Rua de Jesus, onde naturalmente muito passeei e aprendi - que a rua é escola do
homem, e "homem da rua" o ideal da limpa cidadania."
A Praia da Vitória, onde nasceu a 19 de Dezembro de 1901 - completa-se agora um
século -, só viria a ser elevada a cidade em 1982, mas isso não o impediu de a
considerar como tal: "Para que a Praia da Vitória fosse realmente cidade nem lhe
faltava, além do relevo urbano, o primeiro sentido daquela palavra em latim.
Cabeça de capitania, era um concelho velho e uma comarca recente. Da capitania
donatária ficara a glória e o ressentimento com Angra, a nova capital da ilha.
As terras fazem-se por reacção de umas às outras: É a boa emulação civil."
"A Praia, para mim", escreveu, é a torre da Câmara e o seu relógio inerte e
sedativo. Mais altas que ela ficavam as torres da Matriz, plantadas na colina da
vila. Os seus altos perfis tinham um sentido urbano muito mais vasto e agudo."
Era para Nemésio um motivo permanente de identificação e de orgulho. Ele próprio
redigiu, por ocasião do V Centenário do nascimento do Infante D. Henrique, a
inscrição de uma lápide colocada na fachada dos Paços do Concelho: "Esta é a
Câmara de Diogo de Teive, Álvaro Martins Homem, Pêro de Barcelos, que aqui
povoaram e daqui abriram à Europa os mares do Oeste."
Tinha dez anos quando, em Outubro de 1912, se radicou em Angra, a fim de
frequentar o liceu. Encontrou um horizonte bastante diferente da Praia.
Publicava aos 15 anos o primeiro livro de versos, Canto Matinal, e estava
à frente de uma revista literária, Estrela de Alva. Se não guardou da
maioria dos professores boas recordações, nunca esqueceu a amizade com Jaime
Brasil, seu colega, cinco anos mais velho, primeiro mentor intelectual e que o
marcou para sempre. A literatura e uma certa estúrdia contribuíram para o
insucesso escolar.
Dos professores que lhe fizeram a vida negra não resta memória, mas no andar
nobre da Casa Grande dos Betencourts, onde também funcionou o liceu e hoje está
ocupado pelo Arquivo e Biblioteca Pública, existe uma sala com uma lápide que
tem o nome de Vitorino Nemésio.
Concluiu o segundo ciclo do liceu na ilha do Faial. Chegou à Horta em 1918. A
cidade dos cabos submarinos fascinou-o. O Faial, o Pico e São Jorge ficaram
perpetuados no Mau Tempo no Canal e, também, no Corsário das Ilhas
e no Jornal do Observador.
À semelhança do que se verifica hoje, a matemática representou um dos grandes
obstáculos para Vitorino Nemésio. Encontrou, todavia, um professor que se
dedicava à literatura e não lhe pôs quaisquer dificuldades. Chamava-se Florêncio
Terra e pertencia à mesma geração de Roberto e de Carlos Mesquita. Jamais
esqueceu Nemésio o acolhimento que lhe dispensou.
Não resistia a esta exclamação: "Gosto da Horta como de nêsperas! Tinha saudades
do que fui, já nem sei bem como, aqui. Todo o imaginado é mais ou menos
frustrado quando o realizamos; mas na Horta, não é excedido. Ao comprido da rua
do Mar desenvolvem-se as casas; sobre a célebre rua única da cidade as travessas
que descem da encosta trazem também a sua moderna contribuição de fogos e de
trânsito. O largo do Infante, ao rés do mar, funciona de belveder sobre a massa
compacta e aguda da montanha do Pico [...] E o resto, tudo bem: Matriz no alto
onde foram as casas do donatário flamengo e que os jesuítas adaptaram, como
sempre, cubicular e faustosamente, mais duas ou três igrejas conventuais nos
altos; a cada ponta, ou sainte, as paróquias da Conceição e das Angústias, e o
mais que é preciso para completar uma cidadezinha airosa alva como uma noiva -
Horta!"
Trinta anos depois, Nemésio continuava a recordar "os primores do acolhimento, a
hospitalidade patriarcal, a gentileza em tudo e por tudo".
DN 17-12-2001
Cidades adoptivas: Coimbra e Lisboa
A. V.
O mais açoriano de todos os escritores açorianos não
hesitou em adoptar como suas duas cidades, Lisboa e Coimbra, nas quais passou a
maior parte da vida. Nelas se relacionou com os movimentos culturais e
políticos; as tertúlias, os jornais e revistas. Constituiu família em Coimbra.
Casou em Coimbra e em Coimbra nasceram os seus filhos Georgina (1926), Jorge
(1929), Manuel (1930) e Ana Paula (1931).
Chegou a Coimbra em finais de 1921 para acabar o liceu e ter acesso à
Universidade. Matriculou-se em Direito e transitou para Letras. Iniciou em
Coimbra uma actividade cultural organizada que lhe permitiu afirmar-se como
universitário e homem de Letras. Revisor do quadro da Imprensa Universitária,
contou com o apoio intelectual e pessoal do seu director, Joaquim de Carvalho,
que classificava, juntamente com Aurélio Quintanilha e Afonso Duarte, entre os
seus "mestres socráticos", pois nunca fora aluno de Joaquim de Carvalho na
Faculdade de Letras. Exerceu, nos anos 20 e 30, activa participação no Centro
Académico Republicano; na Maçonaria; na Associação dos Estudantes de Letras; no
Orfeão Académico e na Associação Cristã da Mocidade, organização protestante com
influência no meio universitário. A acção cívica e política de Vitorino Nemésio
integra-se na linha doutrinária do segundo grupo da Seara Nova, contra o
"Integralismo Lusitano", o CADC (organização de cariz católico e/ou monárquico)
e na luta contra a ditadura militar implantada em 28 de Maio de 1926 e que se
consolidará, em 1932, com Salazar, na chefia do poder. Contemporâneo da
Presença, colega e correligionário dos seus directores, não faz parte do
grupo fundador.
Já depois de se fixar em Lisboa, sentia-se bem em Coimbra, ou numa certa Coimbra
que não perdeu a alma: "A cidade cresceu um pouco anarquicamente [...] a Lusa
Atenas, com o desmonte da Alta, tem um pouco menos de Atenas e bastante mais de
pato-bravo..."
Quis ficar sepultado em Coimbra, no Cemitério de Santo António dos Olivais. O
desejo cumpriu-se. Foi a 21 de Fevereiro de 1978.
Para Nemésio, quando, em 1919, estava na ilha Terceira, Lisboa significava
romper com a solidão e o marasmo, realizar-se como poeta e escritor, encontrar
no jornalismo um modo de sobrevivência e de afirmação pública. Chegou para
cumprir o serviço militar e aproximar-se dos círculos intelectuais. Exerceu o
jornalismo profissional. Voltou a Lisboa, em 1930, para concluir a licenciatura
em Filologia Românica. Fez doutoramento e concurso para professor. Ascendeu a
catedrático a 16 de Julho de 1942.
Mas Nemésio não se limitou ao magistério universitário. Prosseguiu a colaboração
nos jornais, estendeu a colaboração à rádio e à televisão. Esteve à frente da
orientação editorial da Bertrand, foi um dos directores da Alliance Française e
fez parte da classe de Letras da Academia das Ciências.
Desde os anos 30 aos anos 70, residiu, por exemplo, e durante sucessivas
décadas, num quarto andar da Rua Sociedade Farmacêutica, a dois passos do
Marquês de Pombal, uma das transversais da Avenida Duque de Loulé para o Conde
Redondo. Esta casa foi para Nemésio a sua décima ilha. Ali escreveu a quase
totalidade da sua obra literária. Viveu, também ali, a crise religiosa que
atingiu ressonância pública n'O Pão e a Culpa, O Verbo e a
Morte e Retrato do Semeador.
Desde o inicio dos anos 70 sentia-se "um homem cercado". Multiplicavam-se os
problemas e acentuava-se a doença. Uma certa euforia não conseguia esconder o
estado de espírito que o dominava Ele próprio declarou: "Viver dói. Sobretudo o
viver de agora (para quem viveu muito, naturalmente!). Dói pelo que custa a
aguentar a cadeia cerrada das obrigações à pressa - duplamente cadeia, pois é
corrente e cárcere."
Em grande parte devido à televisão, todos o conheciam e lhe falavam onde quer
que fosse.
"Todos os actores", escreveu Nemésio, "gostam dos palcos onde se demoram mais
tempo, e o último tende a acamar por cima do primeiro como os estratos
geológicos que deixam a terra à flor. É a ternura e apego à fragilidade de cada
dia; o jogo duplica entre a efemeridade e o eterno."
Existiu, sem dúvida, um vínculo muito forte com Lisboa, mas as raízes mais
profundas estavam em Coimbra e, muito em especial, na Praia da Vitória, lá onde
os navegadores do Infante abriram à Europa os mares do Oeste.
DN 17-12-2001
O fascínio da Europa e a paixão pelo Brasil
A. V.
Há outras cidades que exerceram grande influência na sua
formaçãoo intelectual e no seu destino universitário - Montpellier e Bruxelas. A
França e a Bélgica conduziram Nemésio à descoberta do mundo cultural e
científico. Da poesia de Valéry, de Claudel e Apollinaire, da relação pessoal
com Valey Larbaud, Jules Supervielle e Jean Cassou. Beneficiou dos conselhos de
Marcel Batallion, Robert Ricard e da "vigilância paternal de George le Gentil,
patriarca do lusismo em França", com "um discreto saber de abelha carregada em
suas flores".
Tudo isto concorreu para uma experiência cosmopolita e para "ampliar a
intimidade com uma literatura de finesse que seria chamado a ensinar". Alastrava
a Guerra de Espanha e vislumbrava-se no horizonte a calamidade de uma
conflagração muito maior. "A beira do barril de pólvora", ponderava Nemésio,
"mas com alma para a esperança", aqueles mestres e, ainda, Julles Sion deram-lhe
"no dia-a-dia a medida do que a gente é ao pé dos que suaram, como Sanches, para
um quod nihil scitur, autenticamente conclusivo".
Uma carta de 16 de Fevereiro de 1935 para Afonso Lopes Vieira, que revelei, em
primeira mão, numa comunicação apresentada na classe de Letras da Academia das
Ciências, denuncia o seu fascínio perante a mensagem espiritual do
franciscanismo.
A questão religiosa, que se torna pública a partir dos anos 50, ainda se
evidencia quando trabalha em Montpellier. Data de então a biografia de Isabel de
Aragão, Rainha Santa (1936), onde é exaltada a acção primordial da mulher de D.
Dinis no apoio à ordem franciscana, designadamente à comunidade de Alenquer, que
procedeu à restauração do culto do Espírito Santo.
Mas será em 1938/39, quando reside na Bélgica, como bolseiro do Instituto de
Alta Cultura, que se começa a operar a luta entre o homem humano e o homem
metafísico, conforme já assinalei com base noutra correspondência para Afonso
Lopes Vieira.
Esteve no Brasil, entre 1952 e 1972, largas temporadas. Para Nemésio o Brasil
era aventura, descoberta e reencontro: é o "violão de morro", com xácara, com
samba, com farsa dramática, negros do cais Mauá, balada da Rua do Catete e um "inferninho"
de Copacabana. Mas, também, são os romances da Baía, a barca Flor das Marés,
os verídicos e espantosos sucessos do lugre Flor d'Angra, da praça do
mesmo nome, na ilha Terceira, "pátria do autor", com vinte marçanos do Pará.
A influência dos Açores e dos açorianos é enorme no Brasil. Francisco do Canto,
natural de Angra, filho de Pedro Anes do Canto, provedor das Armadas nos Açores,
foi incorporado, logo no princípio do século XVI, na frota de Tomé de Sousa e
com ele colaborou em numerosas tarefas decisivas para o presente e futuro do
Brasil. A tal ponto que Tomé de Sousa (como aludiu na Fenix Angrense
Manuel Luís Maldonado) não hesitou em declarar que se deveu a Francisco do Canto
a própria fundação da cidade da Baía.
São inúmeros os contributos dos açorianos no Brasil, na defesa e salvaguarda das
fronteiras, na libertação do domínio holandês, no sistema de povoamento, na
génese e evolução da sociedade brasileira. Vitorino Nemésio relatou muito do que
fizeram em dois livros: Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos e
Caatinga e Terra Caída. Pormenoriza a intervenção dos açorianos na rota dos
Bandeirantes, no desenvolvimento do litoral e interior de Santa Catarina, onde
perdura um extenso legado nas manifestações de cultura popular, na gastronomia e
na arquitectura, desde Itapoã, no Norte, até Passo de Torres, no Sul.
As referências açorianas não se limitam a Santa Catarina, Rio Grande do Sul e
Maranhão, Ceará e Amazónia. Distribuíram-se através de todos os outros estados.
Milhares e milhares de açorianos anónimos e seus descendentes, ao longo de quase
cinco séculos, nos mais diferentes sectores de actividade, contribuíram para a
grandeza e prosperidade do Brasil.
E Vitorino Nemésio na sua itinerância de terra em terra comunicou-nos, em
poemas, crónicas e estudos de investigação histórica, um testemunho de
conhecimento directo que nos leva a recordar a nobre, ínclita e desventurada
figura de D. Pedro, "o infante das sete partidas", quando afirmava com um saber
de experiência feito e na saborosa língua do século XV: "É viajando que mais se
aprende dos costumes e índole dos homens do que pela leitura de grossos
volumes."
DN 17-12-2001
1971: A última lição na Faculdade
Vitorino Nemésio: o professor, o comunicador e o mestre
Óscar Lopes catedrático num parecer de Nemésio
Escritor não consta dos currículos escolares
O açoriano universal
Vitorino Nemésio - cujo centenário do nascimento se completa - revelou na
poesia, na ficção, no ensaio e na crónica de viagem as inquietações do homem
universal, com as solicitações e ansiedades da cultura da sua geração e do seu
tempo, mas as raízes e motivações da quase totalidade da sua obra são
visceralmente da Praia da Vitória, de Angra do Heroísmo, da ilha Terceira, em
suma, da região dos Açores.
As características diferenciais do arquipélago dos Açores, perante as outras
regiões do País, são evidentes. Gaspar Frutuoso (1522-1591), nas Saudades da
Terra, obra que inicia a criação literária açoriana, especificou as
singularidades do meio físico e da ocupação humana: "Na verdade, qualquer
ilha destas, neste comprido e largo mar oceano, não é outra coisa senão uma
prisão algum tanto espaçosa, e até, de coisas pequenas, quanto mais das grandes,
uma muito estreita e muito mais curta sepultura."
Reconheceu o papel do homem na modificação do ambiente, o esforço da vontade e
inteligência para o transformar e até contrariar as condições naturais. Todavia,
os factores da insularidade e os condicionalismos do isolamento atingiram
expressão literária profunda em Roberto de Mesquita (1871-1924), que viveu e
morreu no exílio voluntário da ilha das Flores e, muito em especial, Vitorino
Nemésio (1901-1978). O conceito de açorianidade teorizado por Nemésio surgiu no
final dos anos 20 e nos anos 30, períodos de formação e maturidade intelectual,
entre a publicação do Paço do Milhafre (1924), constituído por textos de
ficção - um discípulo de Aquilino transferido para a realidade insular -, e a
poesia, também de conteúdo insular, que reuniu em La Voyelle Promise
(1935) e no Bicho Harmonioso (1938). Antecedem o Mau Tempo no Canal
(1944) e a Festa Redonda (1950), obras nas quais atingiu a plenitude.
Para Vitorino Nemésio a Geografia predominava sobre a História. A açorianidade
testemunhava uma idiossincrasia própria: "o nosso modo de afirmação no mundo,
a alma que sentimos, na forma do corpo que levamos" (...) "uma forte variedade
da nação portuguesa, criada em meio milénio no isolamento norte-atlântico.
Fora da ilha ou da região, continua a vê-la e a senti-la: A nortada encheu de
ilhas o horizonte / olhando bem nenhuma è verdadeira / mas cada uma em mim tem
porto e monte / que eu sou homem que vê de outra maneira.
Daí e num dos momentos altos do seu percurso, ao receber o Prémio Montaigne,
atribuído pelo contributo para o património cultural da Europa e a defesa da
universalidade da literatura, quando procedia ao balanço da sua vida e obra,
afirmar categoriamente: Sou ao mesmo tempo e, acima de tudo, português
açoriano europeu, americano brasileiro e, por tudo isto, românico hispânico e
ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo.
Decorrido menos de um século após o povoamento das ilhas, há açorianos a
frequentar cursos de Leis, Medicina e Teologia em Coimbra, Évora e Salamanca.
Está provado que Rui Gonçalves, natural de São Miguel, foi para Coimbra e, em
1539, ascendeu à cátedra. No século XVI, no itinerário da Peregrinação,
de Fernão Mendes Pinto, deparamos o açoriano Diogo Pereira, filho de Ana
Pereira, cujo pai, o flamengo Guilherme Van der Hagen, está na origem de
gerações sucessivas de várias ilhas e que tomaram o nome Silveira. Mas não foi
só Fernão Mendes Pinto que falou desse longínquo cidadão dos Açores errando pelo
Oriente. Também o identificou e referiu Diogo do Couto, nas Décadas.
Vitorino Nemésio, ele próprio, no seu modo de ser e de agir e através da
componente da sua obra literária, constitui o exemplo do homem universal, do
açoriano no mundo sempre disposto a participar no encontro de civilizações e de
culturas.
DN, 19-12-2001
O Corsário Revisita a Infância
Por ANA SÁ LOPES
Quarta-feira,
19 de Dezembro de 2001
As crónicas de Nemésio desterrado na sua terra, pela violenta carga emocional que o regresso lhe provoca
Instaladíssimo no continente desde que entrou na universidade, o açoriano Nemésio só voltará às suas ilhas em duas viagens, a que chamará "corsos" e relatará depois num volume chamado "Corsário das Ilhas". O "primeiro corso" passa-se em 1946, já Nemésio tinha escrito o "Mau Tempo no Canal". Antes de partir, no navio da Insulana que era o transporte da época, Nemésio está objectivamente "perturbado com os seus fantasmas de infância", como assinala Machado Pires no prefácio. "Oh, solidão das ilhas!... Conquista da terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e recuo a tempo no muito que se deseja... Portos fechados, ilhas à vista... Entre nós e o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra... Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo (...) Ilhas pontuadas naquela brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida - o mar do nosso segredo... a volubilidade do nosso ardor que nada estanca... esta inconsistência de projectos humanos (mas desumano é o lógico, o ético e o inflexível! Além disso o vapor da carreira... o boletim meteorológico (grau de humidade à saturação 100...) e o acostamento de Santos com a bandeira de saída... Oiço os rebocadores."
A viagem levá-lo-á de Ponta Delgada à Terceira natal, da Graciosa ao Faial, demorando-se na Horta à qual chama "a cidade do canal" - e ainda há entre os amantes nemesianos quem insista furiosamente que o "Canal" do "Mau Tempo" é o canal Pico-São Jorge! Não é, o que uma leitura atenta do livro e esta referência à Horta deixam claro.
O "Corsário das Ilhas" - uma mistura de registos literários, entre a autobiografia e a crónica de viagem - mostra um Vitorino Nemésio desterrado na sua terra, pela violenta carga emocional que o regresso lhe provoca. Sobre a Horta, onde viveu em 1918, ainda no liceu: "Dois ou três meses bastam para criar entre um forasteiro e o seu efémero exílio uma acomodação razoável. As raízes cortadas longe pegam perto. Há logo ramaria nova, amigos que se admiram de nos conhecer há tão pouco, ruas que nos parecem reboar de passadas que teríamos ouvido no berço. O acerto não vem logo; o tempo decorrido no exílio é retrospectivo, remitente, mais consagrado ao perdido do que ao que se acaba de ganhar. Mas vem a hora do adeus, e tudo o que parecia violência feita à nossa tendência imóvel, que refere a paz e a felicidade ao primeiro lugar que nos calhou, torna-se o 'melhor tempo', o território da lembrança que os faróis da noite vão lentamente dourando e logo remetendo ao escuro... Mau tempo no Canal".
Em 1955, volta Nemésio, desta vez já de avião, que abominava. Mudaram os tempos: "Tornado à casa ancestral onde me criei e cresci, ainda me envolve o antigo silêncio sideral, o cheiro húmido e morno da vegetação sempre verde, a sua perspectiva do relevo ilhéu acamado pelas erupções de lava efusiva (...). Mas de hora em hora quebra-o, primeiro um zumbido, e logo um ronco poderoso do quadrimotor que se aproxima. É que sou vizinho das Lajes, uma das maiores plataformas da era atómica".
Poesia: Torto de Tanto Amar
Por LUÍS MIGUEL
QUEIRÓS
Quarta-feira,
19 de Dezembro de 2001
Um poeta maior que não se tornou mítico
Fátima Freitas Morna, que organizou e prefaciou a edição da obra poética de Vitorino Nemésio na Imprensa Nacional, sugere que esta poesia, "tão dispersa no tempo e tão pouco homogénea entre si", acompanhou, desde 1916 até meados dos anos setenta, a própria evolução da lírica portuguesa. O juízo parece difícil de negar. Mas o mérito de Nemésio não se esgota nesta capacidade de acompanhar, e de muitas vezes antecipar, os sucessivos ciclos de inovação da poesia do seu país. O espantoso é que o consiga fazer sem abdicar de uma voz singularíssima, tão imediatamente reconhecível nos poemas franceses de "La Voyelle Promise" (1935) como na oralidade tradicional de "Festa Redonda" (1950), na genuína poesia religiosa de "O Pão e a Culpa" (1955), nos "Poemas Brasileiros", compilados num só volume em 1972, ou ainda nessa extraordinária apropriação poética da terminologia científica que é "Limite de Idade" (1972).
A reedição da poesia de Nemésio pela Imprensa Nacional, em 1989, demorou o seu tempo a esgotar. E quem anda pelos alfarrabistas constata que as suas primeiras edições estão longe de atingir as cotações dos livros de Eugénio de Andrade, Sophia, Cesariny ou Herberto Helder, para já não falar dos fenómenos de coleccionismo puro e duro em que se tornaram as obras de Régio ou Torga. Isto não terá muita importância, mas indica que o Nemésio poeta parece não ter ainda conseguido criar para usar uma expressão em voga, o seu "clube de fãs".
Não sendo Nemésio um poeta menor do que qualquer um dos citados - e é seguramente melhor do que Régio e Torga -, talvez se possa arriscar uma explicação para esta aparente injustiça. É que aquilo que constitui a verdadeira especificidade de Nemésio dificilmente atrai essa adesão visceral e emotiva capaz de construir um mito literário. Não há em Nemésio essa beleza quase palpável dos poemas de Eugénio, nem a verticalidade limpa de Sophia, nem o génio absoluto dos mais altos momentos de Cesariny - para não falar do prestígio de ser o merecido representante máximo da "única real tradição viva" -, nem essa convicção radical no poder demiúrgico da palavra poética que subjaz à obra de Herberto. E, ainda por cima, Nemésio deixou colar-se-lhe a imagem de um homem instalado no regime salazarista.
Um dos seus talentos é essa naturalidade do "falado" que muitos dos seus críticos já apontaram e que é levada ao extremo nas suas recriações dos metros tradicionais, onde a oralidade é privilegiada mesmo em detrimento da correcção ortográfica e sintática. Um leitor desprevenido pode supor facilidade neste dificílimo exercício de cruzar, num discurso de espantosa fluidez, o genuinamente popular, e regional, com envios constantes à mais exigente cultura erudita, as interrogações metafísicas e as mais ínfimas circunstâncias do vivido. Como uma esponja, a poesia de Nemésio absorve tudo, quer a nível temático, quer terminológico, mas sempre na perspectiva da concreta existência humana, do "dasein" heideggeriano.
Outra característica de Nemésio é uma espécie de bem humorado pudor, que tanto lhe impede a declaração sentimental mais directa, como o leva a evitar esse tom lapidar que a generalidade dos leitores associa à alta poesia.
Joaquim Manuel Magalhães já apontou o modo como este poeta sabota as formas tradicionais a que recorre, quer ao nível da rima, quer da métrica. Mas esta estratégia de sabotagem ultrapassa o plano formal. Um dos esquemas que encontramos frequentemente nos poemas de Nemésio é um final que desdramatiza, às vezes de forma quase desconcertante, o efeito poético que foi sendo construído, mas que, numa segunda leitura, abre para insuspeitadas profundidades o que parecia esgotar-se num conseguido exercício estético. A título de exemplo, leia-se este breve poema de "O Cavalo Encantado" (1963), com os seus quatro versos iniciais de tom "rilkeano" e o seu inesperado remate: "Cavalo e cavaleiro o vento adornam/ Com uma pata e uma pluma;/ À tarde unidos tornam,/ Um estame de sangue numa rosa de espuma.// Tanta pressa, afinal, para coisa nenhuma."
O "eu" que atravessa toda a poesia de Nemésio é um "eu" ligeiramente desastrado, esse "clown de Deus" de que fala Lourenço, ou, para citar o próprio poeta, esse "torto serei, mas só de a muito amar" (poema 9 de "Andamento Holandês", 1963). Esta subversiva auto-ironia, que os seus textos reflectem também no plano formal, torna Nemésio um dos lugares mais altos e inovadores da poesia portuguesa do século XX, mas, talvez felizmente, protege-o de venerações excessivas.
Biografia "Rouxinol e Mocho" - Homem das Ilhas e do Mundo
Por ANTÓNIO MACHADO
PIRES*
Quarta-feira,
19 de Dezembro de 2001
A biografia de Nemésio é bastante o percurso da sua obra, da ficção, das crónicas, principalmente da poesia
A propósito de António Nobre, Nemésio escreveu que a biografia é "uma velha ciência que raro se deu por tal" e que o que lhe dá valor não é o somatório dos factos mas a verdade universal a partir da exemplaridade pessoal. Eis um bom pressuposto para percorrer a vida de Nemésio, açoriano da Terceira, nascido a 19 de Dezembro de 1901, nas vésperas da República e da I Guerra, e projectado a um plano europeu de Prémio Montaigne (1974), professor universitário, romanista, romancista, poeta (poeta de tudo - se considerou), ensaísta, conferencista, homem de rádio e, no fim da vida, de televisão.
A infância decorreu na sua vila natal, a Praia de Vitória, ouvindo histórias de pescadores, frequentando a casa das tias, fazendo uma escola primária com prenúncios de êxitos intelectuais. Leia-se o conto "Cabeça da Boga" (em "Mistério do Paço do Milhafre") para entender a atmosfera de uma sociedade patriarcal, rural, conservadora, desafiada pela emigração para o Brasil e para a América do Norte.
Nemésio vem para o liceu em Angra (uma Babel da Terceira! dirá, com ironia) e aí dirige o jornal "Eco Académico" e publica, em 1916, aos quinze anos, o seu primeiro livro: "Canto Matinal" (ressonâncias de Antero e Junqueiro).
Um ano de liceu na Horta, em 1918, (portara-se mal em Angra, partira vidros e andara mal na Matemática...) deu-lhe o pano de fundo para "Mau Tempo no Canal" (começado em 1938, em Bruxelas, e acabado em Lisboa em 1944). Neste romance, documento da vida insular, inscreve a conflitualidade social dos meios pequenos e também uma história de amores e contrariedades, que havia também de ser sua, simbolizada nessa Margarida Clark Dulmo, que não era nem Margarida nem Clark Dulmo, mas modelada por uma profunda ligação afectiva que Nemésio manteve por mais de três décadas.
Os primeiros anos em Lisboa (depois de 1920) foram de jornalismo e convivência com republicanos e homens de letras. A sua iniciação ao jornalismo fez-se como repórter de "A-Pátria".
Em Coimbra estudou Direito, depois mudou para Letras, tendo sido impressionado por professores como Paulo Merea, Carolina Michaelis, Joaquim de Carvalho. Por proposta deste último, foi revisor da Imprensa da Universidade. Colaborou nas revistas "Bysancio" e "Conimbriga" e seria, com Afonso Duarte, co-fundador da "Tríptico". Colabora também na "Presença". Entretanto, transfere-se para a Faculdade de Letras de Lisboa onde, em 1931, conclui Filologia Românica com altas classificações.
Em 1926 casara, em Coimbra, com D. Gabriela Monjardino Azevedo Gomes, de quem viria a ter quatro filhos: Georgina, Jorge, Manuel e Ana Paula. Nemésio ficaria sempre muito ligado a Coimbra, onde foi a enterrar (Tovim).
Tendo projectado estudar o Liberalismo na emigração (mais uma vez o eco da importância da Terceira na causa liberal), ficou-se pelo estudo de Herculano; mas a sua tese de doutoramento, "A Mocidade de Herculano até à volta do exílio" (1934), ficaria uma referência definitiva para o erguer do vulto de Herculano. Nemésio admirá-lo-ia toda a carreira e tomá-lo-ia com frequência para tema das aulas.
Foi leitor em Montpellier (1935-39) e em Bruxelas (a partir de 1939), onde conviveu intensamente com universitários e intelectuais.
O Brasil, intuído desde a infância, e destino de emigração de familiares, foi seu lugar de visita frequente. Uma experiência de professor na Universidade da Bahia frutifica num compromisso cultural, dá-lhe oportunidade de introspecção religiosa e publica o "Conhecimento de Poesia" (ensaios sobre autores portugueses e brasileiros). Do Barroco brasileiro se ocuparia em "O Segredo de Ouro Preto" (crónicas, 1954), ao Brasil do Nordeste e do Amazonas voltaria com "Caatinga e Terra Caída" (1968), além de belos poemas brasileiros, tendo admirado Cecília Meireles e Lins do Rego, este último ousadamente comparado a Dostoievski. Quando atingiu o limite de idade, era não só professor de Cultura Portuguesa como de Literatura Brasileira.
De resto, interessou-se pela aproximação dos dois países, tendo publicado "Portugal e Brasil no Processo História Universal" (1952).
A biografia de Nemésio é bastante o percurso da sua obra, da ficção, das crónicas, principalmente da poesia.
Em 1924 publicara o primeiro volume de contos, "Paço do Milhafre" com intenções regionalistas e prefácio de Afonso Lopes Vieira. Em 1927 surgirá o romance "Varanda de Pilatos", que escolhe como espaço e tempo a Angra da sua adolescência, de fogachos amorosas e ideológicos. Os truques da ficção, ainda um pouco incipientes, deixam muito a descoberto o adolescente. A saudade das ilhas na França ditou-lhe "La Voyelle Promise" e a evocação da "lumiére açoréènne"; "O Bicho Harmonioso" (1938) tem belos poemas de simbólica e de "maravilhoso" insular ("algas, corais, estranhas maravilhas"...), sem esquecer a saudade do Pai (poema "O canário de oiro"), que lhe morrera em 1923; "Eu, comovido a Oeste" e "Nem toda a noite a vida" continuam essa dominante "saudosística" da Ilha, tomando já um acento religioso; "O Pão e a Culpa" (1955) documenta não só a sua cultura cristã como um "regresso" à fé e à "inocência" da infância, a consciência de filho pródigo e do barro humano de que é feito; "O Verbo e a Morte" (1959) é um belo livro de exercício de conhecimento pela linguagem ("casa do ser"), reflexo de leituras filosóficas, como reflexo de leituras científicas havia de ser "Limite de Idade" (1972).
Física nuclear, medicina, microbiologia, poesia de circunstância (neste caso, reflexão do momento transformada em expressão poética), a recorrente saudade da "ilha ao longe", o sentido da busca de Deus no fim da caminhada, a morte adivinhada na doença de que sabe ser portador, fazem deste livro uma obra invulgar nos homens de letras, que raro se aproximam liricamente das ciências...
Ainda tem tempo para descobrir um eros crepuscular, pujante e avassalador, que, nos poemas "a Marga", conhecidos ou a conhecer em inédito último volume de poesia, marcam um percurso existencial e sentimental pouco vulgar.
Em 1971, é convidado a fazer um programa na RTP, que intitula: "Se bem me lembro". Aqueles minutos a preto e branco, falando de tudo um pouco, com um nexo de correlação de saberes que contava com a própria espontaneidade dos gestos, conquistaram o público e provocaram centenas de cartas. Um fenómeno raro.
Um dos livros a que mais queria - e que andava revendo para reedição - era "Corsário das Ilhas". Uma "peregrinação sentimental recôndita", com camadas de erudição, história e geografia humana que não encobrem completamente o homem em revisita às suas ou à "sua" ilha... uma peça, pois, do "Jornal de Vitorino Nemésio".
Ainda em 1976, pouco antes de morrer, sai "Era do Átomo - Crise do Homem", prova da diversidade de interesses.
A "hispanidad" de Unamuno sugeriu-lhe o termo "açorianidade".
Quando morreu, em Lisboa, a 20 de Fevereiro de 1978, era já reconhecido como um dos maiores poetas e romancistas do século XX em Portugal. A síntese do seu saber deu-a ele próprio: "Cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha fábula, que seria o Rouxinol e o Mocho (...), pois já nos bons tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, entre os poetas maliciosos, um sábio enganado no número da porta (...)."
"Rouxinol e Mocho" - homem da sua "ilha ao longe" e do mundo.
*Professor Universitário, presidente do Seminário Internacional de Estudos Nemesianos
Ficção: O Romance de Todos Os Romances
Por FÁTIMA FREITAS
MORNA*
Quarta-feira,
19 de Dezembro de 2001
"Mau Tempo no Canal" é a resposta à herança de Eça, é "O Meu Romance", necessário e absoluto
Em 1944, "Mau Tempo no Canal" deu a Vitorino Nemésio a ambicionada consagração como romancista: abundante e favorável atenção da crítica, o grande prémio literário da altura (Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências) e um acolhimento comercial que sucessivas reedições viriam a confirmar ao longo dos anos.
Contudo, a mais conhecida obra de Nemésio é o foco de um mal estar que no diário reaparece com frequência: "o medo de morrer autor de romance único". Poeta impresso em livro desde 1916 ("Canto Matinal"), será como poeta que Nemésio se despedirá dos prelos 60 anos depois ("Sapateia Açoriana", 1976), deixando ainda nos últimos diaas de vida, em 1978, dois poemas nas páginas de uma revista.
Em tão amplo período de quase constante produção poética, a ficção narrativa aparece isolada em cinco títulos publicados entre as décadas de 20 e de 40, entre os contos de "Paço do Milhafre" (1924) e os de "O Mistério do Paço do Milhafre" (1949), sendo eles, em parte, os mesmos, com revisões, acrescentos e supressões. No meio fica outro romance, "Varanda de Pilatos" (1927), de que o autor pede a Casais Monteiro que "pelo amor de Deus não me fale nesse monstrozinho", carta de 24-11-1935), ao mesmo tempo que lhe envia as três novelas que serão publicadas sob o título de uma delas, "A Casa Fechada" (1937). Ora, em pleno período de intensa aprendizagem em tantos domínios, vivendo em França e depois na Bélgica, enquanto preparava o concurso que lhe daria um posto de trabalho em Portugal, publicava a sua "Poesia Moderna" (La Voyelle Promise", 1935, "O Bicho Harmonioso", 1938), e fundava a sua alternativa à "Presença" ("Revista de Portugal", 1937-40), ia Nemésio tentando fabrticar em si um ficcionista à altura da sua geração, imaginando, na carta citada, "as pragas de um futuro Nemésio agarrado ao seu Régio, Casais, Outros, e o Modernismo Português", para reconstituir à posteriori o sentido desse momento fundamental na literatura portuguesa. E nesse panorama futuro teria forçosamente que entrar um grande romance que, mais do que garantir um lugar pleno ao seu autor (sendo então, como hoje, a narrativa uma espécie de sinédoque da literatura efectivamente lida pelo público em geral), demonstrasse a vitalidade de uma tradição que parecia orfã desde que Eça de Queirós se fora, em 1900, deixando a descendência minada por um paradigma insuperável. "Mau Tempo no Canal" é a resposta a esse desafio, é "O Meu Romance", necessário e absoluto, entrevisto no diário (18-02-1936) sob um título abandonado, mas elucidativo: "Longitude Oeste". E é, nesse sentido, uma aposta ganha: metendo nele um pouco de todas as modalidades narrativas, como Eça fizera em "A Ilustre Casa de Ramires", Nemésio provou a si mesmo a ambicionada capacidade para gerir as grandes massas narrativas que no século XIX tinham fixado o horizonte do romance moderno (que era o seu) e que era capaz de o fazer actualizando-o com os contributos maiores da renovação novecentista nesse domínio, entre os quais o "parentesco" descoberto em Virginia Woolf terá sido determinante. Se o diário (11-06-1962) regista com prazer a classificação de "romance camiliano" que Óscar Lopes, excelente leitor da sua obra, atribuíra a "Mau Tempo no Canal", isso não significa que a novela passional de raiz romântica o esgote, mas apenas que também ela lá está, como lá estão as marcas dos núcleos estruturantes de tantas histórias contadas nos últimos dois séculos, desde a novela histórica à saga familiar e ao romance de aprendizagem. De certo modo, Nemésio escreveu nele todos os romances possíveis, talvez por isso adiou até ao fim a conclusão das múltiplas tentativas de um novo romance que deixou esboçadas.
Mas não será o ensaio nemesiano uma outra espécie de narrativa, a de alguém que vai tentando contar a história de um tempo, de um momento do mundo, através da leitura do que outros escreveram? Nesta perspectiva, torna-se revelador o facto de, no espólio, a maior parte dos textos de crítica e de ensaio se agrupar em pastas com a indicação de "vultos", "figuras", ou "perfis". É que mesmo num estudo de fôlego como "O Campo de São Paulo" (1954), mal se esconde o narrador de gentes, tempos e lugares por detrás do compilador e intérprete da documentação. É o que acontece na enorme massa de textos sobre Herculano que, desde a tese de 1934, se prolongam até ao fragmento dela editado em 1977 ("Retrato de Herculano"), talvez porque no romântico recriado ao longo da vida por Nemésio estivesse o protagonista de uma história emocionante, para lá da própria ficão: a história de um século inteiro, o século XIX, e do que o seguinte faria do seu legado. É essa história, fragmentária e intermitente, que a maior parte do ensaio de Nemésio lê nos poetas e escritores de que se ocupou.
*Investigadora da obra de Nemésio, comissária da exposição "A Rotação da Memória", patente na Biblioteca Nacional
O Modelo Televisivo do "Bom Observador"
Por MÁRIO MESQUITA
Quarta-feira,
19 de Dezembro de 2001
Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo. Provavelmente, o último, porque, entretanto, o género quase desapareceu.
"Se bem me lembro...", de Vitorino Nemésio, e "Conversas em Família", de Marcelo Caetano, eram duas cátedras, com auditório nacional, que contribuíram para mudar a comunicação televisiva que, na fase salazarista, ainda se encontrava modelada pela herança radiofónica: o orador a ler o discurso com a cabeça enfiada no texto, semi-encoberto por uma floresta de microfones.
A semelhança entre os dois programas residia, antes de mais, no "formato": um cadeirão, o espectador encarado de frente, como destinatário da conversa, a ausência de mediação por qualquer jornalista em "estúdio". Ao tempo de Salazar, predominava ainda o modelo da "comunicação" dirigida às multidões presenciais. O orador dirigia-se a manifestações de apoio à guerra colonial no Terreiro do Paço ou aos "deputados", nas sessões da Assembleia Nacional. As "Conversas em Família" ou o "Se bem me lembro" visavam o invisível auditório televisivo, cada um dos telespectadores em sua casa.
Ainda no campo das semelhanças, Caetano e Nemésio eram professores. Falavam "ex-catedra". Figuras relevantes da Universidade Portuguesa, pilar fundamental do regime do Estado Novo, transportavam para a televisão o modelo do discurso pedagógico. "Conversavam" com a nação, como o professor ensinava aos alunos.
Marcelo introduzia na comunicação política, no final dos anos 60, uma preocupação argumentativa inovadora no quadro do regime autoritário, que correspondia a concepções já expostas na conferência "A Opinião Pública no Estado Moderno" (in "Ensaios Pouco Políticos", Lisboa, Verbo, s.d., p.75-124), proferida em 1965, quando se encontrava afastado do poder. Não se contentava em afirmar, fazia questão de explicar. Explanava e rebatia, em questões controversas, como as da guerra colonial, os argumentos de um interlocutor imaginário. Situava-se num lugar de autoridade política e pedagógica.
As diferenças entre os dois programas não eram menos relevantes do que as semelhanças. Marcelo transpunha o estilo próprio de uma aula de ciência política, transferida da Faculdade de Direito, a principal escola de quadros do regime. Assumia o papel de primeiro-ministro, político, líder do partido único. Vitorino Nemésio actuava à imagem e semelhança das suas aulas da Faculdade de Letras, que deixaram marca em sucessivas gerações de alunos, pela criatividade e erudição, mas também pelo estilo conversado, ameno, algo dispersivo, de alguém que sabia conjugar o prazer do convívio e a difusão do saber. O programa de Marcelo obedecia a um propósito de persuasão, o de Nemésio era um lugar de cultura e obedecia ao modelo da "charla", à maneira e semelhança da crónica escrita ("Jornal do Observador") e radiofónica ("Ondas Médias") em que mostrava ser mestre.
Esta aproximação não visa estabelecer afinidades político-ideológicas entre o jurista, doutrinário e sucessor de Salazar e o autor de "Mau Tempo no Canal" (sobre a atitude do escritor perante o Estado Novo leia-se o artigo de António Valdemar, "Nemésio Político, Antes e Depois do 25 de Abril", in Nova Atlântida, Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, Vol. XLIV, 1998-1999). Pretende-se apenas sugerir que se inseriam num mesmo dispositivo de comunicação em que a televisão adoptava, com algum sucesso, o formato da "conferência", género em decadência na sua modalidade presencial, que conhecera a sua época áurea quando o prestígio das personalidades públicas ainda se "fabricava" entre os pares, em universidades, academias ou salões, longe das técnicas de difusão massiva que começavam a impor-se.
Se quiséssemos estabelecer uma equivalência entre géneros jornalísticos e os programas de Caetano e Nemésio, diríamos que as comunicações do primeiro-ministro obedeciam à lógica de um editorial desenvolvido, argumentativo, político, e as do escritor se inseriam no modelo da crónica, em que a erudição se disfarçava nas entrelinhas de uma conversa descontraída em que a rica gestualidade do professor jogava com o "pathos" do auditório. Nas crónicas televisivas, radiofónicas e jornalísticas de Nemésio, a temática obedecia à diversidade característica da diarística e do jornalismo. Inscrevia-se naquilo que o escritor poderia ter designado por programa do "bom observador", essa figura que, em seu entender, "tende a rarear no nosso tempo, precisamente na medida em que a perfeição da observação científica dispensa o homem comum do encargo de observar, dando-lhe a papa feita, por assim dizer, em pratos chamados 'diagramas', 'organogramas', 'telex'...Assim o nosso tempo se tornou num grande cartaz de índices, além de código de sinais. (...)Assim viciados (...) como havíamos de ser, na marcha para o ano 2000, bons observadores?" (V. Nemésio, "Jornal do Observador", Lisboa, Imprensa Nacional, p. 24).
Com vasta sabedoria para integrar os "signos de agora" (título de outra obra sua) em contextos históricos e culturais mais amplos, Vitorino Nemésio era o exemplo do tal "bom observador", capaz de iluminar os mais variados e inesperados ângulos de um acontecimento, por banal ou desinteressante que fosse, mas afastando-se sempre do "estilo conceituoso, pensamentista" porquanto, em seu entender, "só raros conseguem lapidar assim as ideias", como "Pascal e Nietzsche, por exemplo" (V. Nemésio, op. cit., p.173).
A notoriedade do grande escritor ficava a enorme distância da popularidade do teleconferencista. Mas não há que estranhar o aparente paradoxo, característico de país pouco letrado. Nemésio foi o nosso maior cronista televisivo, na acepção plena da palavra. Provavelmente, terá sido também o último, porque, entretanto, esse género quase desapareceu do pequeno-ecrã. Perante a concorrência aguerrida - com recurso a novelas, concursos, "reality-shows" e notícias de "fait divers" - nenhuma televisão generalista ousaria programar o "Se bem me lembro" a horas de grande audiência. Talvez às duas da madrugada, Vitorino Nemésio, se ainda vivesse no ano 2002, pudesse gozar o seu momento de minoritário esplendor televisivo.